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As Evidências do Simbolismo da Proteção Penal à Mulher Vítima da Violência

CAPÍTULO I O DIREITO PENAL SIMBÓLICO E SUAS IMPLICAÇÕES NO

1. O(s) Sentido(s) do Simbólico sob Luzes Interdisciplinares

1.2 O Simbolismo da Proteção Penal à Mulher Vítima de Violência Familiar

1.2.3 As Evidências do Simbolismo da Proteção Penal à Mulher Vítima da Violência

O posicionamento político-ideológico que defendeu a criminalização da violência doméstica e familiar contra a mulher e o recrudescimento das normas penais e processuais penais no enfrentamento dessa violência, embora seja predominante entre as feministas, não é suficiente para caracterizar uma homogeneidade de pensamento daqueles que são comprometidos com a emancipação dos grupos sociais, historicamente, excluídos, entre os quais está a mulher.

Elena Larrauri, identificando essa heterogeneidade nos próprios movimentos feministas, denomina “feminismo oficial” aquele cujas ideias tem sido incorporadas às legislações que buscam proteger mulheres com o recrudescimento de normas

penais.77

Essa criminóloga, ao tratar da Lei de Proteção Integral Espanhola, na qual se baseou a Lei Maria da Penha, afirma:

O discurso feminista oficial apresenta, ao meu ver, três características: por um lado, simplifica excessivamente a violência contra a mulher nas relações de casais, ao apresentar este delito como algo que ocorre “pelo fato de ser mulher”, como se a subordinação da mulher na sociedade fosse causa suficiente para explicar a dita violência; em segundo lugar, argumenta de forma excessivamente determinista, como se a desigualdade de gênero, à qual se atribui o caráter de causa fundamental, tivesse capacidade de alterar, por si só os índices de vitimização de mulheres, ignorando outras desigualdades; finalmente confia e atribui ao direito penal a enorme tarefa de alterar esta desigualdade estrutural a qual se vê como principal responsável pela vitimização das mulheres.78

Embora as considerações acima se refiram diretamente ao contexto espanhol de enfrentamento da violência contra a mulher, são igualmente aplicáveis ao

77 LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.15. Tradução nossa.

78 LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 15-16.

feminismo oficial brasileiro, cujas ideias de buscar apoio no direito penal para

solidificar a moral feminista nascem das influências europeias e norte-americanas.79

Sobre esse apelo ao sistema penal pelo movimento de mulheres, já delimitado como oficial, Vera Regina Andrade afirma que, no Brasil: “[...] há um profundo déficit no diálogo entre a militância feminista e academia e as diferentes

teorias críticas do Direito nela produzidas ou discutidas.” 80

De fato, verifica-se que falta uma base criminológica consistente no discurso da criminalização da violência contra a mulher, tema que será devidamente explorado no capítulo seguinte. Porém, ter como pressuposto esse déficit de base teórica é importante para fundamentar a ideia deste capítulo, pois, se faltam bases empíricas e também valorativas especializadas para a construção de uma política criminal em relação à violência contra a mulher, o direito penal construído para enfrentar tal violência estará fadado a oferecer uma proteção preponderantemente simbólica.

Adotando como pressuposto esse reducionismo epistemológico na compreensão da violência em estudo, passa-se a demonstração das evidências do simbolismo caracterizador das leis que buscam emancipação para as mulheres através do sistema penal.

Não há dúvidas quanto à configuração de um direito penal simbólico nessas legislações. Quer sob o prisma dos penalistas críticos, quer sob a ótica dos críticos do direito penal, essa constatação se ratifica. Várias são as razões que se complementam para, fartamente, caracterizar esse predominante simbolismo.

A primeira razão, e a mais facilmente verificável, está no fato de que tanto a lei 10.886/04, como a lei 11.340/2006 não criminalizaram condutas antes descriminalizadas. A primeira qualificou a lesão corporal quando praticada no âmbito doméstico, acrescendo o § 9º ao art. 129 do Código Penal, o que, destaque-se, já era razão de agravante genérica nos termos do art.61, II, e. Mesmo reconhecendo que o conteúdo do parágrafo acrescido amplia as possibilidades de agravamento da conduta, deve-se admitir que o objetivo principal dessa legislação era inserir no Código Penal a expressão violência doméstica, dando-lhe o status de crime.

79 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 84.

80 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e

Quanto à lei 11.340/2006, o simbolismo evidencia-se, sobretudo, no nome

pelo qual ficou conhecida: Lei Maria da Penha, homenagem àbiofarmacêutica Maria

da Penha Maia, que fora vítima do marido, professor universitário, que tentou matá- la, por duas vezes, deixando-a paraplégica. Eleita como símbolo da mulher vitimada que se torna ativista na luta contra esse tipo de violência, Maria da Penha teve sua história atrelada à construção da lei, como destaca as palavras de Leda Hermann:

A partir de 07 de agosto de 2006, uma dessas tantas Marias entrou para a história: Maria da Penha Maia, 60 anos, mãe de três filhas, vítima emblemática da violência doméstica, fez da dor inspiração para o ativismo.

81

Seu empenho foi reconhecido no dia em que o Presidente Lula sancionou a Lei 11.340/2006, que o Brasil passou a conhecer como Lei Maria da Penha─ lei com nome de mulher─ justa homenagem à guerreira que, durante anos, promoveu o debate e estimulou o pleito de proteção e atendimento às vítimas da violência doméstica e familiar.82

Marília Mello alerta para os efeitos desse simbolismo pelo qual se busca associar às mulheres que vivem conflitos familiares à imagem de Maria da Penha. Primeiro porque a lei parece perder um de seus atributos indispensáveis que é a impessoalidade. Segundo porque se cria no imaginário popular a figura da mulher como vítima, buscando, incessantemente, punição para os seus algozes. Como bem destaca essa criminóloga, casos como o de Maria da Penha são exceções entre agressões de que são vítimas as mulheres, as quais, em regra, nada mais

desejam senão o cessamento da violência.83

Embora ainda não seja tema específico deste capítulo, é necessário destacar, a fim de sinalizar para a opção teórica adotada, que a reprodução social da imagem de vítima em busca de apoio em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia, de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito penal simbólico.

81 HERMAN, Leda Maria. Maria da Penha lei com nome de mulher: considerações à Lei nº 11.340/2006: contra a violencia doméstica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. Campinas: Servanda, 2007, p.17.

82 HERMAN, Leda Maria. Maria da Penha lei com nome de mulher: considerações à Lei nº 11.340/2006: contra a violencia doméstica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. Campinas: Servanda, 2007, p.18.

83 MELLO, Marília M. P. de. Do juizado especial criminal à Lei Maria da Penha: teoria e prática da vitimação feminina no sistema penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: SED. 2008, p. 103.

A segunda razão por que se afirma a preponderância simbólica dos mencionados dispositivos penais é que todos foram instituídos sob forte pressão de grupos organizados, atendendo a apelos midiáticos e a campanhas lideradas quase sempre por grupos de mulheres politizadas, integrantes de partidos políticos e que

falavam em nome de uma totalidade.84

A terceira razão, naturalmente, decorrente da primeira, porque atendeu a evidentes fins eleitoreiros, pois, apenas como exemplo, deve-se destacar que a Lei Maria da Penha foi sancionada em 07 de agosto de 2006, pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, num ato público e solene com participação dos movimentos organizados de mulheres, que são grandes formadores de opinião, quando, não por coincidência, iniciava-se uma campanha para reeleição presidencial, entre um eleitorado majoritariamente feminino. Vê-se, pois, aqui a evidência dos fins eleitoreiros do direito penal simbólico a que se referem Hassemer e Roxin.

A quarta, porque a criminalização dessa violência, como se destacou anteriormente, teve como referência modelos em que o uso do direito penal para proteger mulheres visava, declarada e principalmente, à difusão de valores morais e da ideologia de um determinado grupo social. Assim, mesmo que, no Brasil, o caráter simbólico desses dispositivos penais tenha sido lançado pelo discurso, até mais inocente, do retribucionismo, essa função simbólica esteve sempre presente na crença de que a ameaça penal pudesse provocar nos homens uma atitude de maior respeito às mulheres.

Essa pretensão exagerada de difundir valores e reforçar representações ideológicas via direito penal, como se mostrou, é denunciada por Hassemer, que vê nesse recurso uma deturpação da função de proteção de bens jurídicos, que justifica o direito penal, o que tem como consequência o próprio descrédito desse direito.

Terradilos Basoco vai mais além, sugerindo, com base em outros autores85, que

esse uso simbólico pode ter como finalidade calar uma demanda social, exonerando o Estado, que recorre à fácil medida da política criminal, do compromisso com

programas mais amplos de política social.86

84 Cf., MELLO, Marília M. P. de. Do juizado especial criminal à Lei Maria da Penha: teoria e prática da vitimação feminina no sistema penal brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: SED. 2008, p. 92.

85 Terradilos Basoco faz referência a Nitsch e a Easton.

86 TERRADILLOS BASOCO, Juan. Función simbólica y objeto de protección del derecho penal. In:

A quinta razão se configura no déficit criminológico, já mencionado, dos discursos fundamentadores dessas legislações penais, pois a equivocada ou limitada compreensão do fenômeno resulta, consequentemente, em opções político- criminais ineficazes para o enfrentamento da conduta violenta. O que é, facilmente, comprovado quando se coteja o ideal de emancipação dos movimentos feministas e a realidade do sistema, que demonstra a clara ineficácia da proteção penal. As mulheres continuam sendo agredidas, as cifras negras crescem ante ao recrudescimento das normas penais e a operatividade do sistema, ao contrário do que se esperava com a criação dessas leis, fragiliza ainda mais a mulher agredida, como se demonstrará ao longo do trabalho.

Tamanha é a evidência e a predominância desse caráter simbólico que se faz aplicável o argumento de Baratta de que pretensa função instrumental do direito penal sirva apenas para ocultar as funções simbólicas e políticas da pena, a qual

serve para construir ideologias, reproduzindo assim o jogo das relações sociais.87

Percebe-se mesmo que as mencionadas legislações penais parecem apenas contribuir para reforçar um conjunto de estereótipos sobre a relação homem/mulher, no qual aquele domina e esta é dominada, o que, tendo em vista a seletividade operada pelo sistema penal, implicará na reprodução de outras relações desiguais, a respeito das quais se trata no próximo capítulo.

Logo, é possível concluir, preliminarmente, que esses dispositivos não causaram mudanças na realidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora sobre o problema, forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas e criando, no dizer de Vera Andrade, “a

ilusão da segurança jurídica”.88

87 BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas Del derecho penal: una discusión en la perspectiva de la criminologia crítica. In: Criminología y sistema penal. Buenos Aires: IBdeF, 2004, p. 23.

88 Cf. Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal.

CAPÍTULO II – UM APORTE CRIMINOLÓGICO NA COMPREENSÃO DA