Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas. Em noites assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos sob os anéis dos astros, e entre os violinos e os fortes poços da noite descobriria a ardente ideia da minha vida.
Em noites assim amaria o fogo
da minha idade. Cantaria como um louco este grande silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.
Bruxelas com as traves da minha cabeça
e uma grinalda de carvões em torno dos testículos de um homem
bêbado da sua idade. Cantaria com esses testículos negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro derramando o seu baixo e aéreo sangue,
a sua dor, o lírico
fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos. Era tão pura a ideia de que o tempo começava depois do verde e fértil e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto ardia,
a vida esperava com suas torres vibrantes, seus grandes lagos límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz alta, um vidro incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta a ideia de cantar sem fim,
até que a voz consumisse esta garganta sombreada de estreitos vasos puros.
— Cantar fixa e fria e intensamente sobre a minha rasa
luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios de bruxelas do mundo.
II
Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada pelas vozes.
E enquanto dorme o leite, a minha casa pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça — e as palavras nascem.
— Límpidas, amargas. Eis um tempo que começa; este é o tempo.
E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas, é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro. E estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado de seivas, para a noite que estremece
fundamente.
Melancolia com sua forma severa e arguta, com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído, com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa onde o coração se consome devagar.
Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras
antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria —
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.
Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo.
E apagaram-se as luzes.
— Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo. E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite. É primavera. Arde além rodeada pelo sal, por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas. Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu. Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. — É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar.
III
Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio poço dos sons. Ela não dormia, estava
a meu lado, era uma gruta onde a música um instante se torna imensa.
Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês das musas, a penumbra da sua vida
estava coberta de ervas puras. Não dormia. Durante
o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho onde as brasas da cabeça principiam a girar.
Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha sobre os arcos e os tanques e as frestas.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento, eu era profundo e fecundo. O sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos ardiam em mim, nessa monstruosa
noite da criação.
Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida
mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar na minha confusão. Eu era um homem
e tinha na boca o ofício de sorrir o fluxo encantado
das imagens. E tinha as palavras que um homem tem para acender, como fogueiras,
nas margens cantantes e frias das águas do mundo.
Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas do rosto, minha dor e idade
de homem,
debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste, e poderoso e vazio
como uma guitarra, uma coluna de obscuridade que dormia, que não podia jamais dormir
entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite que iria e viria sobre a paisagem
de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos e ocos.
Às vezes eu levantava um braço que deixava arder ou pensava como era forte
a torrente do meu silêncio. Pensava
Os mortos poderiam erguer os corpos submersos na grande ideia
universal, poderiam ouvir a minha voz tão límpida de terrível
alegria.
A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam as aves, os montes atingiam
as corolas celestes, nunca deixavam de correr
as águas que atravessam os povos mais puros do mundo. Era tenebroso e doce que a loucura me viesse
deste lugar, que fosse uma árvore sustentando a minha idade.
Chegava um dia em que ela devia ser obscura, e o meu coração ressoava. Minha dor de homem de novo se inclinava sobre as formas mudas. Porque a terra trabalhava para acender
aquela cidade, porque ela mesma cantaria então, iluminada e humilde
debaixo da noite rolante, da estupenda noite inspiradora. Mas somente para mim
o vento circulava com seus archotes rápidos rápidos
Minha cabeça estremecia contra a almofada de fogo, e o sangue despedaçava as portas,
e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se batidos pelos raios.
Sabia-se agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma da minha vida. Porque a obra era então —
mais que o mundo e as fontes e os leitos dos poderes —
eu, um homem disposto sobre si como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas no renovo das palavras.
Sobre a sombra de um mês confuso e rápido, eu era um homem —
IV
Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato. A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser são minuto a minuto mais concretos. A pedra cai na cabeça do gato e o peixe gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato adormece na palavra, e a mulher toma a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.
Palavra abstracta que arrefeceu no gato e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra. Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra. Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra. Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor. Amo, com o amor do amor,
não só a palavra mas
cada coisa que invade cada coisa que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto em que a mulher eternamente
dentro da casa.
V
Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes. — E nós estamos dentro, subtis, e tensos na música.
Esta linguagem era o disposto verão das musas, o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente. — Porque uma mulher toma-me em suas mãos livres e faz de mim um dardo que atira. — Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto — e doado às coisas mínimas.
Na treva de uma carne batida como um búzio pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra. — Porque me amam até se despedaçarem todas as portas, e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio. Essa mulher cercou-me com as duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue, acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras. Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente. Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.
Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas da carne,
e terrivelmente belo
— não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo. E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada recordação.
Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura. Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem, e atira-a para o espaço.
Sou amado. — E é uma pedra celeste.
Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive. Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas, aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado. Amam-me, multiplicam-me.
VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto à terra nocturna. Junto à terra transfigurada. Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina os meus espinhos frios,
a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.
Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, bate os seus martelos contra um milhão de estrelas. É uma coisa estupenda a primavera que trabalha nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. Inspiro-me na primavera com suas grutas de água atenta, e amo a loucura —
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror. Tenho medo de erguer a voz mais alto
que o meu coração onde uma candeia concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. Que a tristeza me ajude, que me ajudem
os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, todos os mortos, todos os que amam
entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas.
Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, fundo-me no verbo interior da primavera
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. Cantavas o que já se não quebra com o uso
das vozes. Porque tu eras a minha água salgada.
Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. Primavera, como cresces.
Dizer devagar na humidade da carne, evocar tuas colinas de sal, mistério. Tudo em volta da primavera e da noite com uma porta no coração para passar num tremendo silêncio.
Ressuscitar uma vez com a cara extrema junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras evaporam-se, reaparecem em espírito
mastigando giestas. Primavera é uma palavra numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música. Falo tão devagar que mal distingo a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes, e o sangue alimenta a loucura
VII
Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.
Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois, ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando. É uma doce pancada à porta, alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Uma pancada breve, breve —
e eu estremeço como um archote. Eu diria que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima como a minha face.
Essa criança tem boca, há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Um novo instrumento, uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia, uma flor, uma pequena lira,
podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo — um novo instrumento rodeado pelas campânulas
inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,
pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo as grandes cabeças sonhadoras.
Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva. Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me tantas vezes dos mistérios dessa porta.
Porque então é muito estreita com seus espelhos detrás, com o vestíbulo frio.
Mas é tão belo uma criança ainda enevoada, uma criança que ascende como uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho do sexo, da confusa pungência, escuta: da pungente confusão
de um homem restrito com a sua vida tão lenta. Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos. Às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens, e as virilhas em chama.
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta o meu coração.
No outono eu olhava as águas lentas, ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um silêncio completo. Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se a ciência na minha carne
atónita. Escuta: cada vez a minha vida é mais hermética.
Essa criança tem os pés na minha boca dolorosa.
Se ela um dia adormecer com cerejas junto ao pequeno respirar, e sonhar
estes imensos arcos que os séculos vão colocando sob os astros — e se de tudo
a sua cabeça estremecer como numa loucura, com altos picos em volta, com enormes faróis acendendo e apagando — escuta: se essa criança imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente para que ela invente o seu próprio rio
sem nome —
será ainda que do meu sangue se erguem finas raízes, e o tenebroso tumulto
das minhas sombras
está no fundo, no fundo da sua ingénua vida, da sua terrível vida sem remédio.
Se ela morrer, escuta, será que a minha boca diz lá em baixo
essas majestosas e violentas palavras dos poemas.
Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Ela dorme. Escuta:
a sua vida estala como uma brasa, a sua vida deslumbrante estala e aumenta.
Se um dia os archotes incendiarem essa boca, e as faúlhas cercarem
o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta: a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.
VIII
Ingoro quem dorme, a minha boca ressoa.
Despedir-se dos meses é uma nova tarefa, um ofício inquieto. Às vezes na noite
vejo as casas pequenas, as rosas que se voltam para o subterrâneo e subtil
ruído da seiva. Penso nas mulheres de pálpebras descidas, no seu espírito
expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem silenciosamente dentro da sua inocência.
Às vezes na noite ainda jovem, mas que principia a engolfar-se no seu doce hermetismo — tantas vezes
penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde se encontra alguém
com as cegas mãos escorrendo para o fundo o sangue de uma imensa
inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses é um ofício inquieto.
As luzes, as mesas, as armas antigas, os jardins debruçados nas violas paradas. Não sei o que há
tão veloz e tão firme
na base de um homem. Às vezes vejo que é uma invencível doçura, um espanto colorido em redor de uma casa, uma raiva generosa nas mãos iluminadas.
Mas no fundo, no fundo,
é a boca desmanchada que sangra devagar. Ignoro quem dorme, é um ofício novo e louco. uma tarefa perene do coração
sobre quanto se ignora. Minha boca ressoa.
Os próprios meses ressoam como espelhos ardentes, como telhados, cúpulas, livros,
como objectos ardentes.
Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre uma vida eu perguntaria se era
a força de uma vida. Porque os ossos e as veias vão de corpo para corpo,
e despedir-se de tudo é um ofício inquieto. Tudo isto é uma musa, um poder, uma pungente sabedoria. As rosas que há
nas palavras, as palavras que estão
no instável momento que avança e recua ao pé da eternidade — as mãos
rodeando uma lâmpada, essas mãos
docemente cobertas de sangue — tudo isso disposto para a inquietação de um ofício.
Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco. Partem-se, aqui e ali,
alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer do princípio ao fim. É instantâneo,
eterno. Mas é o homem
que recebe a inspiração violenta.
Ignoro quem dorme, a minha boca está no fundo, móvel, coberta de sangue, a minha
boca ressoa como as cavernas de um barco, a minha boca da minha vida
é um ofício. O meu ofício de despedir-me um pouco engolfado na loucura.
A minha tarefa inquieta de pôr a vida na sua oculta loucura.
Tudo isso canta nas galerias dos meses ornados de delgados mastros
acesos. E despedir-se dia a dia
desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas é um mester ainda jovem,
algo que se aprende lentamente com as mãos e a garganta e a testa
e o marulho das águas que correm profundamente em lugares inacessíveis,
sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça coroada de violinos.
É um violento ofício, e no fundo desse ofício violento e puro,
a boca está coberta de um perturbado sangue masculino.