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As Resoluções 1422 (2002), 1487 (2003) e 1497 (2003) do CSNU

3.2 OS ADIAMENTOS DE INQUÉRITO OU PROCEDIMENTO CRIMINAL

3.2.1 As Resoluções 1422 (2002), 1487 (2003) e 1497 (2003) do CSNU

A primeira invocação do artigo 16 do Estatuto de Roma por parte do CSNU se deu em 12 de julho de 2002, apenas duas semanas depois do Estatuto entrar em vigor e quando o TPI sequer estava em operação260. Os EUA, grande opositor do TPI261, estavam preocupados com a possibilidade de seus nacionais atuando em missões de paz serem eventualmente investigados e processados pelo Tribunal262. Ao mesmo tempo, o CSNU estava em vias de renovar a Missão das Nações Unidas na Bósnia e Herzegovina (UNMIBH), que estava expirando263. Nesse

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260 LAVALLE, Roberto. A Vicious Storm in a Teacup: the Action by the United Nations Security Council to

Narrow the Jurisdiction of the International Criminal Court. Criminal Law Forum, n. 14, p. 195 - 220.

261 Apesar dos EUA terem assinado o Estatuto de Roma, o governo Bush demonstrava hostilidade em relação ao

TPI, chegando a anunciar que o Estado jamais ratificaria o Estatuto. Ver: MOSS, Lawrence. op. cit., p. 4.

262 WHITE, Nigel; CRYER, Robert. op. cit., p. 467. 263 Idem.

contexto, os EUA ameaçaram vetar a UNMIBH a não ser que fosse garantido que seus soldados tivessem imunidade de jurisdição do TPI264, gerando uma enorme crise no seio do CSNU.

Após negociações em boa parte privadas, a crise só foi resolvida e o perigo das missões de paz não terem continuidade resolvido com a adoção, unânime, da Resolução 1422 (2002)265. A resolução, adotada a partir do Capítulo VII da Carta da ONU, toma as seguintes providências:

1. Requer, consistente com as previsões do artigo 16 do Estatuto de Roma, que o TPI, se surgir um caso envolvendo um atual ou ex oficial ou pessoal de um Estado contribuinte não Parte do Estatuto de Roma sobre atos ou omissões relacionados a uma operação criada e autorizada pelas Nações Unidas, por um período de doze meses a partir de 1º de julho de 2002, se abstenha de começar ou proceder com qualquer inquérito ou procedimento de qualquer um desses casos, salvo se o Conselho de Segurança decidir o contrário;

2. Expressa a intenção de renovar o pedido do parágrafo 1 sob as mesmas condições a cada 1º de julho para mais um período de doze meses enquanto seja necessário;

3. Decide que Estados Membros não devem agir de maneira inconsistente com o parágrafo 1 e com suas obrigações internacionais;

4. Decide permanecer apreendido à questão.266

A resolução, que foi renovada um ano depois pela Resolução 1487 (2003) em termos quase idênticos267, levantou sérios questionamentos a respeito da sua conformidade com o Estatuto de Roma e mesmo da sua legalidade em relação à Carta da ONU.

A respeito da conformidade com o Estatuto de Roma, ainda que a resolução mencione expressamente o artigo 16 do ETPI e se conforme com o prazo máximo estabelecido pelo dispositivo, algumas previsões da resolução podem ser entendidas como contrárias ao sentido dado pelo artigo 16, especialmente considerando as negociações informais da adoção do dispositivo.

Primeiro, a resolução é extremamente ampla, e não faz menção a um inquérito ou procedimento específico (até porque naquele momento o TPI sequer operava de fato). Mesmo tendo sido elaborada no âmbito da renovação da UNMIBH, a resolução não faz uma menção àquela missão de paz, dando a entender que ela se aplica a qualquer situação envolvendo missões de paz da ONU268. Tal amplitude é inconsistente com o ETPI. Ainda que o artigo 16 não mencione o quão específico devem ser os pedidos de adiamento, uma análise dos travaux

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264 TRAHAN, Jennifer. The Relationship Between the International Criminal Court and the U.N. Security Council:

Parameters and Best Practices. Criminal Law Forum, vol. 24, p. 438.

265 LAVALLE, Roberto. op. cit., p. 195 - 196.

266 ONU. Conselho de Segurança. Resolução 1422 (2002), S/RES/1422.

267 ONU. Conselho de Segurança. Resolução 1487 (2003), S/RES/1487.

préparatoires e das negociações em torno do dispositivo269 permitem interpretar que o dispositivo não foi elaborado para ser utilizado como uma provisão geral a favor de uma classe de pessoas, mas sim em casos concretos e a depender da análise do CSNU daquele caso270.

Segundo, o parágrafo 2 da resolução dá a entender que as renovações dos pedidos de adiamento ao TPI seriam feitos de maneira automática, indo na direção contrária da intenção vista no processo de negociação do dispositivo de limitar temporalmente o uso do artigo 16 e condicionar pedidos de renovação a um novo reexame do CSNU quando este elaborasse uma nova resolução sob o Capítulo VII da Carta da ONU271.

No entanto, o CSNU não é subordinado ao ETPI, de maneira que a legalidade dessas resoluções devem ser estudadas no âmbito da Carta da ONU. Nesse contexto, o problema das resoluções está em não fornecer um vínculo claro com uma ameaça à paz e a segurança internacional que justifiquem a adoção de uma resolução sob o Capítulo VII da Carta (um dos critérios previstos pelo artigo 16).

É certo que a prática do CSNU demonstra que o órgão interpreta o que seria uma ameaça à paz e à segurança internacional de forma ampla. Mas até que ponto a ameaça de um veto dos EUA em uma renovação de uma missão de paz pode constituir, no âmbito do art. 39 da Carta da ONU, uma ameaça à paz e à segurança internacional é incerto. Stahn272 aponta que, apesar da interpretação ampla do CSNU, o Conselho nunca se baseou no art. 39 para justificar a concessão de imunidades no âmbito penal273. Ao expedir a resolução 1422 (2002), o CSNU parece entender que um potencial processo criminal contra agentes de paz da ONU pelo TPI se trataria de uma ameaça à paz, ou parte do princípio de que a ameaça à paz seria a possibilidade de veto dos EUA. De qualquer maneira, isso não responde como a imunidade de jurisdição dessas categorias de indivíduos poderia ser de interesse da manutenção da paz e da segurança.

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269 Nota-se que os trabalhos preparatórios de um tratado podem ser utilizados como recurso suplementar de

interpretação. Ver: CONVENÇÃO de Viena sobre o Direito dos Tratados. 22 maio 1969. Disponível em: https://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/conventions/1_1_1969.pdf. Acesso em: 15/01/2020, art. 32. Quanto às negociações do ETPI, Stahn aponta que a inserção do artigo 16 após os artigos 14 e 15, que lidam com a abertura dos procedimentos no TPI, dão a entender que a possibilidade de adiamento foi concebida para se aplicar não para prevenir a ação do TPI, mas para adiar procedimentos específicos já em andamento. Ver: STAHN, Carsten. The Ambiguities of Security Council Resolution 1422 (2002). European Journal of International Law, vol. 14, nº 1, p. 90.

270 JAIN, Neha. A Separate Law for Peacekeepers: The Clash Between the Security Council and the International

Criminal Court. The European Journal of International Law, vol. 16, nº 2, 2005, p. 247. LAVALLE, Roberto.

op. cit., p. 211.

271 JAIN, Neha. op. cit., p. 247.

272 STAHN, Carsten. The Ambiguities of…, p. 86.

273 Nota-se que imunidades de oficiais de missões de paz normalmente são estabelecidas através de acordos

No entanto, isso não faria a resolução ilegal sob a Carta da ONU, ainda que o CSNU tenha limitações274, uma vez que a decisão acerca de uma ameaça à paz ou à segurança internacional é uma decisão política e cabe em última instância ao próprio CSNU. Apesar de ter “estendido seus poderes do Capítulo VII aos seus últimos limites ao lidar com a questão da imunidade de forças de manutenção da paz como uma questão de paz e segurança internacional”275, as resoluções 1422 (2002) e 1487 (2003) permanecem válidas de um ponto de vista legal. De qualquer maneira, as resoluções não foram mais renovadas após 2003, em razão da ausência de apoio no CSNU276.

Após a Resolução 1487 (2003), outras resoluções surgiram com o condão de impedir procedimentos no TPI. Ainda em 2003, o CSNU adotou a Resolução 1497, envolvendo a guerra civil na Líbia e a autorização de uma força multinacional para apoiar a implementação de um cessar-fogo277. O parágrafo 7 da resolução determinava que os agentes das forças de manutenção de paz de Estados contribuintes e não parte do ETPI estariam sujeitos apenas à jurisdição de seus Estados278. Apesar de existir uma ameaça à paz e à segurança internacional concreta que baseasse essa resolução, ela foi igualmente criticada por excluir certos nacionais tanto da jurisdição do TPI quanto da jurisdição de qualquer outro Estado que não o de sua nacionalidade e por não estabelecer um limite temporal, indo claramente contra a intenção do artigo 16279.