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As terras de índio

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 52-54)

Compreendem domínios titulados, os quais foram entregues formalmente a grupos indígenas ou seus remanescentes, na segunda metade do século passado e princípios deste, sob a forma de doação ou concessão por servi- ços prestados ao Estado. Abertura de estradas pioneiras, colaboração com expedições militares de desbravamento e outros serviços realizados em obras públicas explicam tais atos de consentimento. As titulações, entre- tanto, referem-se, muitas vezes, a tratos individuais, tendo sido concedidas a apenas determinado grupo de famílias. Destaque-se que práticas admi- nistrativas semelhantes, ao longo do tempo, têm nutrido tensões internas de difícil conciliação mesmo em áreas ofi cialmente classifi cadas como terras indígenas,25 como sucede como os Potiguara da região denominada

“extinta sesmaria dos índios de Monte-Mor” (Lobato de Azevedo, 1986, p.241), na Paraíba, a quem foram concedidos títulos de posses particulares pelo governo imperial entre 1867-1869.26

22 Leia a propósito Rinaldi (1981).

23 Leia a propósito Almeida e Esterci (1977, v.II). 24 Ver O’Dwyer (1979, mimeogr.).

25 Cf. art. 4o, § 4o e art. 198 da Constituição de 1946. Para um aprofundamento das implicações

desta conceituação jurídica, consulte Oliveira Filho (1983).

Tanto no Nordeste quanto em regiões do Sul, aqueles grupos alcança- dos pelas concessões governamentais, a exemplo de outros das áreas de colonização antiga, conheceram um acelerado processo de destribalização e de perda gradativa de identidade étnica e passam, no momento atual, por um processo de acamponesamento. A despeito deste processo que implicou, inclusive, perda da língua e de outros itens de cultura, nota-se que seus descendentes diretos permanecem nesses domínios, contrapõem-se às tentativas de intrusamento e continuam a denominá-los pela expres- são com que foram originalmente tratados pela legislação e tal como são designados localmente, ou seja, terra de índio.27 Mantêm-se cultivando e

habitando nessas áreas, há várias gerações, sem qualquer ato de partilha legal que autorize apropriações individuais e desmembramentos. Corres- pondem a diversas extensões, localizadas no Vale do Pindaré (MA), no sertão nordestino, com inúmeros povoados e centenas de famílias, que adotam o uso comum dos recursos básicos e que também os denominam de terra comum (Andrade, 1985).

Os domínios aqui referidos não se encontram entre as áreas indígenas reconhecidas pela Funai e nem seus ocupantes postulam tal, diferentemente de outros grupos, como os chamados Tapeba, no Ceará. É que nas situ- ações enfocadas não se registra uma tentativa de recriação da identidade étnica como meio de acesso à terra. A manutenção dos domínios, nesses casos, encontra-se assegurada de maneira plena, gerações após gerações. Isso causou, não obstante, possíveis tensões existentes entre a apropriação de tratos individuais e aquela das áreas de uso comum. Há momentos em que o acirramento das tensões internas ou de confl itos com os antagonistas tradicionais e externos levam os descendentes diretos a exibirem documen- tos que crêem comprobatórios dos direitos outorgados a seus ancestrais. A efi cácia dessa crença é julgada maior quando se defrontam com ameaças que julgam provenientes daqueles que adotam as normas legais vigentes. Nestes contextos, que tanto podem ser de estabelecer estratagemas para enfrentar grileiros quanto de decidir quem deve pagar para cultivar, têm-se reforçadas as regras que disciplinam a unidade social. Mecanismos de harmonização e equilíbrio entre os interesses individualizadores e aqueles favoráveis ao uso comum mantêm certa coesão, mobilizando-os constantemente. Ao contrário, percebe-se que domínios classifi cados ofi cialmente como áreas indígenas,28 especialmente no Nordeste, não dispõem de mecanismos para 27 São bastante escassas as referências bibliográfi cas que tratam deste tema específi co, disposto

entre os estudos etnológicos e as pesquisas relativas às sociedades camponesas. Para mais esclarecimentos, leia o artigo intitulado “Terra dos índios”, de autoria de Maristela de Paula Andrade, elaborado para o trabalho de campo em Viana (MA), com fi ns de tese de doutorado em Sociologia na USP, e datado de agosto de 1985.

28 Para aprofundamento da situação atual das áreas indígenas leia Oliveira Filho (1987, p.III-

conciliar interesses e mesmo de adotar uma atitude consensual perante os instrumentos, que já usurparam parte considerável das respectivas áreas.

Desse modo, os casos referidos diferem daquelas extensões identifi cadas, delimitadas ou demarcadas legalmente que constituem as terras indíge- nas. Com propósito de uma primeira abordagem podem ser aproximados daquelas situações de espólios indivisos, posto que os títulos não foram revalidados com a morte do titular de direito e, ainda que tenha ocorrido o parcelamento, jamais foram assim apropriadas passado pelo menos um século. Novamente, está-se diante de uma reversão das medidas organiza- doras do mercado de terras a partir da legislação de outubro de 1850. As titulações de posses particulares da demarcação de parcelas individuais, não obstante realizadas, não conseguiram que a ocupação da terra fosse pautada pelos cânones do direito civil. Procedeu-se aos atos formais, en- tretanto os ocupantes, sem contestações signifi cativas, engendraram suas próprias regras de posse e uso da terra. Guardaram zelosamente os títulos sem nunca os revalidar (Azevedo, idem) contudo, e as próprias famílias conhecidas como “dos herdeiros” (Andrade, idem) trataram de diluir o planejado parcelamento na rotina das formas de uso comum.

No documento Estratégias de reprodução social (páginas 52-54)