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Em Diferença e Repetição (1968), Deleuze retoma suas discussões com a psicanálise, desta vez com o propósito de conceber a repetição em sua positividade, uma “repetição complexa” que se faz acompanhar de uma “diferença pura”, independente das figuras da semelhança e da identidade, assim como das figuras do negativo (por oposição e contradição). Veremos que a noção de instinto de morte será retomada, assim como se insistirá na necessidade de se problematizar o “além do princípio de prazer”, em busca da repetição como síntese transcendental. Embora a psicanálise não seja a sua única aliada, é possível encontrar vários pontos fundamentais em que os problemas filosóficos se entrecruzam com os psicanalíticos.

O que Deleuze procura é um novo e prodigioso modo de pensar a repetição, seguindo um impulso inicial dado por Kierkegaard e Nietzsche, assim como pelo escritor francês Péguy. Apesar das diferenças incontestáveis entre estes autores, eles acabam se encontrando no tratamento dispensado à repetição, inclusive por dela fazer uma “categoria fundamental da Filosofia do futuro” (DELEUZE, 1968, p.25). Suas contribuições são resumidas nas seguintes proposições:

- Fazer da repetição uma novidade; ou, como diria Nietzsche, fazer da repetição objeto do querer. A repetição é uma potência que coloca em jogo simultaneamente a salvação e a perdição, a vida e a morte, a cura e a doença.

- Compreender que segundo as leis da natureza, a repetição é impossível (não confundir o eterno retorno com uma repetição de ciclos ou de estações ou com uma “certeza natural animal”).

- Opor a repetição à lei moral, colocando-a acima do bem e do mal.

- Desvincular a repetição das particularidades da memória e das generalidades do hábito: deve-se sair das categorias psicológicas para pensar a repetição como síntese transcendental. Isto permite repensar tanto a antiga categoria de reminiscência quanto a moderna categoria do habitus, considerando que “é pela repetição que o Esquecimento se torna uma potência positiva e o inconsciente, um inconsciente superior positivo” (DELEUZE, 1968, p. 27).

Se estes pensadores coincidem em sua abordagem da repetição, isto se deve, principalmente, ao fato deles terem inventado novas formas de expressão para a filosofia,

62 expressões capazes de suspender a mediação imposta pela reflexão e comunicar-se diretamente com a sensibilidade.

Trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda a representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações mediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. (DELEUZE, 1968, p.29).

Daí a importância de um “teatro da repetição” como modelo para a filosofia, o que permitiria uma encenação dos problemas e a dramatização das ideias, verdadeira passagem da metafísica ao ato, através da experiência de “uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e fantasmas antes das personagens – todo o aparelho da repetição como ‘potência terrível’” (DELEUZE, 1968, p.31). Neste sentido, a psicanálise também teria se aproximado de uma concepção positiva da repetição em sua demonstração do fenômeno da transferência, ao criar um dispositivo que permite viver e atuar a repetição muito mais que representá-la, em uma espécie de encenação em que a tomada de consciência e a lembrança abstrata e intelectualizada não são suficientes.

Freud assinalava, desde o início, que, para deixar de repetir, não basta lembrar-se abstratamente (sem afeto), nem formar um conceito em geral, nem mesmo representar, em toda a sua particularidade, o acontecimento recalcado: é preciso procurar a lembrança onde ela se encontrava, instalar-se de pronto no passado para operar a junção viva entre o saber e a resistência, entre a representação e o bloqueio. Não se cura, pois, por simples anamnese, como tampouco se está doente por amnésia. Neste caso, como em outros, a tomada de consciência é pouca coisa. A operação, bem mais teatral e dramática, pela qual se cura e pela qual também se deixa curar, tem um nome: transferência. (DELEUZE, 1968, p.43).

Assim, também na experiência analítica – cujo princípio fundante é a relação transferencial – é possível vislumbrar uma maneira de suprimir a representação, enquanto “desnaturalização do imediato”, interposta entre a experiência e o pensamento. Já em

Apresentação de Sacher-Masoch (1967, p.124) a transferência indicava-lhe uma “repetição complexa”, “repetição progressiva, que libera e salva, ou que fracassa”. Agora, considerando o próprio tratamento analítico como “uma viagem ao fundo da repetição” (1968, p.43), Deleuze parece buscar na psicanálise o modelo para o seu “teatro da repetição”17, em que a

transferência consiste na montagem de um palco onde os personagens não irão representar papéis previamente estabelecidos, mas “autenticar papéis e selecionar máscaras”; jogo erótico

17 Nota-se que a concepção de teatro é aqui muito mais ampla e rica que aquela que será rejeitada em O Anti-

Édipo (1972). Neste último, a concepção de teatro limita-se à encenação estereotipada de papeis e cenas anteriormente dados, repetição do mesmo, portanto. Daí a associação entre o inconsciente representativo e o teatro, enquanto que para dizer do inconsciente produtivo será preferível o modelo da usina ou fábrica.

63 por natureza em que impera a lei do instinto de morte18, e é por isso que a repetição pode ser a doença ou a saúde, a perdição ou a salvação. Lembremos que Freud elabora a hipótese de um além do princípio de prazer ao refletir sobre os fenômenos de repetição na relação transferencial.

Em suas leituras da obra freudiana, notadamente Além do princípio de prazer (1920), Deleuze encontrou uma investigação transcendental do princípio de prazer, em que a repetição aparecia como síntese de ligação fundamental. Trata-se agora de defender a tese de que a repetição não pode ser simplesmente a reprodução de algo prévio, não deve ser a repetição do passado no presente, mas deve ser ela própria quem fabrica o tempo. Assim, Deleuze parte em busca de uma teoria do tempo coerente com este novo modo de se pensar a repetição e boa parte do desenvolvimento filosófico de Diferença e Repetição (1968) concentra-se nesta intenção, que de certo modo, já se encontra esboçada em Apresentação de

Sacher-Masoch (1967), conforme vimos no capítulo anterior:

(...) a repetição, tal como Freud a concebe nestes textos de gênio, é nela mesma síntese do tempo, síntese “transcendental” do tempo. Ela é simultaneamente repetição do antes, do durante e do após. Ela constitui no tempo o passado, o presente e mesmo o futuro. (...) E se podemos juntar o futuro ou o após às duas outras estruturas da repetição – o antes e o durante – é porque estas duas estruturas correlativas não constituem a síntese do tempo sem abrir e tornar possível um futuro nesse tempo: à repetição que liga, e que constitui o presente, à repetição que apaga, e que constitui o passado, se junta, a partir das suas combinações, uma repetição que salva... ou que não salva (donde o papel decisivo da transferência como repetição progressiva, que libera e salva, ou que fracassa). (DELEUZE, 1967, p.123-124). Assim, Diferença e Repetição retoma o diálogo com Freud porque se torna necessário levar adiante as suas especulações sobre o “além do princípio de prazer”, enquanto momento constitutivo em que se encontra não a repetição subordinada a um prazer obtido ou a se obter, mas a própria repetição enquanto “sínteses passivas do tempo” como condição para que o prazer se torne efetivamente um princípio. O termo instinto de morte é mantido e agora dirá respeito à terceira destas três sínteses.

Problematizar as sínteses do tempo significa pensar o tempo – presente, passado e futuro – fora de suas determinações empíricas ou psicológicas, ou seja, o tempo como forma pura e não como o que uma consciência extrai do movimento do cosmos ou da natureza. Daí o caráter transcendental destas sínteses, sínteses constitutivas do inconsciente, que são os “três

18 Quando Deleuze fala em “lei do instinto de morte”, deve-se levar em conta a observação de que “o domínio das leis deve ser compreendido, mas sempre a partir de uma Natureza e de um Espírito superiores a suas próprias leis, e que tecem suas repetições antes de tudo nas profundezas da terra e do coração, onde as leis ainda não existem” (1968, p.51). Como veremos definido mais a frente, o instinto de morte é a lei capaz de destituir o poder de outras leis.

64 para além do princípio de prazer”. Ao longo deste capítulo, veremos cada uma destas sínteses em detalhes.

O presente vivo, ou a síntese passiva do hábito

Pensar o presente em sua forma pura requer considerar que só este tempo existe, o passado e o futuro nada mais sendo do que dimensões deste presente e emergindo destas primeiras sínteses constitutivas e desta contração de instantes chamada de Hábito: o passado aparece então como um resto formado pela contração de instantes, e o futuro como a expectativa de antecipação desta mesma contração.

O ponto de partida de Deleuze é a tese de Hume de que a repetição nada muda no

objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito19 que a contempla para demonstrar que a repetição não tem em si, ela se desfaz na medida em que se faz, pois cada apresentação possui total independência em relação à outra. Mas no espírito, uma diferença se produz por meio de uma síntese que retêm e contrai as apresentações, permitindo simultaneamente a emergência da subjetividade e a constituição do tempo. Isto permite Deleuze compreender a repetição como sínteses passivas de ligação efetuadas pela imaginação (hábitos), que constitui o sujeito e fabrica o tempo por meio de um processo de extração de diferenças. “Entre uma repetição que não para de se desfazer em si e uma repetição que se desdobra e se conserva para nós no espaço da representação, houve a diferença, que é o para-si da repetição, o imaginário. A diferença habita a repetição” (DELEUZE, 1968, p.118).

Assim, faz-se necessário acompanhar este desenvolvimento teórico em que as noções humeanas de hábito e imaginação serão inseridas em novas relações conceituais, dentre as quais nos interessam as conexões com as teses psicanalíticas. Iniciaremos com a breve exposição de algumas teses de Hume, segundo a apresentação do próprio Deleuze, encontradas em Empirismo e Subjetividade (1953), em Diferença e Repetição (1968) e em um texto de 1972, escrito para compor o capítulo sobre Hume em Histoire de la philosophie de François Châtelet. Em seguida, apontaremos quais temas psicanalíticos entram em jogo nesta composição, a fim de explorá-los em detalhes mais a frente.

19 Espírito equivale aqui à tradução da palavra francesa “esprit”, que por sua vez é traduzida da palavra inglesa “mind”, conforme a utilização original de Hume.

65 É sabido que o primeiro livro publicado por Deleuze foi dedicado à Hume. Empirismo

e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume (1953) derivou-se da tese escrita para obter seu diploma de estudos superiores um ano antes, sob a dupla orientação de Jean Hyppolite e Georges Canguilhem. Deleuze valoriza a originalidade de Hume no que se refere a problematizar a constituição do sujeito pela experiência, afastando-se da filosofia clássica que buscava tudo explicar a partir da pressuposição de um sujeito constituído: “... se pergunta a propósito do sujeito: como se constitui ele no dado? A construção do dado cede lugar à constituição do sujeito. O dado já não é dado a um sujeito; este se constitui no dado. O mérito de Hume está em já ter extraído esse problema em estado puro...”. O dado, neste caso, equivale a “uma coleção de impressões e de imagens” segundo um “princípio de diferença”, pois de acordo com Hume, “tudo o que é separável é discernível e tudo o que é discernível é diferente” (DELEUZE, 1953, p.95). Hume já havia dito que “os homens não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento” (HUME, 1739/1740, p.285). Neste sentido, o que se vê como repetição do mesmo, apenas esconde associações complicadas entre diferenças, e Deleuze retomará em Diferença e Repetição suas teses sobre Hume para demonstrar que a repetição bruta e nua é somente “o invólucro exterior, como uma pele que se desfaz em favor de um núcleo de diferença” (DELEUZE, 1968, p.119).

Deleuze aprende com Hume que a repetição muda alguma coisa no espírito que a contempla, na medida em que o hábito extrai algo de novo da repetição, isto é, extrai a diferença. Tal diferença não pode ser compreendida como aquilo que emerge entre dois elementos externos – pois o problema da diferença continua não bem situado enquanto for baseado num princípio de individualidade –, mas como a ligação intrínseca entre dois elementos, já que é a própria ligação que produz a diferença. Por exemplo:

(...) desta diferença sentida entre o primeiro soar do sino e o segundo: nós não o confundimos, eles são bem diferentes, mas sua diferença não é distinta de sua ligação; para que nós possamos esperar o próximo soar escutando o anterior, é preciso que eles se liguem por nossa expectativa. Não só nós contraímos os hábitos, mas o próprio hábito é uma contração. (DAVID-MÉNARD, p.49).

Deleuze busca mostrar que não é a diferença que está entre duas repetições, pois mais exato seria dizer que a repetição já se encontra entre duas diferenças, uma vez que a repetição é ela própria uma síntese da imaginação, a síntese constitutiva do hábito; no sentido humeano do termo, a repetição é imaginária.

A repetição muda alguma coisa no espírito que a contempla. Trata-se aí da síntese de ligação efetuada pelo hábito, a primeira síntese do tempo, responsável por formar “o tecido de

66 tudo o que se contrai, e assim dos seres vivos”. Mas o que é exatamente esta contemplação do espírito? Contemplar é o mesmo que contrair: “só existimos contemplando, isto é, contraindo aquilo de que procedemos” (DELEUZE, 1968, p.117). Contudo, não é um eu individual e pessoal quem contempla, mas um espírito que se forma na própria contemplação, por sínteses impessoais e biopsíquicas.

Na ordem da passividade constituinte, as sínteses perceptivas remetem à sínteses orgânicas, como a sensibilidade dos sentidos remete a uma sensibilidade primária que somos. Somos água, terra, luz e ar contraídos, não só antes de reconhecê-los ou de representá-los, mas antes de senti-los. Em seus elementos receptivos e perceptivos, como também em suas vísceras, todo organismo é uma soma de contrações, de retenções e de expectativas. Ao nível desta sensibilidade vital primária, o presente vivido já constitui no tempo um passado e um futuro. Este futuro aparece na necessidade como forma orgânica da expectativa; o passado da retenção aparece na hereditariedade celular. (DELEUZE, 1968, p.115).

No nível mais elementar da vida, há uma sensibilidade orgânica que não depende nem de um organismo previamente organizado, nem de um sujeito constituído, e Deleuze ancora- se em Hume para demonstrar que ambos – a organização do corpo, a constituição do sujeito – dependem dos mesmos princípios, das sínteses passivas do tempo (DELEUZE, 1953, p. 97- 98). Haveria uma “sensibilidade vital primária” antes de haver um Eu que sente, uma “contemplação contraente que constitui o próprio organismo antes de constituir-lhe as sensações” (DELEUZE, 1968, p.122). Aí já temos fabricação do tempo, no desdobramento de um passado – a hereditariedade e o instinto como memória e inteligência orgânicas – e de um futuro – a necessidade, forma orgânica da expectativa. De modo que o Eu emerge como um efeito das sínteses passivas biopsíquicas. Trata-se então de defender a noção de um eu passivo, em coerência com o projeto de uma filosofia transcendental. Mas para Deleuze, a noção de eu passivo tal como a concebeu Kant, não é suficiente para adentrarmos no domínio do transcendental.

Retomando a história da filosofia, Deleuze indica que Kant, em objeção a Descartes, inaugurou uma nova concepção sobre o cogito ao mostrar um sujeito fenomênico, passivo e receptivo, aparecendo no tempo:

A espontaneidade, da qual tenho consciência no Eu penso [cartesiano], não pode ser compreendida como o atributo de um ser substancial e espontâneo, mas somente como a afecção de um eu passivo que sente seu próprio pensamento, sua própria inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU, exercer-se nele e sobre ele, mas não por ele. (DELEUZE, 1968, p.132).

Todavia, mesmo tendo Kant operado uma grande revolução na filosofia ao inserir o registro do transcendental no Eu, ao efetuar uma “rachadura no Eu” revelando um sujeito passivo como pura receptividade, “que representa a atividade do pensamento mais do que age,

67 que sente seu efeito mais do que possui uma iniciativa”, escapou-lhe o conhecimento das sínteses passivas independentes de um Eu unificado. No pensamento de Kant, não há sínteses passivas, as sínteses são sempre ativas e voluntárias, operadas por um sujeito já constituído. Portanto, diferentemente de como Kant o pensou, o eu passivo, embora receptivo, deve conservar um poder de síntese; síntese passiva anterior mesmo à constituição de um Eu capaz de ser afetado, pois se entende que a própria capacidade de receptividade do sujeito, sua capacidade de ter afecções, já denuncia a saída do transcendental e a passagem ao psicológico. Assim, seria mais adequado falar em múltiplos eus, eus larvares e locais, “há eu desde que se estabeleça em algum lugar uma contemplação furtiva, desde que funcione em algum lugar uma máquina de contrair, capaz, durante um momento, de extrair uma diferença à repetição”. Assim, o caráter receptivo do Eu, conforme Kant o postulou, deve ser redefinido considerando-se a formação de eus locais pelas sínteses passivas de contemplação ou contração – aí estaria o registro do transcendental, dando conta da “possibilidade de ter sensações, da potência de reproduzi-las e do valor de princípio adquirido pelo prazer” (DELEUZE, 1968, p.122; 147).

Nesta tarefa, Hume é seu grande aliado. Ao considerar que “algo muda no espírito que contempla”, é retomada a concepção de que há uma síntese constitutiva vinculada ao hábito para demonstrar que tal síntese não pode ser ativa, já que ela não é feita pelo espírito, mas se faz no espírito que contempla. Também Hume precisa ser afastado de todo psicologismo e inserido na filosofia transcendental. Assim, pode-se falar em uma síntese passiva, que precede qualquer memória ou reflexão, e que tampouco diz respeito a uma operação do entendimento; é a imaginação, como uma espécie de “placa sensível” com poder de retenção e contração dos elementos, fundindo-os e estabelecendo o presente vivo. Estas sínteses formarão um rico domínio de signos – chamados também de hábitos ou contrações – que pertencem sempre ao presente, no sentido de que “a cicatriz é o signo não da ferida passada mas do fato presente de ter havido uma ferida” (DELEUZE, 1968, p.121).

Mas a vida, ou a experiência, não se constitui somente de uma sucessão contínua de presentes pontuais; daí ser necessário um princípio ativo para que o sujeito se constitua temporalmente e psicologicamente. Na filosofia de Hume, é o princípio de associação que responde pela formação das sínteses ativas.

De acordo com Hume, conhecer é formular relações de causalidades, partindo-se da percepção de um objeto ou ideia como causa da ação ou da existência de outro. Trata-se de uma associação entre dois elementos distintos, operada pela imaginação: a partir de uma

68 repetição de casos independentes AB AB AB, dado A espera-se B. Acontece que este B esperado não é dado na experiência presente, sendo apenas inferido, ou seja, não é algo que resulta de um objeto exterior, mas do poder de síntese da imaginação.

A causalidade me faz passar de alguma coisa que me foi dada à ideia de alguma coisa que jamais foi me dada, ou mesmo que não é dável na experiência. (...) a causalidade é uma relação em conformidade com a qual ultrapasso o dado, digo mais do que o dado ou dável, em suma, infiro e creio, aguardo, conto com... Essencial é esse primeiro deslocamento operado por Hume, que põe a crença na base e no princípio do conhecimento. (DELEUZE, 1972, p.211).

Se a experiência é ultrapassada na imaginação – pela antecipação de algo não dado na experiência atual –, tampouco o entendimento pode raciocinar sobre a experiência sem ultrapassa-la, na medida em que é obrigado a apelar para a retenção de algo já passado, e novamente, não dado na experiência atual. Portanto, é a crença, e não a lógica racional que fundamenta o conhecimento, já que a relação de causalidade entre os termos extrapola a experiência presente, seja remetendo a um futuro (em forma de expectativa) ou a um passado (em forma de memória). Vemos que a questão do tempo se coloca de imediato, e é por isso que tal contração da imaginação é a própria síntese do tempo, na medida em que, sob a influência do hábito, instaura o passado como retenção e o futuro como expectativa no presente vivo: “A experiência é um princípio que me instrui sobre as diversas conjunções dos

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