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Capítulo 1 – Tempo e aspeto

1.2. Aspeto gramatical

Segundo Comrie (cf. 1976: 1-3), o aspeto é diferente da categoria do tempo e designa uma categoria gramatical que representa diferentes formas como uma situação é perspetivada pelo locutor. O tempo gramatical permite localizar uma situação no eixo temporal, através do processo dêitico ou do processo anafórico, de acordo com a relação existente entre o momento da situação descrita pela frase e o momento considerado como um ponto de referência pelo locutor, mas o aspeto permite identificar o ponto de vista que o locutor tem e pode ser veiculado pelo verbo, mas também depende, em língua como o Português, da natureza semântica dos complementos, da presença ou ausência de determinantes, de adjuntos adverbiais (temporais e espaciais), dos auxiliares e semi- auxiliares, etc (Moens, 1987). Isto quer dizer que o tempo e o aspeto são dois elementos bastante distintos: embora ambos se associem e se influenciem mutuamente, o tempo constitui uma categoria dêitica e externa que orienta uma situação no eixo temporal enquanto que o aspeto é uma categoria não dêitica, ou seja, uma estrutura temporal interna, que dá ênfase ao desenvolvimento interno duma situação sem relacionar o tempo da situação com qualquer ponto temporal de referência.

Smith (1991) considera que o locutor maioritariamente considera uma situação descrita pela frase como uma situação concluída (perfetiva) ou uma situação não concluída (imperfetiva), o que também significa que a distinção mais comum do aspeto gramatical reside na diferença entre o aspeto perfetivo4 e o aspeto imperfetivo.

O aspeto perfetivo funciona como um ponto de vista externo, através do qual uma situação é perspetivada como um todo não analisado, que inclui o seu ponto inicial e final. Todas as situações que veiculam a perfetividade são consideradas na sua integridade. Contudo, o aspeto imperfetivo constitui um ponto de vista interno que apresenta uma situação como uma imagem parcial sem abranger o seu ponto inicial nem o ponto final.

Em Português, o presente e o pretérito imperfeito são dois tempos gramaticais que

4 Em alguns casos, distinguimos o aspeto perfetivo do aspeto perfeito. Segundo Comrie (1976: 12), “the

perfect aspect refers to times later than the situation and places emphasis on the resultant phases (or states) of situations rather than on inceptive phases.” Por exemplo, o aspeto perfeito destaca-se na estrutura temporal “have + past participle” em inglês. Neste trabalho, concentramo-nos apenas nas duas categorias: aspeto perfetivo e aspeto imperfetivo.

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expressam a imperfetividade. Por outras palavras, tendo em conta o Núcleo Aspetual5, o aspeto perfetivo, é um modo da apresentação da estrutura temporal interna duma situação em que se focaliza o processo preparatório, o ponto de culminação, bem como o estado resultante (cf. Moens, 1987). O aspeto imperfetivo, no entanto, apenas acentua o processo preparatório, através do qual a situação descrita pela frase não está concluída. No entanto, regista-se que também existe o aspeto neutral nas línguas em que não é necessário expressar o valor aspetual nalgumas circunstâncias, como, por exemplo, no caso do Mandarim e do Cantonês.

Numa língua como o Português, além dos valores aspetuais perfetivo e imperfetivo, fala-se de aspeto habitual em (3a) e (3b), tendo em conta os elementos linguísticos em relação à constituição temporal interna duma situação, que refere, na linha temporal, uma pluralidade de situações que toma o momento de enunciação como o ponto de referência; aspeto iterativo em (3c), que situa, na linha temporal, um evento que se repete regularmente durante um determinado período de tempo; aspeto genérico em (3d), que situa um evento como atemporal na linha temporal.

(3) a. O Pedro pratica atletismo.

b. O Pedro costuma levantar-se às 8h00. c. O Pedro tem estudado muito ultimamente. d. Um homem não chora.

Como os exemplos (3a) - (3d) nos mostram, os elementos linguísticos como tempos verbais, que funcionam como operadores aspetuais quando se combinam com eventos, em (3a), (3c) e (3d), operadores aspetuais em (3b) veiculam diferentes valores aspetuais. Em Português Europeu, destaca-se que, na maioria dos casos, o valor aspetual das frases é derivado, podendo veiculado por diferentes processos gramaticais como morfemas flexionais dos tempos verbais, operadores aspetuais (como, por exemplo:

costumar, começar a, continuar a, acabar de, e.o.), adjuntos adverbiais e natureza

sintático-semântica dos sintagmas nominais, em particular os complementos (cf. Oliveira,

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2003: 133).

Mais precisamente, os mecanismos gramaticais são, como mencionado anteriormente, os tempos verbais, exemplificado em (4a) com o presente do indicativo “corrige”, obtendo-se a leitura habitual. Em relação aos operadores aspetuais, os verbos de operação aspetual principalmente são os verbos auxiliares ou semiauxiliares com valor aspetual, que em (4b), com “acabar de”, atribui aspeto terminativo. Em (4c), a combinação de ausência de artigo (nome simples) no complemento com a expressão adverbial “durante muitas horas” transforma um processo culminado como “corrigir testes” em processo. A natureza sintático-semântica diz respeito, em geral, aos complementos do verbo. Assim, é relevante se o nome é contável ou não, se está no singular ou no plural e se tem determinantes. Em (4d), o complemento é constituído por um nome contável no singular, com determinante, o que permite apenas a expressão adverbial em X tempo (processo culminado), pois com durante X tempo o processo culminado transforma-se em processo.

(4) a. O professor corrige testes dos seus estudantes. b. O professor acabou de corrigir os testes.

c. O professor corrigiu testes durante muitas horas. d. O professor corrigiu um teste em dez minutos.

No caso do Mandarim e do Cantonês, além das expressões adverbiais, usa-se os marcadores aspetuais com o valor perfetivo e imperfetivo, como a Tabela 1 nos mostra:

Nome Marcadores do Mandarim Marcadores do Cantonês

Marcador perfeito -了 (-le) - 咗(-zo)

Marcador experimental -过 (-guo) - 過(-gwo)

Marcador durativo -着 (-zhe) -着(-zyu)

Marcador progressivo 在- (zai-) -緊(gan)

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No entanto, além de processos gramaticais para atribuir valor aspetual às frases (obtido por composicionalidade de vários elementos na frase), a língua portuguesa também tem uma outra forma (não muito produtiva) que apresenta valor aspetual: processos de natureza morfolexical, principalmente de morfologia derivacional de verbos como, por exemplo, saltitar, rejuvenescer, bebericar etc. Tal como nas línguas em geral, para se poder entender a interpretação aspetual, o Português Europeu também recorre a classes aspetuais a que se chama aspeto lexical, cuja tipologia varia consoante as propostas (estados, processos, processos culminados, culminações e pontos, por exemplo) (cf. Oliveira, 2003, Cunha, 2013, para o Português).

Quando se fala do aspeto lexical, verifica-se que a expressão do tempo faz parte da propriedade inerente duma situação refletida no léxico como verbos ou outros itens lexicais. Portanto, o aspeto gramatical, como já referimos acima, diz respeito ao aspeto manifestado na frase, recorrendo a elementos morfossintáticos e semânticos e o aspeto que provém do significado de verbos (e sua estrutura argumental) chama-se, em geral, aspeto lexical, ou Aktionsart.

Na parte seguinte, ao analisar as diferenças relativamente ao aspeto perfeito e imperfeito dos tempos do Passado no Português e também no Mandarim e no Cantonês, abordaremos as combinações entre as três categorias gramaticais (tempo, aspeto gramatical e aspeto lexical) que são de importância fulcral e contribuem muito para esclarecer bem as distinções entre o Português e outras duas línguas.