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Capítulo 1 – Tempo e aspeto

1.3. Aspeto lexical

Como se afirmou antes, o valor aspetual não é apenas refletido através do seu próprio sistema gramatical, mas também depende do perfil temporal interno de uma situação, a que chamamos aspeto lexical, tipologia aspetual ou Aktionsart (Klein, 2009: 59). É evidente que cada situação dispõe da sua própria estrutura interna temporal determinada principalmente pelo verbo sem considerar o tempo gramatical nem o ponto de vista projetada pelo locutor sobre tal situação. Além de informações veiculadas pelo

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verbo, o aspeto lexical também pode ser obtido pelos complementos do verbo, por diferentes sintagmas preposicionais e por algumas características semânticas apresentadas pelo sujeito, como os seguintes exemplos nos mostram respetivamente (Moens, 1987, Cunha, 2013: 605, Oliveira, 2003, e.o.):

(5) a. O João comeu maçãs durante meia hora. [processo]

b. O João comeu uma maçã em cinco minutos. [processo culminado] (6) a. Ela nadou no rio (durante meia hora). [processo]

b. Ela nadou para a outra margem do rio (em 31m e 32s). [processo culminado] (7) a. A andorinha chegou (às 2 horas). [culminação-situação télica]

b. As andorinhas chegaram (durante as primeiras semanas de março). [situação atélico]

As frases dos exemplos, sem dúvida, conduzem-nos a prestar atenção à classificação do aspeto lexical. De facto, a tentativa de distinguir as diferentes classes aspetuais remonta a Aristóteles, que define os verbos com um ponto final como kinesis e os sem um ponto final como energeia na sua obra Metafísica. Noreen (1923) até defende que existem 17 diferentes classes aspetuais. No entanto, os linguistas normalmente utilizam as 4 categorias do aspeto lexical de Vendler (1967): estado, atividade (processo em Moens, 1987), ‘accomplishment’ (processo culminado em Moens, 1987) ‘achievement’ (culminação em Moens, 1987). Smith (1991) acrescenta, à proposta clássica da classificação de Vendler, mais uma categoria aspetual - semelfactivos, ou mais comum, pontos, que Moens (1987) propõe. Assim, as classes aspetuais básicas podem ser divididas em cinco categorias de acordo com algumas propriedades temporais de cada situação, que funcionam como critérios quanto à distinção do aspeto lexical. As tais propriedades basicamente incluem dinamicidade, duratividade, telicidade e homogeneidade propostas por diferentes autores e apresentadas para o Português em Oliveira, 2003 e Cunha, 2013: 589, cujo quadro abaixo se reproduz:

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Dinamicidade Duratividade Telicidade Homogeneidade

Processo + + - + Processo culminado + + + - Culminação + - + - Ponto + - (-) - Estado - + - +

Tabela 2 - Classes aspetuais básicas

A primeira propriedade mencionada, a dinamicidade, tem a ver com as mudanças internas duma situação. As situações caracterizadas pela dinamicidade chamam-se eventos, que podem ser subdivididos em processos, processos culminados, culminações e pontos. Para esclarecer melhor a dinamicidade, podemos dizer que consideram uma situação dinâmica quando as suas fases intrínsecas progridem temporalmente, o que altera o estado de coisas em que participam e deixa as alterações visíveis e detetáveis. Por outro lado, as situações não dinâmicas são designadas por estados6, cuja estrutura interna se encontra inteiramente uniforme, quer dizer, as suas fases sucessivas decorrem durante um determinado intervalo de tempo sem causar qualquer mudança no estado das coisas descrito. Finalmente, usa-se normalmente o imperativo como um dos testes a fim de distinguir os estados dos eventos, dado que não é, em geral, aceitável utilizar o imperativo com estados7:

(8) a. Maria, estuda! [evento]

6 De acordo com a proposta de Cunha, 2004, os estados lexicais podem dividir-se em duas categorias

diferentes: os estados faseáveis e os estados não faseáveis. Os primeiros ocorrem com construções progressivas (estar a +inf.) enquanto que os segundos não. Por exemplo:

(1) A Maria está a ser simpática. [estado faseável] (2) * A Maria está a ser alta. [estado não faseável]

7 Os testes para distinguir estados de eventos são em geral o imperativo e o progressivo. No entanto, os

estados faseáveis podem ocorrer em ambos os casos: Maria, sê simpática com os convidados! / A Maria

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b. *Maria, gosta de estudar! [estado]

A segunda propriedade relacionada com a distinção do aspeto lexical, a duratividade, diz respeito a uma situação se poder prolongar num determinado intervalo de tempo. Portanto, é óbvio que uma situação durativa pode ocorrer com a expressão adverbial composta pela preposição durante e uma quantidade de tempo (durante X

tempo):

(9) a. A Maria estudou durante duas horas. [processo] b. Ele nadou durante uma tarde inteira. [processo]

A telicidade significa que numa situação existe o seu próprio limite ou a sua fronteira final. Como Cunha (2013: 589) refere, uma situação télica acaba quando se atinge a sua meta final, independentemente da quantidade de tempo que se leva, ao passo que uma situação atélica só acaba quando se lhe impõe arbitrariamente um limite temporal.

A homogeneidade refere-se à relação existente entre as subpartes que constituem uma situação e a situação global. Uma situação é homogénea quando as suas partes constitutivas não diferem da situação completa considerada globalmente. Por exemplo, a verdade da frase “a Maria correu durante duas horas” pode implicar a verdade da frase “a Maria correu durante meia hora”. No entanto, as subpartes duma situação não homogénea (ou heterogénea) já não mantêm as mesmas características da situação considerada globalmente. Mesmo sendo verdadeira a frase “a Maria fez o trabalho de casa em 3 horas”, não se pode implicar que “a Maria fez o trabalho de casa nas primeiras duas horas dessas 3 horas”. Aliás, no caso de distinguir os processos dos estados, que apresentam muitas propriedades iguais exceto a dinamicidade, vale a pena sublinhar que os processos admitem qualquer pausa no todo homogéneo, mas os estados não aceitam.

Os estados são situações atélicas e dentro dos diferentes eventos, os processos culminados são télicos, bem como culminações. No entanto, visto que as culminações e os pontos não têm a propriedade de duratividade, distinguimo-los dos processos culminados usando duas expressões adverbiais: em X tempo e a X tempo. Os processos

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culminados ocorrem com a expressão em X tempo enquanto as culminações e os pontos admitem usar a expressão adverbial a X tempo:

(10) a. A Maria leu um livro em três horas. [processo culminado] b. O presidente faleceu às 2 horas da tarde. [culminação]

Em relação à distinção entre culminações e pontos, uma das grandes diferenças entre culminações e pontos é que as primeiras têm estado consequente (“a Maria caiu” – “a Maria está caída”) e os pontos não têm (“a Maria espirrou”/* “a Maira está espirrada”). Aliás, os pontos obtêm a leitura iterativa quando ocorrem na construção progressiva. Por exemplo, a interpretação da frase “o João está a espirrar” é entendida como a situação de espirrar acontecer muitas vezes. Contudo, na mesma construção progressiva as culminações perdem a culminação é-lhes acrescentado um processo preparatórios tal como se pode ver no Núcleo Aspetual abaixo (cf. Oliveira, 2003 e Cunha, 2013: 603, e.o.).

Assim, já podemos usar os testes referidos acima para distinguir as diferentes classes aspetuais, inclusive empregando o imperativo, expressões adverbiais e construção progressiva. Veja-se o Esquema 2 em que se resumem os critérios da classificação:

40 Esquema 2 – Testes para cada classe aspetual

Por outro lado, destaca-se que existe possibilidade de transição entre diferentes classes aspetuais por causa de alguns elementos linguísticos que contribuem para a alteração aspetual como tempos verbais, complementos do verbo, expressões adverbiais e características do sujeito. Moens (1987: 64-65) define que a possibilidade destas alterações se deve a uma estrutura comum partilhada por todas as classes aspetuais, que é designada por Núcleo Aspetual. O Núcleo Aspetual, segundo o mesmo linguista, é composto por três fases distintas: um Processo Preparatório, Ponto de Culminação e Estado Consequente e esta proposta pode ser apresentada numa linha como o Esquema 3 indica:

Esquema 3 - Núcleo Aspetual Situação Evento 1. Procresso - durante X tempo 2. Processo culminado - em X tempo a X tempo: 1. Culminação - leitura pontual

2. Pontos - leitura iterativa

Estado (não dinâmico)

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De acordo com o Núcleo Aspetual, as distinções entre as classes aspetuais ficam mais claras: os processos representam apenas o desenvolvimento do Processo Preparatório, os processos culminados correspondem a todas as três fases, as culminações descrevem as últimas duas fases e os pontos, que servem como um único instante, representam, possivelmente, somente a Culminação. Portanto, a realização das transformações aspetuais, de facto, significa a adição ou a omissão de fases do Núcleo Aspetual à base das fases focadas por cada classe aspetual, como os exemplos em (5), (6) e (7) mostram. Moens & Steedman (1988) explicam mais detalhadamente assim:

Any or all of these elements may be compound: for example, the preparation leading to the culmination of reaching the top of Mt. Everest may consist of a number of discrete steps of climbing, resting, having lunch, or whatever. The consequent state may also be compound; most importantly, it includes the further events, if any, that are in the same sequence of contingently related events as the culmination. Similarly, the culmination itself may be a complex event. For example, we shall see below that the entire culminated process of climbing Mt. Everest can be treated as a culmination in its own right. In this case, the associated preparatory process and consequent state will be different ones to those internal to the culminated process itself. (Moens & Steedman, 1988:19)

Além disso, existem, sem dúvida nenhuma, alguns vínculos fundamentais entre o aspeto gramatical e o aspeto lexical. Tanto em Mandarim como em Cantonês, por exemplo, não há possibilidade de aplicar os marcadores imperfeitos (zhe, zai em Mandarim e zyu, gan em Cantonês) às culminações. Relativamente à língua portuguesa, a distinção entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito também se encontra, na maioria dos casos, nas diferentes interpretações resultantes das diferentes combinações de cada classe aspetual com o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito. Tais diferenças entre estes dois tempos verbais voltam a ser discutidas no Capítulo 2, bem como as propriedades dos marcadores aspetuais em Mandarim e em Cantonês.

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