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Até aqui foram feitas referências à noção da desigualdade como um fenômeno que ocorre no âmbito da distribuição efetiva dos frutos do trabalho, seja ela feita pelo mercado, seja pelo Estado, tomando como parâmetro a distribuição da renda e as oportunidades de acesso a bens e serviços sociais. Entretanto, para a análise da nova institucionalidade da assistência social que tem em seu cerne o caráter declaratório e assecuratório dos direitos sociais, respectivamente via Constituição de 1988 e LOAS, considera-se essencial a distinção entre as noções de pobreza e de desigualdade. Dizendo de outro modo, a distinção entre pobreza e desigualdade social torna-se fundamental para a análise da qualidade dos direitos de assistência social, levando em conta o que Marshall (1963 apud COHN, 2003) já apresentava no início da década de 1960: o dilema da tensão irredutível, no que diz respeito aos

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Inspirado na expressão “cimento cívico” utilizado por Putnam (2005) para fazer referência à constituição das comunidades cívicas no norte e no sul da Itália, a expressão “liga cultural”, concebida para o contexto de análise deste trabalho, adota uma noção flexível e dinâmica das relações sociais, fugindo à noção rígida ou “cimentada”.

direitos sociais, entre os princípios da igualdade que os postula e as desigualdades inerentes ao mercado.

Segundo Cohn (2003), a matriz da pobreza distingue-se da matriz da desigualdade social, quando se põe em destaque a questão dos sujeitos sociais, o lugar que eles ocupam nas sociedades contemporâneas e suas novas implicações sociais e políticas. O tema da pobreza nos debates de natureza pública nas duas últimas décadas foi fortemente influenciado pelo ideário do Consenso de Washington, evidenciando parâmetros e preceitos tradicionais como as diferenças hierárquicas e a condição social dos indivíduos que compõem a sociedade, sob a ótica das “classes sociais”. Seja na vertente weberiana, que classifica os indivíduos por acesso a bens materiais e imateriais, seja na vertente marxista, que classifica os indivíduos pela sua inserção na produção, prevalece o trabalho como o fator social que determina as diferenças hierárquicas e a condição social dos indivíduos. Diante da conhecida crise do mundo do trabalho, a questão que se apresenta é a ausência do trabalho como fator de referência para a inserção social dos indivíduos. Desse modo, os distintos graus de inserção social, da pobreza e da exclusão social, passam a ser pautados por níveis de renda.

Sob o critério dos níveis de renda, os pobres são os que percebem um valor mensal abaixo de determinado valor, definido arbitrariamente sob a lógica comparativa das classes dirigentes. Nessa perspectiva, são classificados os miseráveis e os indigentes, aqueles que não conseguem garantir o mínimo de sobrevivência sequer alimentar. Esses grupos, então identificados como de baixa renda, passam a ser objeto de intervenção do Estado por meio de políticas públicas neles focalizadas. Assim, a pobreza permanece circunscrita ao círculo restrito de ações que constituem apenas paliativo para as necessidades imediatas dos grupos que podem ser identificados como pobres ou indigentes. Essa noção de pobreza coloca a noção de desigualdade como fenômeno inerente ao mercado, donde a concepção de direito de cidadania tende ser substituída pelo direito de consumidor. (COHN, 2003)

Outra concepção de desigualdade emerge no momento em que surgem os novos movimentos sociais colocando em cena sujeitos ocupando lugares sociais distintos daqueles tradicionalmente ocupados pela classe trabalhadora organizada em sindicatos.8 Esses movimentos sociais ou “novos” sujeitos coletivos, como denomina Cohn (2003), caracterizam-se por um forte traço reivindicativo por demandas sociais com base em sua especificidade e sua particularidade, objetivando um patamar de justiça social que implica a igualdade de direitos associada ao direito à diferença. Pode-se entendê-los como movimentos de significados plurais como forma de ação coletiva baseada na solidariedade, na busca de fins materiais e não materiais que consideram injustamente negados pelo Estado.

De modo distinto da pobreza referenciada pelo nível de renda, “a desigualdade social implica necessariamente a posição relativa de distintos segmentos sociais entre si, uma vez que o fator nuclear reside na distribuição comparativa dos indivíduos em gradientes distintos de acesso ao consumo e a determinados serviços” (COHN, 2003, p. 11, grifo nosso). A consideração das relações dos segmentos entre si realça o poder de organização da sociedade civil no seu interior e na sua relação com o Estado. Segundo a autora, esses “novos” sujeitos revelam- se como constituintes de novas formas de sociabilidade que apontam para a transformação da sociedade civil. Assim, poder-se-ia pensar na possibilidade de criar e difundir na sociedade uma nova cultura política na manifestação dos conflitos sociais e na sua relação com o sistema político.

Novas perspectivas de democracia poderiam emergir, caso se pudesse contar com uma cultura política orientada por outra noção de justiça social que, mais do que legitimar a ordem vigente, desenvolvesse outra percepção sobre as desigualdades a ponto de deslegitimar a ordem, configurando a sociedade civil mais como um movimento constituinte de um padrão de sociabilidade pautado nos direitos sociais do que como uma esfera constituída e institucionalizada pela cultura do favor e da subserviência ao poder oficial. Segundo Cohn (2003), a condição para que a ordem

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Importa ressaltar que no Brasil os sindicatos de trabalhadores foram institucionalizados sob a tutela do Estado, no período da primeira gestão do governo Vargas, como estratégia denominada de “incorporação controlada”.

instituída integre no processo decisório os múltiplos atores sociais presentes no novo cenário das sociedades contemporâneas é que os movimentos sociais transitem de uma prática política defensiva para uma prática política ofensiva.

No caso brasileiro, um dos grandes dilemas é o fato de os movimentos sociais, na sua maioria, estarem vinculados à noção de carência, fazendo desses sujeitos coletivos os excluídos e os discriminados, dificultando a tradução das suas ações reivindicativas em direitos – que implicam a prestação pelo Estado de serviços legítimos para cidadãos livres e iguais perante a lei –, mas, sim, em benesses concedidas pelo Estado (COHN, 2003, p. 13). O alto grau de desigualdade social da nossa realidade apresenta um quadro de carência generalizada, influenciando, muito significativamente, a continuidade dos processos de legitimidade da benesse em detrimento do caráter mais ofensivo dos movimentos sociais comprometidos com a construção da democracia e da cidadania.

A institucionalidade da assistência social que lhe confere o status de política pública, de caráter universal e redistributivo, declara uma noção de pobreza que substitui aquela restrita à indigência econômica por uma noção de vulnerabilidade social. A orientação dessa nova institucionalidade é de tratar de modo intersetorial as necessidades sociais, em especial no que se refere aos projetos de enfrentamento da pobreza. A idéia de intersetorialidade inscrita na política da assistência social objetiva atender, por meio da interface com as demais políticas sociais, diferentes demandas respeitando as especificidades e as particularidades de distintos segmentos considerados “necessitados”,9 sob o princípio da inclusão social. Na realidade, parece que o critério pautado por níveis de renda vem predominando, quando se observa que as ações que se orientam por esse critério, como é o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), desde a data de sua implementação (1996) até os dias atuais encampam, em média, dois terços ou mais do montante total da execução orçamentária da assistência social, restando para os projetos de

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De acordo com o art. 203 da Constituição de 1988: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social [...]”

enfrentamento da pobreza e para as demais ações uma fatia orçamentária bastante reduzida.

A nova institucionalidade legal da política da assistência social prevê a participação da sociedade no processo de tomada de decisões políticas por meio dos conselhos constituídos de modo paritário, representando as três esferas do governo, além das conferências nacionais precedidas das estaduais e municipais, como instâncias deliberativas. São também espaços de representação, com base nas novas orientações do SUAS, as Comissões Intergestoras Bipartite e Tripartite, como instâncias de pactuação e articulação de interesses das distintas esferas de governo e da sociedade civil e também outros espaços de interlocução e negociação que podem ser estruturados em diferentes momentos, em instâncias locais e regionais. Em face desse novo modelo instituído, reconhece-se a ampliação de espaços de participação e de constituição de novas formas de sociabilidade dos atores envolvidos na assistência social, dentre eles gestores e usuários da política, com implicações no fortalecimento da capacidade organizativa e reivindicativa, bem como nas elaborações das noções de justiça social e suas determinações nos processos de legitimação e de deslegitimação das desigualdades sociais.

1.3 A política de assistência social: o novo marco legal/institucional a partir da