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1. Introdução

1.3 Atenção psicossocial em contraponto ao modelo biomédico

Após essa contextualização histórica sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil e no mundo, é fundamental que sejam pontuadas as diferenças entre as visões do modelo biomédico e da atenção psicossocial, dois paradigmas que olham para os processos promoção de saúde mental - e de saúde como um todo - de formas distintas e contrastantes.

O modelo biomédico ou mecanicista teve seu início vinculado ao contexto renascentista e a todas as revoluções artísticas, culturais da época, para além das diversas mudanças de ordem técnico-científica ocorridas a partir do século XV, e apesar deste modelo datar de vários séculos passados, ainda é predominante na medicina atual. (BARROS, 2002)

Nesse paradigma, o alvo do interesse médico passou a ser a descrição clínica dos achados propiciados pela patologia (BARROS, 2002). Dessa forma, a doença foi postulada como um desvio do normal com uma ênfase voltada exclusivamente às anormalidades biológicas (RAMOS, 2018).

A ênfase sobre os sistemas corporais como um todo foi substituída pela tendência a reduzir os sistemas a partes menores, de modo que cada sistema era considerado separadamente. Ao mesmo tempo, o olhar clínico saiu do individual e voltou-se para os aspectos universais da patologia. [...] A busca de uma etiologia específica apoiou ainda mais essa tendência em direção ao reducionismo, pois procurava uma única causa específica de doença [...] Além do mais, o reducionismo era indispensável à experimentação em laboratório, a qual exigia que um sistema fosse controlado por uma ou poucas variáveis. [...] A referência ao paciente como indivíduo foi posta de lado porque se acreditava que essas normas eram essencialmente universais [...] Medidas, testes e diagnósticos podiam ser feitos sem considerar as características sociais, morais e psicológicas do paciente. Desse modo, a prática de enfocar as qualidades específicas do paciente foi desencorajada. [...] Concluindo, ao entrarmos no século XX com uma visão fragmentada do homem, percebemos no campo médico uma ênfase na compartimentalização, objetividade, concretude e padronização de sintomas. (RAMOS, 2018. p 32 - 34)

Sobre a medicina, Canguilhem acrescenta em seu texto que:

[...] a medicina de hoje fundamentou-se, com a eficácia que cabe reconhecer, na dissociação progressiva entre a doença e o doente, ensinando a caracterizar o doente pela doença, mais do que identificar uma doença segundo o feixe de sintomas espontaneamente apresentado pelo doente (CANGUILHEM, 2005, p.

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A partir disso, é possível afirmar que essa perspectiva também pauta a psiquiatria hegemônica, que por sua vez, alicerçada pela legitimidade atribuída à ciência, se usa das classificações de transtornos mentais, construindo modelos de classificação que são reivindicados como seus objetivos de pesquisa. Nesse contexto que surgiram os manuais de diagnósticos, como é o caso do Diagnostic

and Statistical Manual of Mental Disorders4 (DSM), considerado a “bíblia” da psiquiatria contemporânea, não só pela sociedade, como também por inúmeros profissionais da saúde mental (FREITAS e AMARANTE, 2017).

Tal modelo psiquiátrico, moldado à luz dos pressupostos biomédicos, foi obtendo como sua característica mais fundante um sistema ‘terapêutico’ baseado na hospitalização (AMARANTE, 2007):

O hospital tornou-se, a um só tempo, espaço de exame [...], espaço de tratamento (enquadramento das doenças e doentes, disciplina do corpo terapêutico e das tecnologias terapêuticas) e espaço de reprodução do saber médico [...]. Mas, se é verdade que este novo modelo produziu um saber original sobre as doenças, em contrapartida, é verdade que este saber referia-se a uma doença institucionalizada, isto é, a uma doença modificada pela ação prévia da institucionalização. Em outras palavras, a doença isolada, em estado puro, como pretendia a história natural, terminava por ser uma doença produzida, transformada pela própria intervenção médica. (AMARANTE, 2007, p. 26)

Ademais, a psiquiatria hegemônica, por considerar a doença como um objeto natural e externo ao indivíduo, passou a se ocupar exclusivamente da doença, esquecendo-se dos indivíduos, que ficaram simplesmente como pano de fundo, ou seja, o sujeito é colocado em parênteses para analisar a doença. Franco Basaglia, precursor da reforma psiquiátrica italiana, por sua vez, propôs o contrário: colocar a

“doença em parênteses” para se ocupar do sujeito em sua experiência. Essa proposta não recusaria, porém, a existência do sofrimento, da dor, do mal-estar e até da doença em si:

A estratégia de colocar a doença entre parênteses é, a um só tempo, uma ruptura com o modelo teórico-conceitual da psiquiatria que adotou o modelo das ciências naturais para conhecer a subjetividade e terminou por objetivar e coisificar o sujeito e a experiência humana.

E na mesma medida em que a doença é posta entre parênteses, aparecem os sujeitos que estavam neutralizados, invisíveis, opacos, reduzidos a meros sintomas de uma doença abstrata. (AMARANTE, 2007, p. 67)

Através dessa troca de posições, em que o sujeito, em sua complexidade, toma a centralidade, é possível ampliar as concepções de integralidade no campo da saúde mental e da atenção psicossocial (AMARANTE, 2007). Dessa forma,

4Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

podemos definir as abordagens psicossociais como aquelas que visam a (des)institucionalização, a construção da autonomia possível e a superação de práticas de saúde curativas individuais, que promovem um distanciamento estrutural para com as relações sociais e subjetivas do indivíduo (SOALHEIRO e MARTINS, 2017). Ou seja:

Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se pretende é uma rede de relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam -médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muitos outros atores que evidenciados neste processo social complexo - com sujeitos que vivenciam as problemáticas - os usuários e familiares e outros atores sociais [...]

Os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que estariam deixando de lidar com as pessoas e sim onde a crise possa ser com as doenças.

Como devem ser lugares onde a crise possa ser acolhida (AMARANTE, 2007, p. 84 - 85)

Dessa forma, fica claro o alinhamento entre o modelo reformista às práticas de atenção psicossocial. E para que atenção psicossocial, focada em práticas não manicomiais, possa ter êxito, é indispensável “defender mecanismos e critérios de financiamento que reforcem as propostas da Reforma - como a construção de redes territoriais de assistência, o estímulo a dispositivos do tipo CAPS, a implantação de programas de moradia e assim por diante” (BEZERRA JR., 2007), ou seja, é necessário defender dispositivos do sistema público de saúde brasileiro.

Dado que o SUS é elementar para a existência de uma política de saúde antimanicomial e psicossocial, é preciso entender o momento atual de desmonte dessa política pública, além das aproximações com as noções biologizantes e manicomiais que o campo da saúde vem sofrendo, principalmente, a partir de 2015 com a entrada de governos neoliberais no país.

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