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AUTOBIOGRAFIA EM ECO: MEMÓRIA, OLVIDO E INVENTO AUTOBIOGRAPHY IN EC(H)O: MEMORY, OBLIVION AND INVENTION

Cristine Conforti (Colégio Santa Cruz de São Paulo)

cristine.conforti@gmail.com Com o distanciamento pode-se ver como as audácias

infantis podem determinar as fraquezas da idade adulta. Umberto Eco

A pergunta que conduz este ensaio sabe o risco da resposta em aberto, que se refaz no tempo. Isso porque, ancorada na obra, busca o autor; não apenas o homem que escreve, mas a construção de seu saber literário, de sua gênese de escritor. Umberto Eco pondera que uma obra aberta é aquela que se esforça para ser tão ambígua quanto à vida (Eco, 1994, p. 123). Este artigo aspira ler, na opacidade polissêmica da obra, itinerários do aprendiz e do experto; e evidenciar a dinâmica da formação do escritor implícita nos textos que reescrevem sua vida, ou seja, o relato das experiências particulares enredadas à cultura.

Para traçar a epistemologia literária de Umberto Eco, examino seu romance A misteriosa chama da rainha Loana (Eco, 2005), especialmente os capítulos que localizam a gênese do escritor — a vida escolar dos sete aos treze anos. Dialogando com a ficcionalidade e a inspiração autobiográfica desse romance, apresento os pontos centrais do ensaio memorialista Como escrevo (Eco, 2003).

Ao ser indagado sobre o caráter autobiográfico do romance “Sôbolos Rios que Vão” (2012), António Lobo Antunes respondeu: “Não (é autobiográfico), mas tem tudo a

ver com a minha experiência, porque nós só falamos de nós mesmos. A imaginação não é mais do que a forma como você

arranja os materiais da memória. Não há imaginação, há memória”.

Mais cético e ambíguo, Umberto Eco quase sempre declina das suposições autobiográficas de seus escritos. No lançamento de A misteriosa chama da Rainha Loana, ele desconversou, afirmando que, não obstante o romance trazer

referências e experiências pessoais, tratava-se da

autobiografia de uma geração inteira, de que ele faz parte. Ao tangenciar seu lugar nesse romance, o escritor não desmente que a História constrói-se narrativamente sustentada por documentos, cujas versões podem ser corroboráveis ou falseadas pela ficção; são documentos que o narrador- protagonista de Rainha Loana busca para recuperar sua memória e seu tempo perdido. Tais documentos são pessoais e coletivos. O protagonista é autor de sua pesquisa pessoal tal como a autoriza e conduz sua própria instância narradora. Anterior ao narrador está o homem que segura a caneta da criação: seja ficcionista, poeta ou autobiógrafo, ele não se ausenta de sua história pessoal, mesmo que plena de lapsos, nem é estranho à sua cultura: pensamentos ecoam outros pensamentos, livros ecoam outros livros. Há um “Eco” plural nesse espaço aberto da criação e leitura. A reflexão de som parte de múltiplas fontes e retorna sem que seja possível distinguir definitivamente a origem do som e o ouvinte final. Experiência e memória, cultura e obra são vozes em reverberação.

Paralelamente, na outra ponta da escritura, encontra- se o sentido sempre aberto e complementar do texto: o ato de leitura. Além de pressupor a polifonia dos universos

culturais, o leitor crítico não desconhece que ficcionistas, especialmente os contemporâneos, tendem a endossar a confissão de Flaubert: — “Madame Bovary c’ést moi”. Eco é um dos que evocam em seus textos esse encontro entre criador e criatura. Desse modo, é inevitável que o leitor recepcione Rainha Loana como um exemplar de autorreferencialidade e metalinguagem metafórica, daí a

insistência dos entrevistadores sobre o aspecto

autobiográfico. Se todo produto artístico pode ser considerado uma metáfora epistemológica que reflete a cosmovisão da cultura que ele habita, também o ato de leitura está contaminado pelas circunstâncias do leitor.

Essa expectativa responde à conduta triádica de Umberto Eco. O ficcionista, o historiador e o semioticista estão imiscuídos em sua literatura. O eco multiplicado, a reverberação de vozes nas tramas e nos códigos dos romances resulta de uma composição herdada de memórias complexas: um corpo constituído por experiências existenciais (memória episódica ou autobiográfica), e outro — a memória semântica ou coletiva — que abarca o amplo acervo de leituras e pesquisas literárias, históricas e científicas. Esses corpos de memórias, por sua vez, são recriados no processo de transfiguração ficcional.

Em 2011, quando do lançamento de O cemitério de

Praga, Umberto Eco revelou estar preparando sua

“autobiografia intelectual” para a Library Living Philosophers. Às portas de completá-la, é provável que, octogenário, ele reconte episódios d’A misteriosa chama da Rainha Loana e reafirme o mote que percorre o mais autorreferente de seus textos, Como escrevo:

Com o distanciamento pode-se ver como as audácias infantis podem determinar as fraquezas da idade adulta. (Eco, 2003, p. 278)

Como escrevo é um misto de texto técnico e

confessional: referindo-se todo o tempo à sua história pessoal de escritor desde a infância, Eco se detém na análise de recursos literários e processos pessoais de criação. Esse relato ensaístico fornece a chave autobiográfica ao romance A

misteriosa chama da rainha Loana. Desse modo, quando

considerados em conjunto e em relação, os dois textos de Eco podem ser tomados pelo leitor como de caráter autobiográfico. Separadamente, não obstante sua atmosfera propícia à fácil ligação com a vida do autor, Rainha Loana69

é um romance de ficção. Mas a identidade entre autor e protagonista torna-se relevante a partir das considerações expostas na introdução desse artigo e da análise apresentada na leitura que segue.

Em Como escrevo (Eco, 2003), Eco faz um relato breve em primeira pessoa em resposta às perguntas que a editora Maria Teresa Serafini havia feito a um grupo de autores, a propósito de seus respectivos itinerários criativos. Alguns anos depois dessa primeira versão e à época da publicação do quarto romance do escritor (Baudolino, 2000), Umberto Eco decidiu-se por uma segunda versão, incluindo páginas dedicadas a comentar essa última experiência romanesca.

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O título completo do romance poderá ser citado de forma abreviada no decorrer deste texto.

Para responder à questão do título, o narrador se assenhora das origens de sua escrita e as localiza, com detalhes documentais, nos textos e desenhos da infância, dentro e fora da escola. Da gênese pessoal às reflexões sobre o romanesco, o estilo do relato agrega nuances de oralidade, como se houvesse uma plateia viva e reativa ao ritmo do discurso, anedotas e observações cheias de humor e leveza a respeito da infância e adolescência, agudas explanações sobre criação literária, além de uma cuidadosa diacronia da própria obra e suas referências às fontes de pesquisa e influência.

Embora seja parcial, pois seleciona as porções de vida e experiências estritamente relacionadas ao tema, e tenha sido motivado pelo questionário de Serafini, esse memorial constitui um ato autobiográfico.70

Todo ato autobiográfico pressupõe uma (re)descoberta de si, no processo de investigação dos arquivos do passado e da memória, bem como o exercício da invenção, inerente ao exercício da linguagem; e tanto a matéria histórica e documental — a memória — quanto a linguagem têm poder de alterar e trair, porque mediadas por um sujeito em interminável processo de constituição.

As perguntas poderiam ter gerado uma sequência de respostas à maneira de entrevistas por escrito; o que ocorreu, diversamente, foi um mergulho nas próprias memórias, que pode ter sido o ponto de partida do romance em referência, publicado dois anos depois. A estrutura dessa narrativa é urdida a partir da temática da pesquisa de um homem sobre a

70

Ver BRUSS, Elizabeth. Autobiographical acts: the changing situation of a literary genre. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976.

matéria literária que o constitui, em um sótão da casa em que passou a infância.

A aproximação desses dois textos se dá por meio de diversas referências cruzadas e, especialmente, de um fato narrativo, presente em ambos. Ao lembrar, em Como escrevo, uma crônica escolar que teria escrito por volta dos dez anos, mencionando o tema, as origens e o estilo conquistado, Umberto Eco — sem transcrever a referida crônica — comenta tê-la reencontrado em guardados do passado. Em A

misteriosa chama, entretanto, o protagonista, ao procurar os

fios de sua memória autobiográfica desmantelada por um acidente vascular cerebral, reencontra, nos cadernos de escola, a crônica citada em Como escrevo.

No memorial, a referência:

Na escola, eu escrevia narrativas porque na época as “redações” (de argumento obrigatório) foram substituídas pelas “crônicas” (nas quais tínhamos que contar livremente trechos de vida). Eu era excelente em esboços humorísticos. Meu autor preferido era então P.G. Wodehouse. Ainda conservo a minha obra- prima: a descrição de como, tendo-me preparado, depois de muitas provas, para exibir a vizinhos e parentes uma maravilha tecnológica, isto é, um dos primeiros copos inquebráveis, deixara-o cair triunfalmente no chão onde, naturalmente, ele se quebrara. (Eco, 2003, p. 279)

Em A misteriosa chama da rainha Loana, o texto mencionado no ensaio aparece integralmente transcrito.

Uma das crônicas mais elogiadas era essa, com data de dezembro de 1942. Tinha então onze anos, mas a redação foi escrita apenas nove meses depois da anterior.

“CRÔNICA — O copo inquebrável.

Minha mãe comprou um copo inquebrável. Mas de vidro mesmo, vidro de verdade, e isso me deixava fascinado porque, quando tal fato teve lugar, o autor dessas linhas tinha apenas poucos anos e suas faculdades mentais ainda não estavam suficientemente desenvolvidas para que pudesse imaginar que um copo, um copo em tudo semelhante aos que caem e fazendo trinn! (proporcionando uma boa dose de pescoções), pudesse ser inquebrável.

Inquebrável! Parecia uma palavra mágica. Experimentei uma, duas, três vezes e o copo caía, quicava com um estrondo dos diabos e parava intacto.

Certa tarde vieram uns conhecidos e oferecemos chocolatinhos (note-se que então tais guloseimas existiam, e em profusão). Com a boca cheia (não lembro se de “Gianduia” ou “Strelio” ou “Caffarel- Prochet”), vou até a cozinha e volto com o famoso copo na mão.

“Senhoras e senhores”, exclamo com voz de proprietário de circo chamando os passantes para o espetáculo, “apresento-lhes um copo mágico, especial, inquebrável. Vou jogá-lo no chão e vocês verão que não quebra”, e acrescento com ar grave e solene, “PERMANECERÁ INTACTO”.

Jogo e...nem preciso dizer, o copo voa em mil pedaços.

Sinto o rubor subir, olho alucinado aqueles cacos que, tocados pela luz do lampadário, brilham como pérolas...e rompo em prantos.” (Eco, 2005, p. 210)

Essa crônica e suas circunstâncias de composição, de acordo com o protagonista de A misteriosa chama, são um referente central na análise dos textos de Umberto Eco de

inspiração autobiográfica. Ela é o elemento de intersecção entre o real (Como escrevo) e a ficção (A misteriosa chama) e sintetiza a interpenetração entre essas duas dimensões na memória e na criação do escritor. O ponto de confluência é de onde parte esta análise. O procedimento interpretativo buscará tanto distinguir os caminhos autobiográficos, quanto entrelaçá-los.

Eco chama sua pequena crônica de “obra-prima”. O sentido da expressão é duplo, tanto em português quanto em italiano. É a obra que todo artesão, aspirante a mestre, deveria realizar: é a “primeira” obra. Essa é também a obra consumada, perfeita em seu gênero, porque tem um sentido que pode ser desvelado. Ao vasculhar seu baú de textos- memórias, o escritor adulto percebe os estratagemas de sua primeira composição. É essa percepção, recuperada em um trecho de A misteriosa chama, que não só legitima a pequena obra como também revela a compreensão do primo-motore do processo narrativo do futuro escritor.

Umberto Eco expõe as memórias de seus escritos inaugurais na primeira parte de Como escrevo, intitulada “Os inícios, remotos”. Entre oito e quinze anos, exercita suas primeiras narrativas. Aos dezesseis, a descoberta de Chopin e o primeiro amor estimularam a aventura da poesia; segundo seu autor, essa desastrosa produção poética tinha a mesma “origem funcional e a mesma configuração formal que a acne

juvenil”. Tal severidade crítica foi em grande parte responsável

pelo abandono, por essa época, da criação literária e a dedicação exclusiva, por décadas, à reflexão filosófica e à atividade ensaística. Às vésperas dos cinquenta anos, Eco

retomou o curso da escritura criativa: “antes dessa explosão

de madura impudência, tive mais de trinta anos de presumido pudor. Eu disse ‘presumido’. E explico. Vamos por ordem, ou seja, como é meu costume narrativo, dando um passo atrás.”

(Eco, 2003, p. 277)

A produção dos romances na infância sempre incluía a preparação do suporte material e a concepção editorial. A rigor, todas as “obras”, em geral inacabadas, partiam de um suporte, ou seja, um caderno qualquer em que o jovem autor preparava o frontispício, imitando a apresentação dos livros de sua predileção, com o título no estilo dos livros de aventura

de Emilio Salgari. Completava a capa com o nome do editor,

parte do conjunto da invenção, já que “Tipografia Matenna” era um neologismo composto por matita (lápis) + penna (caneta). A seguir vinham as ilustrações, uma a cada dez páginas, que determinavam a história a ser contada. Umberto Eco já exercitava em plena infância o homem-semiótico da maturidade: desenhava, escrevia, construía o objeto. O processo criativo começava pelo objeto-livro, seguido pela representação icônica e só a partir daí nasciam as narrativas, os eventos que se sucediam instigados pelas ilustrações.

Sempre preocupado com os aspectos editoriais, o menino escrevia suas páginas em letra de forma e a tinta, sem permitirem-se correções. “Óbvio que, depois de algumas

páginas, abandonava a empresa. Assim fui, naquela época, autor apenas de grandes romances incompletos.” (Eco, 2003,

p. 278)

Esses exercícios literários têm acentuada tendência a uma oscilação de gênero. A linguagem em geral se estabiliza sobre dois ou mais códigos, e, embora a meta do autor fosse expressamente literária, verbal, os recursos visuais se impunham espontaneamente, como início e complemento do

percurso romanesco, tanto no âmbito da ilustração quanto no da formatação tipográfica e editorial. Comentando uma “obra acabada”, escrita aos dez anos, Eco faz emergir esse eloquente coro de linguagens, seja pela presença simultânea do código verbal e visual, seja pelo entrelaçamento de gêneros presente no texto escrito.

Eu ganhara de presente, de fato, uma espécie de grande caderno com páginas levemente venadas de linhas horizontais e grandes margens verticais roxas. Daí a ideia de escrever (o frontispício traz a data de 1942, XXI Era Fascista, como era obrigatório e corrente) In nome del ‘Calendario’, diário de um mago Pirimpimpino que se apresentava como descobridor, colonizador e reformador de uma ilha do oceano Glacial Ártico, a Ghianda, cujos habitantes adoravam o deus Calendário. Este Pirimpimpino anotava dia a dia, e com grande pedantismo documental, fatos e (eu diria hoje) estruturas socioantropológicas de seu povo, entremeando, porém, estas páginas de diário com exercícios literários. (...)

De resto, o narrador descrevia (e desenhava) a ilha sobre a qual reinava, bosques, lagos, costas e regiões montanhosas, entretinha-se com as próprias reformas sociais, com os ritos e mitos de seu povo, apresentava os próprios ministros, falava de guerras e pestes...O texto alternava-se com desenhos e o conto (que não respondia às regras de nenhum gênero) desaguava na encyclopedia. (Eco, 2003, p. 278)

A história do mago Pirimpimpino acaba subitamente, depois de vinte e nove páginas. O autor, sem fôlego narrativo ou interesse em seu protagonista, força-o a empreender longa

viagem e encerra a obra, com plena segurança da lógica mágica do nonsense.

Talvez nem volte mais; uma pequena confissão: nos primeiros dias declarei-me mago. Não é verdade: apenas me chamo Pirimpimpino. Perdoem-me. (Eco, 2003, p. 278)

Décadas mais tarde, quando voltou a ocupar-se da tarefa romanesca, Umberto Eco manteve um processo de composição calcado em desenhos. Para O nome da rosa (1980), esse procedimento foi essencial, inclusive como fonte de pesquisa para o roteirista da adaptação cinematográfica. O apoio visual, entretanto, não tem uma função meramente realista e documental; é uma forma de convívio entre autor e personagem, como se as palavras e ações dos personagens somente pudessem ser escritas se o autor antes esculpisse suas criaturas, dominasse cada traço de seu rosto, antes de soprar-lhes a vida.

Para explicar o escritor do presente (como escrevo), Umberto Eco expõe sua história de tempos passados: como escrevia e escreveu desde a primeira vez que se aventurou pela ficção, aos oito anos. Ao mesmo tempo em que o homem presente busca no menino do passado a explicação, a justificativa e a gênese do que se tornou, essa busca é realizada num tom literariamente afetivo, misto de orgulho e condescendência humorada pelos feitos imaturos, como se o menino do passado não fora ele mesmo, mas um filho, um neto a quem se perdoa sorrindo as falhas e a quem se diz, sem dizer “Saiu-se bem ao pai/avô!”. Com exceção da severa crítica à poesia juvenil — comparada à acne típica da idade — Umberto Eco revela profunda estima pela história e memória que o constituem, bem como pela literatura e criação vividas. Daí esse encontro feliz que se lê em Como escrevo, e esse

encontro comovente de A misteriosa chama. O prazer de ler, criar e reencontrar-se percorre todas as lembranças narradas e antecipa o prazer de ler e criar que se renovará no que há de vir.

Logo depois das aventuras de Pirimpimpino, aos dez anos, Eco decidiu-se pela linguagem das histórias em quadrinhos. É fundamental mencionar que o espírito editorial permanecia atento tanto na composição como na arregimentação de leitores. Com relação a essa experiência dos quadrinhos, o diálogo com os leitores se evidencia como necessidade. Por um lado, o relato apresenta seu autor sempre sozinho, em suas andanças literárias; nunca ele menciona um parceiro de histórias infantis, ou um adulto que orientasse ou sugerisse sua leitura.

Em A misteriosa chama, como o narrador perdeu a memória, precisa reconstituí-la lentamente através de suas experiências acumuladas em papéis; desse modo, surge com imponência a biblioteca do avô, colecionador e livreiro, bem como alguns companheiros de aventuras existenciais, mas não literárias. Por outro lado, esse mundo solitário da criação demanda leitores: os cuidados editoriais precoces incluíam o desejo e a proposta de distribuição de exemplares aos colegas de escola. A necessidade de leitores alavanca outra forma de parceria, que Eco considerará a própria essência e o sentido da criação literária, que estão na contraparte do texto, ou seja, em sua recepção. Por esse motivo, numa época em que não havia copiadoras, que lhe permitiriam ampla distribuição, o menino propôs aos colegas que lhe fornecessem blocos de papel quadriculado como um álbum de figurinhas, mais o

pagamento referente a despesas de tinta e esforço, em troca de cópias da mesma aventura em quadrinhos.

Lavrara todos os contratos sem me dar conta de quão trabalhoso seria reproduzir dez vezes a mesma história em quadrinhos. No final tive que devolver o material, humilhado pelo meu fracasso não de autor, mas de editor. (Eco, 2003, p. 279)

Depois do bem sucedido período de crônicas escolares, entre as quais se inclui “O copo inquebrável”, (dos doze aos treze anos), Eco ocupou-se de um feito épico: uma paródia da

Divina Comédia e uma série de retratos dos deuses do Olimpo

(1944-1945). Era um período politicamente difícil e perigoso, mas o fascismo não conseguia impedir que mesmo as crianças, conduzidas nas escolas pela ideologia oficial, expressassem sua crítica. No caso de Eco, a escolha era pelo viés cômico, mesclando deuses do Olimpo com racionamento e obscurantismo.

Nos anos de liceu, Eco escreveu contos que, segundo ele, tinham intenções literárias mais sérias e se arriscavam para o lado do realismo mágico. Um deles, Il Concerto (sem data), teve um motivo central de seu enredo explorado, quarenta anos mais tarde, em O Pêndulo de Foucault. A ideia — que se aprofunda no veio burlesco — era essa:

Um tal Mario Tobia, compositor de insucesso [sic], reunia todos os médiuns do universo para que reproduzissem no palco, em forma de ectoplasma, os maiores musicistas do passado executando o seu Corradino di Svevia. Beethoven regia, Liszt no piano, Paganini no violino e assim por diante. Apenas um contemporâneo, Louis Robertson, na trompa. Não era ruim a descrição de como, pouco a pouco, os médiuns não conseguiram manter em vida as suas criaturas e os grandes do passado liquefaziam-se aos poucos,

entre miados e dissonâncias dos instrumentos morrentes, enquanto permanecia, alta, mágica, incontrastada, a trompa de Robertson. (Eco, 2003, p.