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Parte II – Tomografia Computorizada no Diagnóstico de Anomalias Vasculares

Capítulo 8: Shunts Porto-Sistémicos – Discussão clínica, o estado da arte da Medicina

8.1 Avanços em Medicina Interna

8.1.1 Definição

Os shunts porto-sistémicos (PSS – PortoSystemic Shunts) encontram-se entre as anomalias vasculares mais frequentemente diagnosticadas na prática clínica, sendo considerados a anomalia congénita mais frequente do sistema hepatobiliar.14,15 Estas anomalias

proporcionam a comunicação venosa direta entre a vasculatura portal e o sistema circulatório sistémico, fazendo bypass dos sinusóides e parênquima hepáticos.15

Normalmente, a drenagem do baço, pâncreas, estômago e intestino é direcionada para a veia porta, a qual perfunde o fígado através da rede sinusoidal, drenando através das veias hepáticas para a veia cava caudal.15 O sangue portal transporta inúmeras substâncias para o

fígado, incluindo hormonas tróficas (intestinais e pancreáticas), nutrientes, produtos bacterianos, assim como toxinas intestinais. Visto o fígado fetal apresentar função limitada no processamento destes produtos, o ducto venoso, faz o bypass da circulação hepática, durante a fase fetal, atuando como um mecanismo de proteção, o qual fecha logo após o nascimento, estabelecendo- -se a circulação hepática definitiva. Se este ducto permanecer patente, ocorre formação de

shunts, e os fatores tróficos (particularmente a insulina e o glucagon) não se encontram

disponíveis para promover o crescimento hepático, resultando no seu fraco desenvolvimento,

deficit da produção proteica, disfunção reticuloendotelial, alteração do metabolismo dos lípidos e

proteínas, atrofia hepática e, eventualmente, insuficiência hepática progressiva.15,19

Os sinais clínicos encontram-se diretamente associados com o volume de sangue que faz bypass à circulação hepática, o que resulta no comprometimento da sua função, encefalopatia hepática, sinais gastrointestinais crónicos, sinais do trato urinário inferior, coagulopatias e atrasos no crescimento.15 Estes problemas são o resultado do acumular de

toxinas exógenas e endógenas, as quais normalmente são metabolizadas ou eliminadas pelo fígado, bem como da falha da normal função hepática, tal como a gliconeogénese, o ciclo da ureia, o ciclo do ácido úrico e a glicogenólise.14,15,19

8.1.2 Encefalopatia hepática

A maioria dos sinais clínicos associados a shunts porto-sistémicos, devem-se à encefalopatia hepática (HE – Hepatic Encephalopathy), que é uma síndrome metabólica, que ocorre quando mais de 70% da função hepática se encontra comprometida, sendo caracterizada por disfunção neuropsíquica e cerebral.14,15,38

O fígado funciona como filtro contra uma infinidade de substâncias neurotóxicas que são absorvidas através da barreira gastrointestinal. Quando esta função se encontra alterada, o fígado não pode realizar, adequadamente, a depuração das substâncias e produtos do metabolismo, permitindo que substâncias tóxicas entrem na circulação sistémica. Tal resulta em efeitos dramáticos sobre outros órgãos, particularmente no sistema nervoso central (SNC), criando o estado de encefalopatia.15

Este estado encontra-se bem descrito na literatura médica, estando atualmente todos os seus fatores estabelecidos, contudo o mecanismo exato ainda não é totalmente compreendido.14

Todos os estudos que avaliaram os parâmetros bioquímicos, em pacientes com HE, são muitas vezes contraditórios e confusos. Atualmente, aceita-se que o mecanismo da HE está relacionado com alterações decorrentes no eixo nervoso central gastrointestinal-hepático. A existência deste eixo é suportada, empiricamente, pela melhoria dos sinais clínicos, quando o tratamento é dirigido à gestão da microflora bacteriana, o que diminui a absorção gastrointestinal de subprodutos metabólicos bacterianos. Sendo que sempre que existe HE são verificadas as seguintes condições:

x Concentração elevada de determinada(s) substância(s) no cérebro ou soro;

x Sinais clínicos que podem ser induzidos quando o fator é administrado experimentalmente;

x Sinais clínicos que desaparecerem quando a substância é removida da circulação ou do cérebro.

Contudo, muitos fatores têm sido estudados e nenhum provou ser causa única, assumindo-se assim, que a HE é uma doença metabólica multifatorial – Tabela 18.

Atualmente, mais de 20 compostos diferentes foram identificados, com aumento significativo na circulação sistémica, aquando do comprometimento da circulação hepática. Alguns destes incluem o amoníaco, triptofano, glutamina, aminoácidos aromáticos, ácidos gordos de cadeia curta, ácido gama-aminobutírico (GABA) e benzodiazepinas endógenas – Tabela 18. Estas substâncias inibem a normal função neuronal e astrocitária, levando à turgescência das células neuronais e da glia, causando edema cerebral. Tal conduz à depressão da atividade elétrica cerebral, por inibição das bombas de membrana celulares e canais iónicos, resultando no aumento do cálcio intracelular, o que interfere com o normal metabolismo oxidativo neuronal.14,15,38

Pode considerar-se o amoníaco como a principal substância desencadeadora da sequência de eventos metabólicos implicados na HE. Este é um produto metabólico da flora gastrointestinal, sendo convertido, no fígado, a ureia e glutamina, através do ciclo da ureia. O

amoníaco é excitotóxico, estando associado ao aumento da libertação de glutamato, o principal neurotransmissor excitatório do cérebro, assim como da sobreativação dos recetores de glutamato, principalmente os recetores N-metil-D-aspartato. Pensa-se ser esta a causa de convulsões na HE, contudo, com a cronicidade, os fatores inibitórios superam o estímulo excitatório, causando sinais mais sugestivos de coma ou depressão do SNC. Tais fatores incluem inibidores endógenos do GABA e benzodiazepinas endógenas.14,15,38

A insuficiência hepática crónica decorrente de shunt porto-sistémico, ocorre devido à disfunção metabólica de longa data, por alterações na capacidade de resposta neuronal e défice energético.38

A sintomatologia associada a HE é altamente variável, sendo a depressão o sinal predominante, embora fenómenos excitatórios, como convulsões, agressividade e hiperexcitabilidade possam ocorrer. Esta variabilidade está associada à diferente combinação de toxinas sistémicas, assim como perturbações metabólicas.19,38

O amoníaco é uma das substâncias mais fáceis de mensurar no soro, e a diminuição da sua concentração sistémica reduz os sinais clínicos associados a HE.38

Em humanos demonstrou-se que o grau de encefalopatia, apresenta fraca associação com a concentração de amoníaco no sangue, o que sugere que outras neurotoxinas apresentam igual importância na fisiopatologia da síndrome.15

Com o objetivo de simplificar a leitura que se segue, a Tabela 17, apresenta a classificação em nomenclatura portuguesa e respetivos acrónimos internacionais das anomalias vasculares porto-sistémicas.

Tabela 17

Classificação e respetivos acrónimos internacionais das anomalias vasculares

porto-sistémicas

(adaptado de Schwarz et al. 2011, Monnet, 2013, Tobias e Johnston, 2013)

Classificação atual Acrónimo

Shunt porto-sistémico PSS - Portosystemic shunt

Shunt porto-sistémico congénito

- Extra-hepático

- Intra-hepático (Esquerdo, direito ou central)

CPSS – Congenital Portosystemic shunt EHPSS – Extrahepatic Portosystemic Shunt IHPSS – Intrahepatic Portosystemic Shunt

Shunt porto-sistémico adquirido (único ou múltiplo) APSC – Acquired Portosystemic Collaterals

Hipoplasia primária da veia porta2

(sinónimo: Hipoplasia venosa portal)

PHPV c/hipertensão: Hipertensão portal não-cirrótica PHPV s/hipertensão: Displasia microvascular

PHPV – Primary Hypoplasia of the Portal Vein (sinónimo: PVH – Portal Venous Hipoplasia) PHPV-NCPH – Noncirrhotic Portal Hypertension PHPV-MVC – Microvascular Dysplasia

Malformação arteriovenosa hepática

(sinónimo: Fistulas arteriovenosas hepáticas)

HAVM – Hepatic Arteriovenous Malformation (sinónimo: HAVF – Hepatic Arteriovenous Fistulas)



2Sinónimos de hipoplasia primária da veia porta: Fibrose hepatoportal, fibrose hepático idiopática, doença veno-oclusiva,

Tabela 18

Fatores patogénicos implicados na encefalopatia hepática

(adaptado de Ettinger e Feldman, 2010, Washabau e Day, 2013, Monnet, 2013)

Fatores patogénicos e as suas toxinas Mecanismos sugeridos na literatura

Amoníaco 44,45,46,47,48,49,50,51,52,53,54,55,56,57,58

Aumento do triptofano e glutamina cerebral; diminuição da disponibilidade de ATP; aumento da excitabilidade; aumento da glicólise; edema cerebral; diminuição microssomal de Na+, K+-ATPase no cérebro.

Edema cerebral 51,59 Resulta de desordem bioquímica; etiologia citotóxica (osmose da glutamina nos astrócitos) e vasogénica.

Glutamato 56,60,61,62 Altera o transporte de aminoácidos pela barreira hematoencefálica.

Ácido gama-aminobutírico (GABA) 56,61,62

Inibição neural: hiperpolarização da membrana neuronal; aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica a GABA.

Benzodiazepinas endógenas 63,64 Inibição neural: hiperpolarização da membrana neuronal.

Aminoácidos aromáticos (cadeia longa, p.ex.: Triptofano) 65

Diminuição da síntese do neurotransmissor DOPA; alteração de neuro-recetores; aumento da produção de falsos neurotransmissores; neurotóxicos; triptofano aumenta a libertação de serotonina: neuroinibição. x Falsos neurotransmissores Diminuem a ação da norepinefrina.

x Tirosina Æ Octapamina Diminui a ação da norepinefrina. x Fenilalanina Æ Feniltilamina Sinergista com amoníaco e AGCC. x Metionina Æ Mercaptanos

Diminuição da clearance de amoníaco no ciclo cerebral da ureia; diminuição microssomal de Na+, K+-ATPase no

cérebro.

Ácidos gordos de cadeia curta (AGCC) 14,15,38,66

Diminuição microssomal de Na+, K+-ATPase no cérebro;

diminuição da fosforilação oxidativa; dificulta a utilização de oxigénio; liberta o triptofano da albumina, aumentando o triptofano livre.

Fenóis (derivados de fenilalanina e tirosina) 14,15 Sinergia com outras toxinas; diminuição de enzimas celulares; neurotóxicos e hepatotóxicos.

Ácidos biliares 15

Efeitos citolíticos: alteração da permeabilidade celular/membrana; aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica; diminuição do metabolismo celular devido a citotoxicidade.

Manganês 67,68,69,70,71 Metal neurotóxico paramagnético; ação sinérgica com o amoníaco; destruição dos astrócitos.

Zinco 67,72,73,74,75

Cofator enzimático de duas das cinco enzimas necessárias ao ciclo da ureia. A sua diminuição altera o metabolismo azotémico.

Histamina H176,77 Capacidade de induzir shunts porto-sistémicos.

Taurina 78,79 A sua diminuição altera a osmorregulação das células da glia (astrócitos).