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Axé music, pagode baiano e estereótipos O termo pagode baiano ocupa um lugar específico dentro do

contexto da música baiana contemporânea denominada axé music, expressão forjada pela mídia na década de 1980. Naquele momento, a indústria musical baiana atingira níveis elevados de popularidade e vendagem e comemorava a conquista de espaço na mídia nacional, rompendo as fronteiras do local, marcando discursivamente o lugar de margem e diferente da homogeneidade do país. No atual cenário, os significados do termo axé music, além de acionar esse sentido reificado e naturalizado pelo seu uso repetido e indiscriminado, ser- vem mais para rotular uma produção geográfica, ou seja, de artistas baianos, do que propriamente para nomear um gênero musical.

Para Moura (apud SANTANA, 2009, p. 153), a axé music se configura menos como um gênero ou estilo musical e mais como uma

interface do repertório musical e coreográfico que se desenvolveu basicamente a partir do encontro entre a tradição do trio elétrico e o evento afro, que por sua vez recapitula a tradição da musicalidade negra do Recôncavo em conexão com outras ver- tentes.

No entanto, na Bahia, a música denominada pagode não se confunde com a axé music, diferentemente do eixo de poder do Bra- sil onde toda a produção da música baiana contemporânea é identi- ficada por esse rótulo que, na intenção de abarcar toda a produção musical baiana contemporânea, homogeneíza e uniformiza o que é heterogêneo, apagando suas marcas de identidade e singularidade.

No atual contexto, o pagode baiano – aqui compreendido como uma das expressões da “música baiana” – é um gênero híbrido oriundo do samba que mescla a tradição do samba do Recôncavo baiano com algumas intervenções e inovações tecnológicas, incorpo- ra novas experimentações da música eletrônica a partir de tecnolo-

gias como o sampler9 bem como agrega o funk e dialoga com outras

tradições regionais, como a chula.10

Essa denominação, vista por algumas bandas de pagode como “positiva”, porque cria uma identidade própria para cada grupo e reafirma a sua ligação com o samba, sua origem e tradição, vai ser refutada por outras que a veem como uma estratégia para escapar da carga valorativa “negativa” atribuída a esses grupos. É o que re- vela um músico, compositor e mentor de uma famosa banda desse segmento:

- Eu não gosto dessa rotulação ‘pagode’, prefiro ‘samba percus- sivo’, mas acho que as outras bandas deveriam assumir que não

9 Sampler é um equipamento que consegue armazenar sons em uma memória digital,

e reproduzi-los posteriormente e, com ele, é possível construir desde um rápido efeito, até uma sequência de ciclos com diversos instrumentos. (SAMPLER, [entre 2006 e 2011])

10 Trata-se de uma dança típica do Recôncavo baiano que se caracteriza pelos passos curtos

e movimentos cíclicos. É um gênero musical tocado com a viola machete e de ritmo afro- -brasileiro.

são de pagode e deveriam se preocupar com a qualidade da mú- sica. Acho que também deveriam pesquisar e misturar mais essa música com a música eletrônica e o ‘techno’.11

Nesse sentido, as autoidentificações, além de criarem uma identidade própria para cada grupo, representam, também, uma es- tratégia para escapar de um discurso “moderno” que hierarquiza va- lorativamente, elegendo e legitimando certos gêneros em detrimen- to de outros. Por outro lado, as próprias bandas preferem o novo e original que, muitas vezes, reflete o diálogo com outros gêneros musicais emergentes, entre formas híbridas que abrangem expres- sões locais e globais. Por exemplo, o grupo Fantasmão se autointitula groove arrastado, o Black Style, pagofunk, o Saiddy Bamba, swin- gueira, o Pagodart, quebradeira e o Psirico, samba swingado.

Do ponto de vista da indústria cultural, essas músicas se apre- sentam como um produto cultural de forte apelo junto ao público consumidor, pelo ritmo e pelas letras carregadas de refrões que, de fácil memorização, são repetidos exaustivamente, e, aliados às per-

formances, mobilizam melodia, ritmo, dança e teatralidade.

Contrariamente a outros segmentos da música baiana, como

é caso da música produzida por artistas do segmento “axé”,12 a pro-

dução dos grupos de pagode nem sempre passa pelo gerenciamento das grandes gravadoras; trata-se de uma produção própria, na maio- ria dos casos, independente, sem a mediação, circulação e a distri- buição atrelada às grandes gravadoras. Pela internet, é possível fazer

downloads gratuitos de fonogramas através de sites especializados,

inclusive sites das próprias bandas, uma prática que tem se tornado muito comum.

11 Entrevista em 23 de agosto de 2008.

12 Estou aqui chamando de “axé” a produção musical de artistas baianos como Ivete Sanga-

lo, Claudia Leitte, Daniela Mercury, por exemplo, e bandas como Asa de Águia, Chiclete com Banana, Jammil e Uma Noites cuja produção está atrelada a esse rótulo, diferente também em termos mercadológicos da música produzida pelos blocos afro e do segmento pagode.

Vejamos o que diz um músico, sociofundador de uma banda de pagode da Bahia, uma das que mais se destaca nesse segmento de mercado:

- Nós temos cerca de dez CDs piratas que foi o que projetou a gen- te, espalhou mesmo. Só temos um CD oficial. O primeiro deles ficou entre os mais ouvidos... Hoje temos mais facilidade para gravar; as coisas são mais fáceis em termos de gravação. Porém, a mídia ainda não abraçou o nosso projeto completamente. A mídia tem certa discriminação com nosso projeto. Acho que é porque é música de periferia, entende? Música de pessoas de nível baixo, de negro e de pobre. Quer dizer, não dizendo que as pesso- as de nível alto não gostam, não frequenta[m] os shows, mas a maioria dos frequentadores é de nível baixo. Se você for numa periferia dessas aí, você vai ouvir um CD de pagode tocando.13

Para esse músico, grande parte da produção desses grupos não tem registro em CD de carreira, CD “oficial”; geralmente são cópias promocionais distribuídas em rádios e entregues nas mãos de divulgadores, chegando facilmente às mãos do mercado informal. Alguns desses grupos nunca estiveram em estúdio profissional de gravação, a difusão de suas obras se encontra vinculada a web sites como Myspace, Youtube, os mais conhecidos e utilizados, e o acesso do público a essa produção acontece, também, através da execução pública em shows, ensaios e, em alguns casos, em programas de TV, o que contribui para sua divulgação e circulação.

Como já observado, a circulação se faz por meios informais, longe dos estúdios das gravadoras oficiais. Na contramão dos artistas contratados pelas grandes gravadoras, os grupos de pagode baiano disponibilizam ao público consumidor um produto sem mediações, portanto, barato, e ao qual ele tem acesso em um curto espaço de tem- po, o que torna a sua divulgação mais rápida. A gravação sem selo, que implica na divulgação do produto através da venda em pontos comerciais populares e nos shows, vista como um fator positivo por 13 Entrevista realizada em 8 de janeiro de 2009.

alguns músicos desse gênero – a exemplo do entrevistado cuja fala é reveladora dos mecanismos de produção, distribuição e consumo –, por outro lado, ajuda a pensar na proliferação dos rótulos valorativos atribuídos aos cantores, grupos musicais e à qualidade do produto, assim como a suas letras. Essas mudanças vêm afetando, também, a economia da cultura e o cotidiano por parte dos consumidores/usu- ários das novas tecnologias digitais de informação e comunicação.

Uma pesquisa realizada por Marcos Joel Santos, que analisa os estereótipos e preconceitos na música baiana entre pessoas que gostam de música, em três cidades do Brasil, concluiu que os este- reótipos atribuídos aos grupos da axé-music são mais positivos do que os estereótipos dos grupos que apreciam o pagode. Para ele, “no plano social os grupos que apreciam a axé music são vistos de forma mais estereotipada, e os grupos que gostam do pagode, de modo mais preconceituoso” (SANTOS, 2006, p. 80). A análise dessa recepção e dos perfis de quem aprecia o pagode permitiu observar julgamentos através dos quais os grupos de pagode foram, com frequência, impli- citamente ou explicitamente desvalorizados.

No que tange à recepção junto ao público, o segmento pagode é também identificado por alguns grupos sociais como um “subgê- nero”, quando analisado dentro do contexto maior da música pro- duzida na Bahia. Isso acontece muito em função de ser uma músi- ca produzida por jovens das camadas populares, negros e de pouca escolaridade, como fica evidenciado tanto na pesquisa de Santos, que utiliza uma metodologia da Psicologia, quanto nas entrevistas realizadas para esta pesquisa.

Segundo Godi (1997), os anos 80 também foram marcados pelo deslocamento do sucesso dessas músicas dos aglomerados festi- vos típicos de Salvador, que acontecem nas ruas, nas festas de largo,

para todo e qualquer espaço das “massas”14 urbanas contemporâne-

as. Para ele, é quando se observa, no contexto da cultura musical da 14 Godi, nesse estudo, utiliza o conceito de “massas” tal como é usado por Walter Benjamin,

enfatizando a emergência de novas variáveis técnicas que contribuíram para uma nova sociabilidade, consequência da “cultura de massa”. As novidades tecnoculturais como a re- produção e a difusão proporcionariam novas formas de produção e experiências culturais.

Bahia, a importante passagem do sentido social de “multidão” para o sentido social de “massa”.

É importante ressaltar que essa produção musical baiana, antes sazonal e restrita ao período festivo característico das festas populares da Bahia, principalmente ao carnaval, assume um novo significado para a juventude negro mestiça. Para Leme (2003, p. 74),

a música de massa produzida no Brasil é fruto da rearticulação de matrizes históricas, que vão sen- do adaptadas a novos contextos, novas influências culturais, num processo complexo que pode haver tanto imposições culturais como apropriações, re- sistências e inovações.

Nesse aspecto, essa rearticulação vai ser observada no con- texto da música produzida na Bahia na década de 1990 que tem como um dos principais representantes o grupo baiano É o tchan.

Tradicionalmente, é nas festas do povo que o negro e suas expressões culturais alcançam maior visibilidade. O surgimento dos blocos e associações de negros com visão política vem forçando a so- ciedade a repensar suas relações com a tradição negra. Dessa forma, a própria divulgação de seus produtos no exterior abre espaços para a tradição e a experimentação de negros urbanos.