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Biodiversidade e Diversidade Cultural: um conceito econômico de recursos . 10

Como vimos, o cartesianismo consolida dois pontos fundamentais do pensamento moderno: o caráter prático e utilitário do conhecimento e uma visão antropocêntrica do mundo e da natureza: “o homem é o centro do mundo” e, se a natureza existe, foi criada para servi-lo. Esta forma de pensar e de agir sobre o meio ambiente é que, ao longo do tempo, levou ao agravamento da problemática ambiental atual.

Contudo, paralelo ao processo de modernização, observou-se uma preocupação crescente com a destruição do meio natural causada pelas atividades humanas. As manifestações de alerta vindas dos diversos setores sociais, políticos e científicos dão conta da necessidade de reformulação dos princípios e planos de ação que forcem a adoção de novas tecnologias, de medidas de contenção desses impactos ambientais e de preservação da biodiversidade.

Mas, apesar dos crescentes protestos, ao longo dos anos, a perda de biodiversidade prosseguiu, o que significa para o Brasil uma prova de fogo. Pois, não há como negar que a biodiversidade brasileira, internacionalmente reconhecida, é vista como fonte de matéria-prima para a produção industrial de alimentos, medicamentos, fibras, etc., estando longe de ter seus usos potenciais totalmente investigados, porque ainda é desconhecida em sua grandeza e porque o saber tradicional tem sofrido duros golpes da sociedade moderna, antes mesmo de ter o seu valor reconhecido (FOLADORI, 2001).

No caso brasileiro, portanto, a ameaça à diversidade natural incide diretamente sobre aquelas culturas que dependem dos recursos naturais para sua subsistência e reprodução cultural. E quando se fala em culturas tradicionais inclui-se, neste conceito, não apenas as comunidades indígenas, mas todas aquelas que vivem da estreita relação com o meio natural – comunidades ribeirinhas, rurais, remanescentes de quilombos, entre outros.

E, embora seja mesmo impossível avaliar a riqueza da biodiversidade brasileira como um todo, é possível pulverizá-la em fragmentos microscópicos, apropriar-se de algumas dessas unidades mínimas e conferir-lhes um valor econômico que pode render milhões no mercado mundial. Na verdade, a biotecnologia parece expressar um novo tipo de predação mais perversa e uma

maneira sofisticada de submeter a biodiversidade à lei de mercado (FOLADORI,2001).

Há ainda outros “benefícios” que podem ser considerados, segundo a lógica de mercado: aqueles ligados à agricultura e á pecuária, por exemplo. Pois, quando se considera o estilo predatório de desenvolvimento que prevaleceu na sociedade moderna, é espantoso constatar que florestas e áreas de cerrado estão sendo destruídas, afetando não só a flora, mas também a fauna, simplesmente porque para os agentes econômicos o “valor natural” dessas áreas é menor do que o valor de usos alternativos do solo.

De fato, o destino da biodiversidade e, conseqüentemente, da diversidade cultural parece atado ao conceito econômico de recursos. A riqueza da biodiversidade brasileira vem sendo dilapidada para promover a sua integração na economia de mercado através de um estilo de desenvolvimento predatório.

Surge então uma indagação: Haveria outros modos de identificação e de relação com o meio ambiente, ou o “nosso” seria o único?

1.3 Modos de identificação da natureza:

Segundo um modelo de “ecologia simbólica” proposto por Descola (1992-1996), antropólogo social francês, distingue-se três modos dominantes de identificação da natureza: animismo, totemismo e naturalismo.

O animismo, típico das cosmologias ocidentais, dota os seres não-humanos (animais, plantas, espíritos) de atributos não-humanos e sociais; chegando em alguns casos a conferir-lhes “cultura”, como hábitos, rituais, músicas e danças próprias. Um contexto, no qual o ser humano não é a única voz ativa no discurso cosmológico. Comum nas comunidades tradicionais, essa concepção orienta comportamentos sociais, permite interpretar acontecimentos e tomar decisões.

Então, por exemplo:

- Entre os Makuna, grupo de língua Tukano do noroeste da Amazônia, o universo é pensado enquanto uma rede de troca de alimentos. E, assim, o universo é dividido entre “caçador” e “caça”, formando um esquema tripartido de classificação cósmica, com base na cadeia alimentar (ARHEM, 1993):

CAÇADOR SUPREMO caça/CAÇADOR caça

Desta forma, seres humanos e não-humanos interagem nos diferentes níveis de vida, garantindo a continuidade ordenada de todas as classes de seres.

- Entre os Achuar, do Equador, ter roça é sinal de status. A condição necessária para uma prática eficaz da horticultura é estabelecer um pacto harmonioso e permanente com Nunkui, o espírito tutelar das roças. Ou seja, enquanto mito de origem das plantas cultivadas, Nunkui é a “mãe” de todas as plantas cultivadas. E as mulheres, tomadas pela crença do poder mágico de Nunkui, também se colocam numa relação de consangüinidade com as plantas.

Elas também seriam “mães” das plantas cultivadas, tratando-as com dedicação.

Esta harmonia que reina entre as mãos femininas que cuidam e as plantas cultivadas é o que garante a presença espiritual de Nunkui na roça, que se revelaria concretamente na abundância, beleza e longevidade das plantações.

Um segundo modo de identificação, o totemismo, não é propriamente um esquema de interação entre humanos e não-humanos, como os outros dois modos (animismo e naturalismo), mas de classificações lógicas e diferenciais entre as espécies naturais (com base no conhecimento profundo de sua morfologia e modos de utilização) para conferir uma ordem interna ao grupo

social. Ou seja, elementos da natureza para explicar a organização social. As unidades sociais são aqui determinadas por clãs. Então, por exemplo, o clã da ema, o clã do urso, entre outros. Os privilégios e proibições ligados às dependências de clã manifestam-se nas técnicas de trabalho, nos ornamentos e na alimentação. Um exemplo fácil de entender é aquele em que um caçador do clã da ema não pode caçar este animal. Uma lógica que também explica as relações entre os indivíduos dos diferentes clãs no que se refere aos laços de matrimônio.

Um indivíduo do clã da ema não pode casar-se com um indivíduo do clã do urso, porque não há nenhuma relação entre os elementos de um animal de planície (ema) e um animal de montanha (urso).

Um terceiro modo de identificação, e mais familiar à nós, é o naturalismo (aquele de desenvolvimento predatório). Nesse contexto, uma equivalência entre humanos e não-humanos é difícil de alcançar, por não se considerar a existência de uma base comum entre eles, pois são pensados como duas entidades separadas (herança do pensamento cartesiano), numa situação em que o homem é superior. Comum às culturas ocidentais, o pensar e o agir sobre o meio ambiente como se a natureza estivesse à disposição do homem é o que tem contribuído, ao longo do tempo, para o agravamento da problemática ambiental. E, exemplo do que ocorre, já foi dado no início desta fala – a superexploração dos recursos naturais.

Mas, estas identificações tornam-se realmente diferenciadas e significantes antropologicamente, quando mediadas por modos de relação entre os diversos elementos do meio ambiente, que refletem uma variedade de estilos e valores implícitos na práxis social.