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APÊNDICE I O crucifixo que jorrou sangue

CAPÍTULO 1 – PENTECOSTALISMO CLÁSSICO: BREVES NOTAS DE COMO

1.5 Breve discussão sobre a origem da RCC no Brasil

Alguns autores quando discutem a origem da RCC apontam para o fenômeno do pentecostalismo brasileiro no aspecto das três ondas. A primeira formou comunidades religiosas como a Assembléia de Deus; a terceira, classificada como pentecostalismo autônomo, foi marcada pelo trinômio cura-exorcismo-prosperidade, tendo como expoente a IURD. O surgimento da RCC faria parte da segunda onda do pentecostalismo, caracterizada pela emergência de movimentos religiosos ao invés de Igrejas (ANTONIAZZI, 1994).

Paul Freston (apud ANTONIAZZI, 1994), apesar de também utilizar o modelo das três ondas, vai demarcar suas fronteiras de forma diferente. Segundo ele, a ênfase da primeira onda foi o batismo no Espírito Santo através do dom da glossolalia; a ênfase da segunda onda foi a cura e a da terceira, a libertação.

Para Edênio Valle (2004), a RCC encontrou terreno fértil no Brasil e se expandiu com muita rapidez graças a essa tendência brasileira em abrir-se à cultura

norte-americana. Assim como se importam carros, eletrodomésticos, filmes, comida e moda, estaria se importando também as formas norte-americanas de crer e viver experiências religiosas. Ele explica:

O comportamento religioso brasileiro não poderia escapar à pressão global que nos chega do poderoso irmão do norte. Cada vez mais o cristianismo brasileiro se torna uma cópia (um pouco em atraso) do que sucede no norte do continente. O que se dá lá se copia e se repete de alguma maneira aqui (VALLE, 2004, p. 3).

Entretanto, é de se pensar que essa interpretação reduz o fenômeno carismático a quase uma questão de inculturação, simplificando demais um processo que vai além de uma importação cultural. Também reducionista, no entender do autor desta dissertação, é a interpretação de Lemuel Guerra (2003) que analisa o movimento sob a ótica do mercado religioso. Segundo ele, a adoção do modelo carismático, foi o resultado dos esforços que a Igreja fez para adaptar sua proposta de religiosidade às novas condições de mercado e às demandas dos fiéis, que migravam continuamente para as seitas evangélicas.

Uma ação destinada a fazer frente à perda de fiéis para os pentecostais, que ofereciam o que tinha sido deixado de lado no produto religiosos dos progressistas, significou, efetivamente, uma apropriação de algumas características do principal adversário dos católicos no mercado religioso no Brasil (VALLE, 2004, p. 8).

Segundo ele, diante da competição dentro desse mercado religioso, a Igreja conseguiu, através da RCC, cumprir duas metas ao mesmo tempo: a de conter a expansão dos pentecostais e a de enfraquecer os setores mais progressistas da Igreja (CEBs). A expansão da RCC representou, portanto, a vitória de alas mais conservadoras do clero em detrimento da Igreja Popular que perdera a luta. Valle (2004) ressalta, entretanto, que tudo isso não ocorreu de forma estratégica e planejada. Ele explica:

O que aconteceu foi, por um lado, a criação de uma série de mecanismos estruturais e organizacionais que dão apoio ao desenvolvimento desse estilo de ser católico - o carismático - e, por outro, a tomada de um conjunto de medidas que resultariam, na prática, em maiores dificuldades para a continuidade e desenvolvimento do projeto da Igreja Popular (VALLE, 2004, p. 8).

Embora não seja possível negar a existência de um mercado religioso, pensa- se que esta não deve ser a única via de interpretação do fenômeno carismático. É importante lançar mão do argumento de Ari Pedro Oro (1997) que tenta compreender o surgimento e a consolidação da Renovação Carismática dentro de um contexto histórico-social mais amplo. Ele tenta identificar algumas características comuns nos novos movimentos religiosos mostrando que, a partir da década de 70, surgir

am formas modernas de crer, que se caracterizam pela: (1) centralidade da emoção, do uso do corpo e da subjetividade; (2) dimensão globalizante e holística, de união do fiel com o mundo, consigo mesmo e com o cosmos; e (3) dimensão terapêutica, com ênfase na busca da saúde e do equilíbrio corpo-mente.

Num contexto de novas configurações sociais, Emerson Silveira discorre que se pode observar o deslocamento do senso de obrigatoriedade vivenciado pela tradição para dar lugar a um senso experimentação individualística (SILVEIRA, 2008). Mariz e Machado (1998) complementam afirmando que nesse processo as noções de verdade passam a ser deslocadas e se percebe o início do abandono de uma identidade religiosa institucional que desloca a verdade para o âmbito da experimentação dos agentes sócio-religiosos.

Oliveira (2008), em sua etnografia sobre a Canção Nova, aponta que ao mesmo tempo em que se confirmava um pertencimento à instituição católica, simultaneamente, os carismáticos desejam renová-la tendo por base os moldes pentecostal-evangélicos. Isso será percebido na etnografia dos Guerreiros de Oração proposta no final deste trabalho.

É nesse sentido, continua Oliveira (2008), que a RCC passaria a viver a ambivalência de ser católica e carismática, em muitos casos, dentre os quais o de Sapucaia, muito próxima aos pentecostais quanto à performance nas práticas religiosas. A partir do catolicismo carismático o fiel passaria a usufruir as duas identificações ao mesmo tempo sem precisar fazer uma escolha entre elas (OLIVEIRA, 2008). Esse apontamento também será constatado nas práticas religiosas das vigílias de oração realizadas pelos Guerreiros de Oração de Sapucaia.

A RCC, portanto, ratificaria o simbolismo, a doutrina e a dogmática tradicional católica, mas, ao mesmo tempo contestaria o catolicismo de um tipo mais secularizado, questionando as barreiras institucionais às manifestações do Espírito Santo e às várias experimentações do sagrado irrompidas na vida cotidiana, como os milagres, a Providência Divina, as visões ou sensações de Jesus ou da Virgem Maria

(MACHADO & MARIZ, 1994; 2003; MACHADO, 1996; MAUÉS, 2000; STEIL, 1998; 2003).

Continuando com Oliveira (2008), o ideal buscado pelo fiel católico- carismático e não concebido por ele como contraditório, seria que sua permanência na Igreja não interferisse na sua autonomia em relação a ela. Ou ainda, que, em última instância, as experiências vividas pelo movimento dentro da Igreja, transformassem a própria Igreja. Por isso, consequentemente, surgiram tensões entre a instituição e o carisma, e tais tensões são creditadas ao mito de origem no qual a RCC estaria fundamentada: o Pentecostes (NETO, 1997; SILVEIRA, 2008; CAMURÇA, 1999).

Esse é o contexto em que se dá esta pesquisa, no entrecruzamento entre a experiência pessoal vivenciada pelo carismático e a religião a qual faz parte. Ou seja, num ponto de tensão em que um grupo de carismáticos, os Guerreiros de Oração, diz vivenciar intensas experiências religiosas dentro de espaços institucionalizados onde existem normas de conduta para orientar quanto a distorções e exageros.

Concorda-se que tanto o pentecostalismo quanto o carismatismo, como já dito anteriormente, seja no início, no meio, fim do século XX ou nos diversos contextos os quais uma determinada modalidade pentecostal tenha surgido, são movimentos fundados e originários de um único fenômeno (Batismo no Espírito Santo). Assim ocorreu com no pentecostalismo clássico (1901 e 1906), com o pentecostalismo católico (1967) e com os Guerreiros de Oração em Sapucaia (1994).

A diferença entre eles está na corporalidade ou, especificamente, no aspecto do deixar-se corporalmente ser manipulado (SILVEIRA, 2008) pelo agente divino, pois enquanto no pentecostalismo clássico a experiência corpórea era mais selvagem55 (BASTIDE, 2006), no pentecostalismo católico ou carismático de modalidade/vertente56 oficial a experiência era mais controlada, não significando a ausência do agente divino, mas a forma como se deixara ser manipulado por ele.

Com os Guerreiros de Oração já se ocorre um duplo aspecto: o corpóreo e o liminar. Corpóreo no aspecto da opção pela experiência selvagem e liminar no aspecto

55 As reuniões eram eletrizantes e barulhentas. Começavam às 10 horas da manhã e prosseguiam por pelo menos doze horas, muitas vezes terminando às 2 ou 3 da madrugada seguinte. Não havia hinários, liturgia ou ordem de culto. Os homens gritavam e saltavam através do salão; as mulheres dançavam e cantavam. Algumas pessoas entravam em transe e caiam prostradas. (MATOS, 2006, p. 32).

56 Vertente é o termo utilizado na Tese de Doutorado de Emerson S. Silveira (2008) quando fala da enorme diversidade interna existente na RCC. Silveira atribui o termo oficial aos carismáticos católicos que buscam seguir as orientações da CNBB quanto às normas de conduta referentes às experiências subjetivas. Nesta dissertação será utilizado o termo modalidade por considerar ser mais apropriado que vertente.

de estar à margem, isto é, eles não se coadunam com os pentecostais protestantes e discordam das normas de conduta acolhidas pelos carismáticos oficiais. A partir de situações conflituosas entre as normas de conduta e a opção pelas experiências selvagens, os Guerreiros de Oração então, conforme aponta Steil (2001; 2004), criam novas formas de vivenciar suas práticas, numa espécie de fuga do controle ou cerceamento de suas experiências.

No entender do autor desta dissertação, são maneiras de se deixar ser manipulado pelo agente divino, descolando-se para espacialidades de grande representatividade do universo pentecostal: os montes. Tais experiências religiosas são deslocadas para os montes por conta da suposta necessidade da vivência ou manutenção da selvageria (BASTIDE, 2006) como critério de validação das certezas e das verdades pessoais. Foi nesse sentido que passou a se considerar que por meio da etnografia seria possível uma maior compreensão dessas práticas religiosas.