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2.1. Os recursos do alfabeto fonético internacional

2.1.1 Breve histórico e princípios gerais

Em paralelo aos estudos sobre a voz humana relacionados ao contexto ar- tístico das práticas do canto, desenvolvem-se importantes evoluções no conheci- mento sobre os aspectos fonético-articulatórios da fala.

33 Referimo-nos ao IPA - International Phonetic Alphabet, conforme apresentaremos com detalhes, mais adiante.

34 CAGLIARI (1999, 2004) menciona a distinção entre as escritas ideográficas (tais como a escrita do japonês e do mandarim, nas quais os sinais gráficos representam diretamente as ideias a serem ex- pressas) e as escritas fonográficas (tais como as ortografias e notações fonéticas, nas quais os sinais gráficos representam os sons/articulações que correspondem às palavras que se relacionam às idei- as a serem expressas). Embora busquem representar os sons da fala, as ortografias acompanham a evolução das línguas nos diversos contextos históricos e geográficos e isso justifica a gradual perda da objetividade na relação entre som e símbolo das ortografias. Veremos a seguir que as notações fonéticas buscam um resultado de representação ao mesmo tempo mais objetivo (quanto a relação entre som e representação gráfica) e universal (quanto à sua aplicação a qualquer língua natural), fatores que colaboram para o estudo da dicção aplicada ao canto.

BARBOSA (2001), relata que no séc. XVII as postulações de René Descar- tes sobre a noção de que os animais, enquanto seres desprovidos de razão, agiriam conforme a pré-disposição natural dos seus órgãos físicos provoca uma onda de in- teresse sobre as possibilidades de reprodução dos mecanismos dos sistemas orgâ- nicos, dentre os quais a máquina humana. Este interesse ganha novas motivações e se amplia à luz do pensamento empirista do séc. XVIII. Naquele século, uma série de projetos e tentativas de produção de sistemas artificiais, inclusive dispositivos au- tômatos, que pudessem reproduzir os mecanismos humanos da fala culminam com os esforços de Wolfgang Ritter von Kempelen que efetivamente conclui em 1791 a construção de uma máquina falante operada manualmente.

Em conjunto com a construção dos modelos mecânicos de emulação dos sons da fala, desenvolveram-se os estudos teóricos sobre as características acústi- cas e articulatórias destes sons, suas relações com as ortografias e outras possíveis formas de representação.

Estes estudos que fundam no ocidente o moderno campo científico da foné- tica, são considerados como herança de um legado oriental de cerca de 500 a.C.35 De acordo com BROSNAHAM & MALMBERG (1970, p. 74-91), a proposição de al- fabetos fonéticos (ou seja, sistemas de representação gráfica dos sons da fala) ocor- re no mínimo desde o século XVII, sendo que há indícios de ocorrências anteriores àquele período. Entretanto, é o desenvolvimento dos estudos linguísticos, no século XIX, que estimula a sistematização e o uso deste tipo de recurso. Em geral, estes sistemas de representação se caracterizam pelo propósito de representar grafica- mente os sons da fala de uma maneira mais objetiva e biunívoca36 do que as repre- sentações ortográficas. Como base para os seus conjuntos de caracteres gráficos, estes alfabetos fonéticos se utilizaram tanto de recursos tais como os símbolos orto-

35 Conforme BHATIA (1986), entre outras fontes, atribui-se a este período os estudos gramaticais so- bre o sânscrito, realizados pelo sábio indiano Pāṇini (cerca de 520 a 460 a.C.). As primeiras tradu- ções destes estudos para as línguas ocidentais datam de finais da primeira metade do séc XIX. Uma série de fundamentos que se estabeleceram como a base para os diversos ramos da moderna lin- guística ocidental remontam a estes estudos, desde a morfologia, a sintaxe, a fonética-fonologia até a semiótica. No âmbito da fonética, por exemplo, estes fundamentos incluem os parâmetros de classifi- cação articulatória dos sons da fala, tais como ponto e modo de articulação (conceitos que veremos logo adiante). Remontam também à gramática de Pãnini a maneira de ordenar as consoantes na maioria dos alfabetos da família linguística indo-europeia.

36 Termo que se refere ao princípio de biunivocidade, tal como na teoria dos conjuntos, quando um elemento de um determinado conjunto (por exemplo, o conjunto dos sons da de uma língua) corres- ponde somente a um elemento de outro determinado conjunto (no caso, o conjunto dos símbolos fo- néticos) e vice-versa.

gráficos dos alfabetos românicos37 (por isso podemos chamá-los de não-alfabéticos) quanto de caracteres completamente novos, muitas vezes capazes de evocar as- pectos característicos da mecânica articulatória dos sons a serem representados38.

Entre estes sistemas de representação gráfica ou de transcrição fonética, destaca-se o IPA - International Phonetic Alphabet (alfabeto fonético internacional). Baseado em um conjunto de caracteres românicos e aberto à utilização de diversos elementos não-alfabéticos, o IPA permanece em uso até hoje e tem sido regular- mente atualizado39.

Conforme o relato histórico publicado no Handbook of International Phonetic

Alphabet (1999), a primeira edição deste alfabeto foi estabelecida em 1888, dois

anos após a criação da International Phonetic Association (também conhecida pela sigla IPA), em 1886. A criação desta associação, atualmente estabelecida na Uni-

versity College London (Reino Unido), foi motivada justamente pelo propósito da

fundamentação e estabelecimento de um alfabeto fonético enquanto um recurso consistente para a representação escrita dos sons da fala e, por intermédio deste recurso, contribuir para o desenvolvimento dos estudos científicos no campo da fo- nética, bem como suas aplicações práticas nas diversas áreas do interesse humano.

No Handbook of International Phonetic Alphabet (1999), publicação que substitui o livreto intitulado The Principles of the International Phonetic Association (1949), consta a relação de princípios cujas bases remontam à primeira edição. En- tretanto, o estabelecimento destes princípios tem sido frequentemente aperfeiçoado e atualizado, sendo a publicação de 1999 o resultado de uma convenção realizada em 1989.

Os princípios gerais do IPA, conforme a sua publicação mais atual, estabele- cem: (cf. International Phonetic Association, 1999, pp. 159-160)

• A publicação de um alfabeto fonético padrão, usualmente denominado de IPA (ini- ciais International Phonetic Alphabet)40 como uma referência orientado especialmen-

37 Relativo à ortografia das línguas pertencentes ao ramo linguístico que evolui do latim.

38 Fato que se desenvolve naturalmente nas ortografias, por exemplo, o grafismo da letra ‘o’ nos re- mete à articulação labializada do fonema [o].

39 A mais recente revisão das tabelas do IPA datam de 2005 e estão disponíveis em http://www.langsci.ucl.ac.uk/ipa/ipachart.html

40 A Associação reconhece o uso da sigla API por países não falantes do inglês, entretanto, nenhuma referência exata é feita ao uso corrente de AFI nos países de língua portuguesa e espanhola. Neste trabalho utilizaremos a sigla em inglês, porém, ela não será grafada em Itálico.

te às necessidades dos estudos linguísticos, tais como: a realização de registros grá- ficos sobre a estrutura fonética ou fonológica das línguas; a realização de transcri- ções fonéticas41 como recurso para o estudo de línguas estrangeiras com base em ortografias românicas, não românicas e até línguas não escritas.

• O alfabeto contém um grande número de símbolos e diacríticos para a representa- ção de distinções acústicas e articulatórias, das mais amplas às mais estritas. Por esta razão, compreende-se o IPA como um conjunto de símbolos e diacríticos capaz de representar foneticamente todas as línguas do mundo.

• O uso de símbolos utilizados no IPA para representar os sons de cada língua em particular é guiado pelo princípio do contraste fonológico. Em outras palavras, os sons representados pelos símbolos correspondem primordialmente àqueles que ser- vem para distinguir uma palavra de outra, em uma dada língua (nesse sentido, o propósito da concisão fonética do IPA se beneficia pela consideração de um princípio fonológico).

• A organização destes símbolos tem como base um conjunto de categorias estabe- lecidas a partir das características articulatórias da produção dos sons a serem re- presentados. Estas categorias buscam definir um certo número de ‘classes naturais’ dos sons que são possíveis de ocorrer na fonologia das línguas, incluindo-se as suas transformações e históricas42.

• Uma vez que os fonemas correspondem à manifestação simultânea de um conjunto de categorias acústicas/articulatórias, os símbolos do IPA buscam sintetizar mais de uma destas categorias. Por exemplo, o fonema [p] é ao mesmo tempo bilabial (articu- lado pelos lábios), plosivo (pela ‘explosão’ causada pelo fluxo expiratório ao pressio- nar os lábios na emissão) e não-vozeado (não tem atuação das pregas vocais).

41 Como tem sido correntemente utilizado no canto, bem como nas práticas composicionais e peda- gógicas da música de maneira ainda limitada, considerando-se que o IPA, no contexto de determina- das abordagens analíticas e pedagógicas, poderia se configurar como uma via de mão dupla: repre- sentando os sons a serem articulados e, ao mesmo tempo, oferecendo informações sobre como esta articulação poderia ser executada com o objetivo de atingir determinados propósitos da técnica vocal e da expressão musical.

42 Ou seja, não sabemos exatamente como se realizava a pronúncia do português brasileiro no perío-

do colonial, mas o IPA oferece recursos para representar as possibilidades de realização destes sons conforme as nossas especulações.

• A realização de uma transcrição fonética com os recursos do IPA consiste sempre em um processo de interpretação, uma vez que os recursos de alguns símbolos e diacríticos do IPA não podem ser compreendidos simplesmente pela sua forma de representação ou pela descrição dos aspectos articulatórios envolvidos na sua reali- zação sonora43.

Mais especificamente com relação à construção do IPA, a Associação Inter- nacional de Fonética considerou os seguintes aspectos essenciais:

• As letras do alfabeto romano devem ser utilizadas como símbolos do IPA, sempre que possível. Nos casos em que este uso não for possível, outros símbolos podem ser utilizados como alternativa;

• A distinção entre dois sons diferentes de uma determinada língua deve ser repre- sentada por dois diferentes símbolos do IPA, sem o uso de diacríticos;

• Quando dois sons são tão similares a ponto de não serem empregados para a dis- tinção de significados em qualquer língua, estes sons devem ser representados pelo mesmo símbolo;

• Não é possível dispensar completamente o uso de diacríticos, mas este uso deve ser limitado a: marcações de duração, acento e altura dos sons; para representar nuances ou diferenças mínimas de variação dos sons; quando ocorre uma óbvia ne- cessidade de criar um novo símbolo a partir de um símbolo já utilizado (como no ca- so do uso do til associado a uma vogal para representar a sua vogal nasal corres- pondente);

• O IPA é um sistema de representação que se baseia na relação biunívoca entre os conjuntos dos sons e o conjunto dos símbolos a serem utilizados para representar estes sons. Ou seja, um som de uma determinada língua deve ter como correspon-

43 Para que possam ser aplicados aos diversos contextos, é fundamental que o IPA tenha este grau de abertura. Neste sentido, é recomendável que a realização de uma transcrição fonética com os re- cursos deste alfabeto esteja relacionada a um conjunto específico de critérios orientados aos objeti- vos do uso.

dente um único símbolo do IPA e, ao mesmo tempo, este símbolo deve representar apenas um som da referida língua.

No contexto da apresentação dos princípios relacionados acima, o Handbook recomenda como procedimento a utilização de colchetes [ ] para especificar, na es- crita, que o conjunto de símbolos contidos por estes colchetes correspondem a uma transcrição fonética. Com propósito complementar é sugerido também que as trans- crições que se refiram aos dados fonológicos dos sons representados se utilize de barras inclinadas à direita / / para delimitar este tipo de representação.

Sobre a fonética e a fonologia, estes dois ramos dos estudos linguísticos que tem como campo de investigação os sons da fala, podemos dizer de maneira muito geral eles diferem quanto aos seus objetos de estudo. Enquanto a fonética tem como objeto a realidade física (acústica, articulatória e perceptual) dos sons da fala, a fono- logia trata da maneira como estes sons se organizam sistematicamente em cada lín- gua.

Neste contexto, podemos verificar que nem sempre uma transcrição fonética é necessária para representar o papel fonológico de um determinado som em uma determinada língua.

Por exemplo, no português brasileiro a articulação do som correspondente à letra ‘t’ na palavra ‘tia’ pode ser realizada foneticamente como [t] (uma oclusiva den- tal) ou [tʃ] (uma africada)44. Entretanto, ao utilizarmos uma ou outra forma de articula-

ção do ‘t’, embora estejamos modificando a característica fonética desta letra não produzimos nenhum efeito de mudança quanto à função fonológica desta letra na pronúncia da desta palavra.

Com base no exemplo acima podemos concluir que, em relação ao objeto da fonética (que é a representação da natureza física som) é necessária a distinção en- tre [t] [tʃ]. Mas em relação ao objeto da fonologia (que é a consideração sobre a fun- ção do som em relação à construção do sentido) basta a representação de /t/, que ao olhar fonológico representa todas as possibilidades articulatórias da letra ‘t’ na língua em questão que funcionam como [t] em relação ao sentido da palavra ‘tia’.

Finalmente, aproveitando a referência da Associação Internacional de Foné- tica sobre estas convenções quanto à distinção entre as notações fonética e fonoló-

gica, apresentamos uma outra convenção que é correntemente utilizada no âmbito dos estudos fonéticos-fonológicos. Trata-se da representação gráfica do conteúdo ortográfico a ser tratado. Deste ponto em diante do nosso trabalho, ao nos referirmos a uma determinada letra ou palavra a ser também considerada dos pontos de vista da transcrição fonética ou fonológica, apresentaremos este conteúdo ortográfico en- tre parêntesis angulares < > e não mais entre aspas simples.