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Eu queria fazer uma pergunta para a Ligia Bahia, até mesmo porque você mencionou o Gastão e o Pellegrini nas entrevistas da rádio e da revista aqui da Politécnica. Eu entrevistei o Gastão, entrevista publicada na revista da Politécnica, e ele diz (há até

um destaque aí na revista) várias coisas muito legais e uma delas é a seguinte: “A classe média hoje aspira na sua cesta básica a uma camionete a um plano de saúde”. Ele diz isso no contexto de tentar defender que o SUS não foi apropriado, não é querido (no sentido de desejado) pela população brasileira e um conjunto de outras

críticas que ele coloca. Queria primeiro que você falasse disso um pouquinho e, em segundo, queria vincular uma coisa que você disse assim: “Na 8a Conferência, a gente tinha discussão sobre ‘estatização já ou estatização progressiva’. Aí você diz:“Não tivemos nem uma coisa nem outra”. Aí eu pergunto usando essa frase do Gastão: Em alguma me

-dida, quando não optamos por uma estatização, já levando em conta todas as forças

que estavam em disputa, tudo o que era possível, tudo o que não era possível... Na medida em que não optamos por estatização, já sobrou a estatização progressiva. Numa sociedade capitalista de classe desigual, não seria uma tragédia anunciada que a classe média, 20 anos depois, aspirasse a uma camionete a um plano de saúde?

JAIRNILSON PAIM:

Gil, vou ter de rever as contas, mas todos os relatos que eu tenho ouvido falar e constatado do Datasus apontam não exatamente 12 milhões (1 milhão por mês), mas 11 milhões e pouco. Essa é a informação que temos em termos de internações

hos-pitalares. Antes eram 10% da população brasileira, mas, como está havendo redução,

estamos com essa faixa.

Por que pacto de gestão? Não é um negócio meio démodé depois de tantos

projetos mais amplos e generosos, inclusive os que estavam na lei? Aí temos de entender isso com a conjuntura durante o processo constituinte e com o fato de

que todas as forças sociais que apostavam na Reforma Sanitária perderam as eleições

de 1989. Até mesmo o fato de ter-se conseguido que os vetos do Collor

pudes-sem ser recompostos em relação à Lei nº 8.142, que foi promulgada em 28 de de-zembro de 1990, mas no primeiro ou segundo dia do mês seguinte o presiden- te do Inamps fazia a NOB-91, destruindo tudo o que estava na lei nº 8.142, ao ponto de, três anos depois, precisar ter um documento, “a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Para quem é estrangeiro, não dá para entender como isso pode ocorrer num país.

O processo político durante a Constituinte deixava completamente entre colchetes a questão da estatização. O que aconteceu? Com as mudanças das regras

do jogo no próprio jogo que o “centrão” fez, já não tinha mais espaço para isso, ou seja, a estatização. Quando se consegue cunhar na Constituição que a saúde é livre à

iniciativa privada, estava se consagrando toda a construção do sistema de saúde

ante-rior ao próprio SUS. Então, todos os passos que vão sendo dados na década de 1990 são no sentido de fazer um SUS “a facão”! Não era possível cumprir a lei por vários

motivos, inclusive dada a complexidade da federação brasileira, que tem municípios

com três ou cinco milhões e municípios de cinco mil habitantes. E não tinha finan

-ciamento para a saúde. A forma como foi construído esse sistema é extremamente

contraditória. Não é a partir da perspectiva formal do que estava na lei, mas dentro das forças que estavam compondo aquela correlação na década de 1990.

Então, acho que esse SUS, no aspecto para o qual você chamou a atenção a respeito do PSF, era um SUS que foi pensado para ser universal. Mas, com a escassez

de recursos, qualquer prefeito que tenha pouco dinheiro não irá fazer o discurso da universalidade. Ele vai colocar num lugar onde tem menos postos de saúde, então ele vai botar a saúde da família. Na minha cidade, Salvador, que não é tão pequena como a dos cinco mil habitantes (tem quase três milhões de habitantes), os próprios

Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), pensados para apoiar as equipes de

saúde da família, estão sendo cogitados pelo prefeito atual para preencher vazios existenciais. Então, essa é a lógica: na falta de recurso, o que vale é o pragmatismo em relação aos grupos que têm menos condição de chegar ao acesso ao serviço de

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saúde. Não estou justificando isso. Estou tentando compreender, já que entendemos o Estado como uma condensação material de uma relação de forças. Ou seja, esse Estado que é SUS, esse SUS que é Estado, é fruto desse processo que foi construído

ao longo da década de 1990.

Você colocou a questão da qualidade: com pouco recurso, sem ter uma

es-tabilidade de uma carreira no serviço público, sem ter uma qualificação permanente das equipes do SUS, particularmente em relação à saúde da família. Mas não é sem -pre assim. Num município como Belo Horizonte, onde há quase seiscentas equipes de saúde da família, temos um outro tipo de intervenção articulada entre a saúde da família e a atenção básica com outros níveis do sistema. Portanto, é um processo de luta permanente, em que as várias brechas vão sendo deixadas para o privado. Eu não concordo com aqueles que também diziam que o crescimento dos planos

pri-vados era por causa do SUS. A tese de Ligia Bahia demonstra claramente que desde a década de 1940 o Banco de Brasil já tinha Caixa de Assistência dos Funcionários (Cassi); desde a década de 1960, quando a Volkswagen veio para o Brasil, já existia medicina de grupo. E, se vocês forem ver Carlos Chagas na reforma de 1923, já es -tava lá com todas as letras a possibilidade de contratar serviços do setor privado. Não era Eloy Chaves somente não. Essa construção de um Estado criar as condições para

o setor privado já vem de um século, não é do SUS.

LIGIA BAHIA:

Gilberto, eu vou falar muito rapidamente. Eu acho que você tem razão. A descen -tralização no Brasil foi uma descen-tralização favorável à privatização. Eu concordo, inclusive, com os autores que apontam isso, para os chamados “efeitos paradoxais

da descentralização”. O que ocorre hoje? Nesse exato momento, todos os candida

-tos a prefeito estão negociando com as Unimed´s. Saibam disso. E o que eles estão negociando? Estão negociando isenção de ICMS. Além disso, eles estão negociando

com os sindicatos de hospitais privados. O que eles estão negociando? O não paga-mento, a anistia de dívidas, isenção de tributo etc. etc. Depois conversarão com os candidatos a presidente... Mas as negociações prévias ocorrem apenas nas cidades. Quando um certo prefeito nomeia um secretário municipal de saúde, ou o secretário

sabe o que está fazendo, ou então é um bobo que fica com a pior parte. Enfim, isso é um jogo político democrático que já está aí há 20 anos. E o que ocorre? Ocorre que

nas localidades esses processos de negociação extrapolam essas fronteiras. Vocês hão

de convir comigo, pois existem a negociação local e a negociação nacional também. As

empresas de plano de saúde se reuniram para tentar impedir que certos ministros da

saúde tomassem posse. Agora, veja bem, há divisões também entre eles. É preciso que a

gente as conheça profundamente para traçar estratégias efetivas de mudanças. Para onde nós queremos mudar? Qual é a atual correlação de forças, como pensam, quais são as

contradições entre eles para acertar nossas estratégias? Só para se ter um exemplo:

deter-minada grande empresa de plano de saúde tem sede em um município que dificilmente seria apontado como provável para abrigá-la. Por quê? Suponho que tenha influência na eleição municipal para conservar e até ampliar um conjunto de isenções fiscais.

Quanto à qualidade dos serviços, é preciso radicalizar: em conjunto, a quali

-dade dos serviços dos planos de saúde é péssima! Os planos de saúde, hoje, propi -ciam uma saúde de péssima qualidade. Nós estamos investigando agora os casos de óbito de dengue que ocorreram no município do Rio de Janeiro. Grande parte desses óbitos é de pessoas que foram atendidas e eram cobertas por planos de saúde e foram atendidas por serviços privados. E essa expansão agora via universalização dos planos de saúde vai piorar ainda mais. São planos baratos, são planos que

uti-lizam como rede credenciada um conjunto de pequenos hospitais que não têm escala

para funcionar adequadamente, não têm qualidade, não têm corpo clínico, então, é

péssimo. A qualidade do SUS é muito boa. O acesso ao SUS é horrível. O atendi

-mento personalizado do SUS é horrível, mas eu digo que os hospitais públicos são,

em geral, ainda melhores do que os privados, no Rio de Janeiro. Não estou falando de São Paulo. Grande parte dos hospitais privados funciona analogamente aos

mo-téis! Não sei se vocês já se derem conta. A lógica é similar. São estabelecimentos que não possuem corpo clínico fechado. Os profissionais de saúde e os pacientes chegam juntos, alugam quartos e a transação é paga com a carteirinha do plano de saúde. Eu

acho que raramente um de nós iria pro motel sozinho... É ou não é? (risos) Então, não é possível a gente continuar dizendo que esses serviços são excelentes. Esse ar-gumento é falso, não tem o menor sentido. Não dispomos de informações empíricas, até deveríamos saber, por exemplo, qual é a taxa de mortalidade desses estabeleci-mentos em relação aos públicos, padronizando-as por idade, gravidade etc. etc. etc. Não temos indicações tão seguras de que há melhor qualidade no atendimento do plano de saúde. O que há? Há maior oportunidade no atendimento, há maior acesso, há maior personalização do atendimento, o que não é pouco. Não é pouco. São elementos essenciais e é claro que é por isso que se quer um plano da saúde. Foi feita uma pesquisa na Datafolha e a pergunta foi assim: O que você mais quer na vida? Quero mais uma casa própria. Em segundo lugar: plano privado de saúde. A gente tem

que tentar esclarecer o máximo possível que não é qualidade, não é a qualidade da atenção. Muito pelo contrário, a qualidade da atenção é sofrível. É temerário, é teme- rário ser atendido num hospital que não tem estudante, não tem pesquisa, não tem

chefia de serviço. Já repararam que hospital privado ou não tem estudante, ou tem

só para constar; hospital privado não tem residente ou tem, mas o residente não põe a mão no paciente VIP; hospital privado não tem residência multiprofissional, não tem administração profissionalizada... que são atributos imprescindíveis para

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A Cátia me perguntou sobre o que o Gastão falou. Nossa, quando o Gastão fala é ótimo. Acho ótimo ele estar falando sobre isso. A Cátia é uma ótima entrevis

-tadora. O Gastão ficou impressionadíssimo com essa última pesquisa que saiu do IBGE. Vocês viram, sobre as contas nacionais da saúde? As contas nacionais evi -denciam que os gastos privados com saúde superam os públicos. O Gastão conside-ra que: “Não é possível isso, nós temos que nos indignar!” Concordo, “É isso mesmo, vamos nos indignar!” Isso é um sinal forte de que todo esse avanço que nós falamos do

SUS (claro que avançamos muito) foi insuficiente para reverter aquele padrão priva -tizante anterior.

Como é que a gente conquistaria a classe média? Eu acho sinceramente que isso também é meio uma abstração... Eu não sei como a gente conquistaria a classe média. E também não sei se foi porque a gente não estatizou imediatamente. O que eu sei e eu acho que ele tem razão, Cátia, pois li a entrevista e achei muito boas as considerações tecidas pelo Gastão sobre não termos prestado a devida atenção às pessoas que trabalhavam na saúde. Eu acho que esse é um elemento importante. Nós

não tivemos a firme adesão, não tivemos como aliados permanentes as pessoas que trabalhavam e trabalham na rede SUS. Houve uma reação negativa de parte desses profissionais ao SUS e ela está presente até hoje. Os profissionais da saúde não são completamente a favor do SUS. Como a gente pode pensar sobre isso? Eu acho mais realista do que a gente imaginar que a classe média brasileira... A classe média brasi-leira é profundamente ignorante em relação a vários padrões de qualidade. A classe média brasileira acha legal ficar ouvindo música clássica no metrô e acha aquilo lindo... Eu acho um saco ficar ouvindo música clássica no metrô! Não é? Então tem

isso... O que é “de qualidade” pra classe média brasileira? Eu preferia assim, que a

gente fosse mais modesto. Acho que a proposta do Gastão é mais modesta, inclusive. A Escola Politécnica tem um grande papel nisso, de nos incitar a pensar. Concordo

com a Virgínia, queria participar, queria propor que a gente, como comissão política

de saúde da Abrasco, conseguisse de alguma maneira integrar essas pesquisas.

Eu não falei da fundação estatal. Parece até que eu fugi do tema. Vocês repa-raram, né? (risos) Eu tinha até escrito qual é a resposta. Deixe-me dizer pra vocês: no texto, eu não cito a fundação estatal de direito público como uma das evidências da

privatização; não acho que seja. Eu falo no texto sobre a fundação privada. Foram criadas várias fundações privadas. A fundação estatal de direito privado que tramita

no Congresso Nacional tem uma face pública. Eu penso que alguns de seus ideali-zadores buscam reverter a profunda privatização que nós temos no serviço público

hoje. Eu não simpatizo integralmente com os aspectos gerencialistas que estão em

-butidos na proposta das fundações estatais. Mas não quer dizer que ela seja priva -tizante. Eu penso, digamos assim, que o problema da proposta não é exatamente o alto teor de privado. Ela não tem elevado teor privado agora. Pra dizer isso, pra

vencer disso é difícil porque todo mundo acha que é mera privatização, todo mundo

acha que é igualzinho às OS´s. Não temos tempo para nos estender sobre esse tema. O que eu penso que talvez seja o equívoco da proposta? Ela finca suas bases numa compreensão, a meu juízo, pouco rigorosa, da teoria institucionalista. É como se,

oferecendo bons incentivos, as instituições se comportassem bem (como se as ins-tituições fossem gente). Basta falar: “Oi, instituição, vou te dar uma comidinha no final do

dia...” (risos). Então, funciona assim, serão oferecidos bons incentivos para que as instituições também desenvolvam boas práticas. Eu acho que há um certo equívoco porque uma proposta institucionalista num Estado completamente degradado como o Jairnilson falou é uma proposta que não aponta para uma reforma de Estado, e por isso muito utópica (esse é o primeiro equívoco), voltada para os hospitais, para alguns hospitais, então, também é um segundo equívoco. Para que esses incentivos

fossem sinérgicos (usando o jargão gerencialista), teríamos que contar com um ente contratante que fosse uma excelente instituição. Nós não temos. As secretarias mu -nicipais e as secretarias estaduais de saúde teriam que ter uma capacidade de deman-dar corretamente e de regular as compras de serviços de que essas secretarias não

dispõem hoje. Esse tema também é um tema complexo, mas eu não queria fugir da

briga. Desculpa a demora.

GUSTAVO MATTA:

A pergunta é para os dois, na realidade, em função de uma certa conjuntura política

e de uma certa organização do modelo assistencial brasileiro. Primeiro: sem dúvida, o PSF é o maior programa de assistência à saúde no Brasil e também foi o maior programa de precarização do trabalho em saúde no Brasil, no qual temos

diferencia-das formas de contratação por categoria profissional, alta rotatividade de médicos,

vínculos dos mais precários para os nossos agentes comunitários de saúde, uma baixa

qualificação para esses profissionais, resistência quanto aos profissionais (nós estamos

numa escola de ensino médio, ensino técnico), resistência quanto aos diversos atores

da Reforma Sanitária com relação à formação técnica ou qualificação dos agentes co -munitários de saúde. Em suas mãos estão 215 mil agentes co-munitários de saúde de todo o Brasil, onde está a porta de entrada do sistema de saúde brasileiro das formas mais precárias possíveis. Então, eu gostaria de ouvir em relação a essas contradições e, principalmente, uma outra forma de público-privado, que é na forma de contratação

de pessoas, que talvez não esteja computado no seu estudo (indireto).

Uma outra questão: em função desses movimentos muito bem-vindos de re

-fundação do Cebes, da Carta de Brasília, do SUS Para Valer, temos tentado criar um

movimento Reforma da Reforma. Mas estamos em plena proposta de reformulação

da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), com uma nova Secretaria de Atenção Primá-ria (seja lá que nome digam); a outra é a SecretaPrimá-ria de Alta e Média Complexidade,

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talvez por questões de custo ou talvez por questões dos prestadores, porque, já que

a atenção básica está no público, a média e a alta complexidade estão no privado.

Vamos dividir esses fundos, vamos dividir essas forças, pois a SAS é muito forte política e financeiramente... Como é que fica essa questão, como é que vocês estão vendo essa proposta hoje?