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Sabendo que o espaço urbano não é um dado da natureza, mas é produto produzido, sua conformação segue padrões e objetivos e determina o funcionamento de uma série de complexidades a ele interligada242. Mais que

um núcleo a ditar o urbano e construir territórios243, a região central de uma

cidade contemporânea deve ser compreendida como um território sem fronteiras determinantes, uma vez que se encontra articulada com um conjunto de espacialidades cujas atribuições urbanísticas instituem-lhe simultaneamente um caráter alternativo e um caráter complementar às demais regiões244.

13/08/2006. Versão online. Disponível em

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200605.htm). 240 LE GOFF, Por amor às cidades, cit., p. 153.

241 LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 32.

242 VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, abril de 2011, p. 55. In: http://www.scielo.br/pdf/ea/v25n71/04.pdf. Acesso em 14 de abril de 2011.

243 FLORES; CAMPOS, Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas), Rev. Bras. Hist. [online], cit., p. 275.

64 As relações que os cidadãos travam integrando os diversos espaços da cidade modificaram a conformação do centro, e, em muitos aspectos, provocam uma tentativa de destruição do modelo antigo. No entanto, os centros resistem, não querem desaparecer sem combate. Le Goff245 mostra-se um pouco

pessimista com o papel dessa centralidade, acreditando que esta não mais se adapta às novas relações. ―Parece-me, entretanto, que a evolução age profundamente contra o centro urbano. (...) Então, o que ele se torna? Centro storico, dizem muito bem os italianos. E se ele ainda brilha, é a beleza da morte. Caminha-se em direção ao centro-museu‖246. Ou então ao ―ex-centro-cidade‖247.

Ainda assim, de um modo geral, ―nas ciências humanas e nas ciências sociais – e é particularmente verdadeiro quando se trata de uma cidade – o estudo das relações entre centro e periferia e de sua evolução histórica é extremamente esclarecedor‖248. Aqui, no entanto, não se procura fazer uma

análise sobre o processo de segregação entre centro e periferia, abordando a dimensão espacial como forma de dominação e exclusão social249.

A relação que se estabelecerá, neste ponto, é aquela entre o centro ―antigo‖ para a estrutura urbana, e os moldes da força conformadora desse

245 LE GOFF, Por amor às cidades, cit., p. 150. 246 LE GOFF, Por amor às cidades, cit., p. 150.

247 FLORES; CAMPOS, Carrosséis urbanos: da racionalidade moderna ao pluralismo temático (ou territorialidades contemporâneas), Rev. Bras. Hist. [online], cit., p. 275.

248 LE GOFF, Por amor às cidades, cit., p. 152-153.

249 VILLAÇA, São Paulo, Estudos Avançados, cit., p. 38. Sobre este aspecto, é interessante a abordagem do estudo de Gabriela Rodriguez Fernandez, que, analisando as obras Admirável

mundo novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, aponta que a cidade distópica é uma

contraposição dos herdeiros do romantismo, que passam a denunciar que este tipo de cidade, severamente ordenada, serve para exercer, em verdade, todos os tipos de controle social: o horizontal, o vertical e o funcional. Assim, as duas vertentes literárias, aparentemente opostas, de Huxley e Orwell convergiriam para a apreciação da segregação própria da sociedade que se constrói e se submete àquele espaço absolutamente organizado. ―A solidão em sociedade, como a descrita em 1984, e que não é diferente da solidão do protagonista de Admirável mundo novo, fica explicada: vive-se em um meio segregado, onde o conhecimento que se tem dos outros é o que corresponde à sombra de uma pessoa, não a uma pessoa real; e, por conseguinte, a dimensão da vida é incapaz de qualquer vivência‖ (FERNANDEZ, Gabriela Rodriguez. A cidade como foco da imaginação distópica: literatura, espaço e controle. In: CORRÊA, ROSENDHAL,

65 centro atualmente250: as relações de consumo. Isto porque, se no passado, os

centros apresentavam-se como elementos fundamentais das cidades, hoje tal afirmação não pode ser feita com tanta segurança251. A certeza refere-se apenas

à permanência de uma característica dessa região: ―o que o Centro tem de permanente é o fato de se constituir em um quadro de vida‖252, pelo menos

ainda.

Em Belo Horizonte, um estudo sobre a cultura do consumo possibilitou elucidar uma compreensão da experiência social no seu espaço principal: o grande Centro. ―Reunindo as ordens próxima e distante lefèbvreanas, o Centro se tornou um palco de fragmentos da cultura do consumo onde temporalidades e centralidades diversas ―convivem‖ nas suas espacializações‖253. Aponta o

estudo que há um descompasso entre os setores público e privado e as pessoas que passam ou frequentam esses diferentes espaços. ―A ausência de uma ideia de governança onde se verificasse a participação de representantes de segmentos sociais e associativos vinculados à gestão dos espaços aponta para um ―lugar sem dono‖, uma ―atopia‖‖254.

A partir do processo de criação de inúmeras centralidades como resultado de uma urbanização extensiva, resta aos antigos centros o registro da

250 Em seu estudo sobre São Paulo, imortalizado pelo conjunto de fotografias, Lévi-Strauss guia seu projeto a partir de uma visão contrastiva explicitada claramente na caracterização da área central como pólo de articulação da cidade. Difere-se da articulação proposta pelos fotógrafos que atuaram em São Paulo na virada do século. Estes estavam atentos ao processo de modernização intensa do espaço urbano, representado por novas ruas, fluxo dos meios de transporte, caminhos, projetos de embelezamento, presença de novos atores sociais. O centro de Lévi-Strauss é um espaço instável, em construção, dominado por um totem isolado que projeta a cidade por vir na utopia coletivista do arranha-céu, mas ainda permeado pela presença de manchas antimodernas. Ele, então, imprime em suas fotos o processo de urbanização em andamento, mas faz questão de revelar, em sentido especial, o contraste entre os mundos que se justapõem nesse contínuo desenvolvimento da cidade (FABRIS, Fragmentos

urbanos, cit., p. 90).

251 VILLAÇA, São Paulo, Estudos Avançados, cit., p. 52. 252 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 206. 253 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 205. 254 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 205.

66 experiência da cultura do consumo, e a eles cabe figurar o inescapável do passado e o irredutível do presente255.

Nesse escopo, as novas e antigas centralidades territorializam-se e reterritorializam-se num quadro de centro expandido. A experiência do consumo como estilo de viver apresenta-se numa condição resultante da urbanização extensiva que incorpora, inicialmente, as descentralizações e efetivas concentrações dos serviços em pequenos centros. Notadamente, a experiência dessa cultura no interior da cidadela encontra-se também setorizada e compartimentada. A distribuição e concentração do comércio varejo e dos serviços de consumo indicam, portanto, fragmentos da urbanização extensiva256.

As características da diferenciação e da distinção são perceptíveis através dos hábitos e gostos, os quais unificam e separam os grupos e seus subsegmentos257. No interior do crescimento urbano metropolitano relacionado

aos processos de desconcentração e descentralização, os modos de consumo têm alcançado destaque. ―Na implementação da dinâmica do consumo sobressaem-se a espacialização das atividades nas vias principais da região ou dos bairros e a proliferação dos shopping centers‖258. Estes novos espaços de

percurso são majoritariamente fechados, e apresentam poder comercial quase irresistível, buscando aproximar-se da vivência do antigo centro da cidade259.

Acabam por gerar diversas centralidades em uma nova rede urbana descontínua260. Unificam-se as extremidades (todos consomem algo), sem

alteração das diferenças sociais: esse algo é consumido no ambiente ―específico‖ para cada grupo, criando classes a partir do potencial de consumo261.

Por isso que o espaço público não pode ser ditado por esta cultura, porque nela não há a liberdade necessária para a realização do indivíduo, visto

255 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 206. 256 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 206. 257 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 207. 258 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 153.

259 GOTTDIENER apud LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 154. 260 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 206.

67 que condicionada a fatores excludentes (como a classe social, renda, etc.): ―A experiência da cultura do consumo edifica-se não apenas numa ‗questão de escolha‘ mas também na ‗ausência de um direito de escolha‘ ou, quem sabe, numa ‗resignação do direito de escolha‘‖262.

Ainda assim, outro fator que deve excluir o consumo e o comércio como regulador do espaço público é que sua motivação só reforça ainda mais a fragmentação/especialização dos grupos, segregando-os ainda mais, e dificultando a criação de sentimentos de comunidade e identidade, por se tratarem de centros unicamente de consumo, e não de vivência – e consequente convivência.

O centro só pode, pois, dispersar-se em centralidades parciais e móveis (policentralidade), cujas relações concretas determinam-se conjunturalmente. Sendo assim, corre-se o risco de defender as estruturas de decisão, os centros de poder, aqueles onde os elementos da riqueza e do poder se concentram maciçamente, até adquirir uma densidade colossal. Não existem lugares de lazer, de festa, de saber, de transmissão oral ou escrita, de invenção, de criação, sem centralidade263.

A crescente urbanização, e a ampliação espacial das cidades, determina um processo de descentralização, ainda que parcial264. Se é verdade que a

grande cidade consagra a desigualdade265, o que deve ser feito para reverter tal

262 LEMOS, Antigas e novas centralidades, cit., p. 208.

263 ―A grande cidade, monstruosa, tentacular, é sempre política. Ela constitui o meio mais favorável à constituição de um poder autoritário. Nesse meio reinam a organização e a superorganização.‖ LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 91.

264 ―Embora, nos últimos vinte anos, as taxas de crescimento demográfico tenham arrefecido e o vetor do incremento populacional tenha se deslocado das áreas centrais para as periferias das regiões metropolitanas, bem como para as cidades médias, a precariedade das condições de vida de grandes contingentes da população ainda constitui característica comum, e crescente, em todas as grandes concentrações urbanas no Brasil.‖ (BASSUL, José Roberto. Reforma urbana e Estatuto da Cidade. EURE (Santiago), Santiago, v. 28, n. 84, setembro de 2002. In http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612002008400008&lang=pt #2. Acesso em 03 de maio de 2011).

68 situação não é, exatamente, opor-se à centralidade, porque esta subsistirá, a menos que venha a sucumbir pela utilização das relações sociais em proveito individual266. O direito dos cidadãos - e dos grupos por eles constituídos - de

figurar sobre todas as redes e circuitos de comunicação, de informação, de trocas, depende dessa essência própria do espaço urbano267.

2.2.2. O ESTATUTO DA CIDADE E A PREOCUPAÇÃO COM A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO