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C omissões investigadoras: permutas entre a província e a Corte

OMO SE DEVE ESCREVER A HISTÓRIA DAS PROVÍNCIAS C

2.2 C omissões investigadoras: permutas entre a província e a Corte

Antes de o Ceará chegar ao Instituto, foi o Instituto quem chegou ao Ceará. Na sessão de 30 de maio de 1856, com críticas aos trabalhos de geógrafos, naturalistas e viajantes estrangeiros, foi aventada a conveniência de uma viagem imediata ao interior do país dirigida por brasileiros.337 O presidente do Instituto, Visconde de Sapucaí, questionou se não chegou o

335

Por exemplo, a ata de 18 de novembro de 1859 do Instituto foi publicada no exemplar desse periódico do Recife em 30 de novembro de 1859 (p. 2).

336Por exemplo, do cônego Fernandes Pinheiro, na seção de estudos históricos, o texto “Sobre a criação do

mundo” foi publicado no Diário de Pernambuco em 22 de dezembro de 1862.

337

No relatório anual em 1843, o cônego Januário da Cunha Barbosa, secretário do Instituto, fez um breve levantamento das Comissões Científicas estrangeiras no Brasil e suas relações com o IHGB. Foram citadas a francesa do Conde de Castelnau e do Visconde de Orsery, a norte-americana de Isaac Georg Strain, a siciliana de Pascuale Pacini. BARBOSA, J. da C. Relatório do secretário. Sessão em 10 de dezembro de 1843. RIHGB, t. 5, suplemento, p. 4-30, 1885 [1843]. Todos os chefes foram recebidos como sócios do Instituto. Destaco, além desses e do citado von Martius, Auguste Saint-Hilaire e Jean Ferdinad Denis, sócios desde 1839, e Jean Louis Rodolfe Agassiz, sócio desde 1864. As viagens científicas do IHGB numa perspectiva pós-colonial, examinando-as como parte de um processo mais amplo de mundialização da ciência e de construção de representações históricas e geográficas no Brasil imperial: FERREIRA, L. M. Ciência nômade: o IHGB e as viagens científicas no Brasil imperial. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 271-292, abr./jun. 2006.

momento de entramos “sem auxílio estranho, no exame e investigação deste solo virgem,

onde tudo é maravilhoso? De desmentirmos esses viajantes de má-fé ou levianos que nos tem ludibriado e caluniado? De mostramos, finalmente, ao mundo, que não nos faltam talentos e as habilitações necessárias para as pesquisas científicas?”338 Na interiorização do olhar brasileiro, foi proposto, então, que o Instituto se dirigisse ao governo a fim nomear uma

comissão de engenheiros e naturalistas para explorar “algumas das províncias menos conhecidas do Brasil”.339

Com o apoio pessoal do monarca e da estrutura do governo, os preparativos foram viabilizados. Pessoas e equipamentos, embalados pelo clima de otimismo, foram escolhidos e preparados para a grande missão de irradiar a civilização pelas pequenas pátrias. Consolidadas a Independência e a Monarquia, a Corte recebeu a missão de ser o foco de onde se espalharia a civilização para o conjunto do Brasil. Sob o reinado pessoal de D. Pedro II, “as pequenas pátrias provinciais devem apagar-se diante da grande, da qual o Rio de Janeiro representa o

centro”.340

As viagens científicas, como a de 1859, foram certamente um desses elementos irradiadores. A Corte do Rio de Janeiro se apresentava como o “polo civilizador da Nação” e

“motor do centralismo imperial”.341

Não só de brasileiros mas igualmente de estrangeiros, olhares, simpatias e solidariedade acompanharam o empreendimento de interiorização da civilização. O célebre von Martius foi um deles.342 A Imperial Comissão Científica e

Comissão Exploradora das províncias do Norte foi composta por cinco seções, cada uma

chefiada por um pesquisador: Botânica por Francisco Freire Alemão; Geológica e

338 Fala do Presidente. Sessão em 15 de dezembro de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 91, 1898 [1856]. No relatório final da Expedição redigido por Gonçalves Dias consta novamente esta crítica aos pesquisadores estrangeiros. DIAS, G. Parte Histórica. In: Trabalhos da Comissão Científica de Exploração. Rio de Janeiro: Tip. Universal Laemmert, 1862. p. VII-XCI transcrito em BRAGA, R. História da Comissão Científica de Exploração. 2. ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2004. p. 182-183. As transformações em que de exemplar o viajante estrangeiro se converte no exemplo de trapaceiro, espoliador, da figura pouco confiável são mencionadas em SÜSSEKIND, 1990, p. 50-55.

339 Proposta assinada por todos os sócios presentes à reunião. Sessão em 30 de maio de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 12, 1898 [1856]. Na sessão seguinte, o Imperador anunciou o aceite pelo governo da exploração do interior do Brasil por uma Comissão nacional. Sessão em 15 de junho de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 12-13, 1898 [1856].

340 ENDERS, A. A História do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2008. p. 159.

341 ALENCASTRO, L. F. Modelos da história e da historiografia imperial. In: _____. História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 10.

342Em carta de 6 de agosto de 1859 (Munique), dirigida a Manuel da Araújo Porto Alegre, Martius declarou: “É por isso objeto de minha mais viva simpatia a expedição científica, que o governo brasileiro nesse momento dirige para a exploração das províncias do Norte, e espero que no Ceará, tão pouco conhecida província, já se colheram faustos imensos. V. S. achará bem justificado o meu desejo de conhecer de vez em quando os resultados daquela expedição, e peço então que V. S. me honrasse de notícias a este respeito.” Sessão em 23 de agosto de 1861. RIHGB, t. 24, p. 738-740, 1861. A troca de correspondências entre von Martius e Freire Alemão: ALEMÃO [de Cisneiros], F. F. Os manuscritos do botânico Freire Alemão. ABN, v. 81, 1961. A demora e o descaso no atendimento das solicitações de Martius por Freire Alemão são citados por GAMA, J. S. da. Biografia e apreciação dos trabalhos do botânico brasileiro Francisco Freire Alemão. RIHGB, t. 38, p. 51- 126, 1875. p. 103. Essa resistência reafirmava o “caráter nacional” das pesquisas realizadas.

Minerarológica por Guilherme Schüch de Capanema; Zoológica por Manuel Ferreira de

Lagos; Astronômica e Geográfica por Giacomo Raja Gabaglia (“brasileiro” nascido na província Cisplatina); e a Etnográfica e Narrativa de Viagem por Antônio Gonçalves Dias. As instruções para cada uma delas foram redigidas pelos respectivos chefes, com exceção de Gonçalves Dias e Raja Gabaglia que estavam na Europa.343 A chefia geral da Comissão ficou ao encargo de Freire Alemão. Institucionalmente, o Museu Nacional foi outro partícipe da empreitada.

Seja pela demora na vinda de livros e equipamentos, seja veladamente por mexericos ministeriais, somente para 1º de janeiro de 1859 foi marcada a partida da Comissão Científica. Entre as províncias menos conhecidas do Brasil qual seria escolhida e por quais motivos? Pelas supostas riquezas minerais, o Ceará foi a província selecionada. Interessante notar que,

não obstante os motivos aventados na proposta inicial, em 1857, de formação de “uma

coleção de produtos dos reinos orgânico e inorgânico, e de tudo quanto possa servir de prova do estado de civilização, indústria, usos e costumes dos nossos indígenas”, o mote principal estava nas pedras preciosas. Voltava-se à febre do Eldorado dos séculos anteriores que motivou os primeiros exploradores em 1603, porém, agora, corria-se atrás do ferro, carvão, mármore, chumbo, calcário.344 Os “científicos”, com espírito de bandeirantes, chegaram à capital cearense em 4 de fevereiro de 1859.345 Durante dois anos e cinco meses, os estudiosos circularam pela província, incursionando rapidamente pelas de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí. Gonçalves Dias foi exceção: permaneceu seis meses no Ceará e por

“falta de índios” viajou para o Amazonas. Com o andar das seções, que trabalhavam

separadamente, houve coleta de materiais, anotações e contatos com estudiosos locais. Contudo, não deixaram de angariar desconfiança dos sertanejos, rusgas com as autoridades locais, desavenças entre os integrantes das equipes, intrigas com os sócios do Instituto que permaneceram na Corte, ciúmes entre partidários locais (liberais e conservadores), descrença e anedotas nos periódicos do Sul pelos desafetos. Parte do material coletado pela Comissão

343 Sessão em 14 de novembro de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 43-74, 1898 [1856]. As instruções da seção Astronômica e Geográfica foram redigidas por Cândido Batista de Oliveira e as da Etnográfica e Narrativa de Viagem por Manuel de Araújo Porto Alegre.

344 Causa apontada por Gonçalves Dias no relatório final citado por BRAGA, 2004, p. 176-177. O livro que ele apontou como grande influenciador foi Lamentação brasílica, em 4 volumes, do padre Francisco Teles de Menezes. Lendo a Revista do Instituto, encontrei referências ao livro nas publicações ofertadas ao IHGB. Na sessão de 30 de maio de 1856 ele foi ofertado por Maximiano Marques de Carvalho. Na autoria somente constou

“composto por um sacerdote, natural do Ceará, em 1807”.

345 Nesse ano e no seguinte, o Imperador esteve nas vizinhas províncias de Pernambuco, Paraíba, Sergipe e Bahia. SCHWARCZ, L. M. As barbas do Imperador, D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 357. Não encontrei referências a possíveis relações entre a viagem do monarca às províncias do Norte e a Comissão Exploratória de 1859.

foi exposta na exposição montada no Museu Nacional, em setembro de 1861, e na primeira Exposição Nacional em dezembro desse ano, ambas na cidade do Rio de Janeiro. Do Ceará para a Corte, a Comissão trouxe a província pouco conhecida, exótica, para mais perto dos olhos dos brasileiros do Sul.346 E da Corte, o Ceará – a “Terra da Luz” – por meio da Exposição Universal de Londres em 1862, foi catapultado ao centro da Civilização.347 Mas e o passado local, ficaria restrito à coleta etnográfica? Afora plantas, animais, rochas, céu, terra e selvagens houve interesse pelos estudos históricos da província?

As chacotas propugnadas pelos desafetos da Comissão apagaram os estudos posteriores sobre os êxitos alcançados pelas equipes viajantes. Os epítetos dados à Comissão – borboleta, defloradora, dos camelos – surtiram efeito na bibliografia. O trabalho de Renato Braga, de 1962, História da Comissão Científica de Exploração, advertiu para o “silêncio dos

estudiosos cearenses”. Silêncio extensível aos pesquisadores nos demais estados do país.

Posteriormente, com a expansão dos cursos de pós-graduação, a Comissão passou a ser objeto de estudos por geólogos, etnólogos/antropólogos e historiadores interessados nas ciências naturais e nos indígenas.348 Com as pesquisas levadas adiante nessas áreas do conhecimento, conheci um pouco mais sobre a história da Comissão; mas e a história na Comissão? O que

346

Após a Comissão Imperial de 1859, o Ceará voltou a ser palco da observação de novos viajantes, porém estrangeiros. Só em 1865 passariam por lá a expedição inglesa de J. Whitfield e a mais famosa, a norte- americana (expedição Thayer), comandada pelo suíço Jean Louis Rodolfe Agassiz. GARCIA, R. História das explorações científicas. In: IHGB. Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil, comemorativo do primeiro centenário da Independência. 2. ed. Nendeln: Kraus Reprint, 1972. v. 1, parte 2, p. 856-910.

347 Conforme Kury, em parte graças à Comissão, o Ceará foi a província mais bem representada na Exposição Nacional de 1861. Ela foi preparatória da Exposição Universal de Londres, em 1862, a primeira em que o Brasil

participou oficialmente. Segundo a autora, Londres foi “invadida” por produtos cearenses. KURY, L. Explorar o

Brasil: o Império, as ciências e a nação. In: _____. (Org.). Comissão Científica do Império (1859-1861). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 2009b. p. 32. A “dimensão da universalidade” e os “monumentos à

nacionalidade” nesta festa de modernidade e progresso: PESAVENTO, S. J. Do Brasil para o Mundo: o

Universo está em Londres. In: _____. Exposições universais: espetáculos da modernidade de século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997b. p. 98-115.

348 Além do referido trabalho de Renato Braga, que consultei em sua 2ª edição, cito: LOPES, M. M. Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube... lá no Ceará. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 50-64, mar./ jun. 1996; KURY, L. A comissão científica de exploração (1859-1861): a ciência imperial e a musa cabocla. In: HEIZER, A.; VIDEIRA, A. A. P. (Org.). Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001. p. 29-53; ALEGRE, M. S. P. O Brasil descobre os sertões, a expedição científica de 1859 ao Ceará. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, p. 200-216, 1989; Id. Comissão das Borboletas: a ciência do Império entre o Ceará e a Corte. Fortaleza: Museu do Ceará, 2003. Recentemente foi publicado o belíssimo livro organizado por Lorelai Kury com textos seus e de Maria Sylvia Porto Alegre, Maria Margaret Lopes, Silvia Figueirôa, Kaori Kodama e Magali Romero Sá. KURY, L. (Org.). Comissão Científica do Império (1859-1861). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 2009a.Não como objeto principal de pesquisa, mas por fazer referências a ela também cito: LEITÃO, C. de M. História das expedições científicas no Brasil. São Paulo: Nacional, 1941. p. 240-241, 312; SHADEN, E.; PEREIRA, J. B. B. Exploração antropológica. In: HOLANDA, S. B. de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Monárquico, reações e transações. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. t. 2, v. 3, p. 434; DOMINGUES, H. M. B. As ciências naturais e a construção da Nação brasileira. Revista de História, São Paulo, n. 135, p. 41- 60, 1996; Id. Viagens científicas e colonização no Brasil no Século XIX. In: HEIZER, A.; VIDEIRA, A. A. P. (Org.). Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001. p. 55-75; KODAMA, 2009, p. 283-290.

explica os poucos estudos? De forma geral, nas pesquisas sobre os viajantes no século XIX, os estrangeiros são privilegiados em detrimento dos nacionais.

Em razão disso, minha intenção neste momento é analisar o quanto as pesquisas da Comissão Científica de 1859 podem estar relacionadas com a publicação da História da

província do Ceará em 1867. Não tendo feito referências a ela, por meio do que e de quem os

estudos de Tristão de Alencar Araripe se enredariam com a expedição? Para respondê-la pesquisei a Revista do IHGB na busca de vestígios que contribuíssem para a escrita da história do Brasil, a partir do Ceará. Nas instruções redigidas por Manuel de Araújo Porto Alegre para a seção etnográfica e narrativa de viagem, a preocupação primordial esteve na

busca do “conhecimento perfeito dos autóctones”. Nos dezesseis itens do dispositivo

orientador, dois me auxiliam a averiguar a preocupação historiográfica da Comissão. No de número XV, lê-se que em todas as cidades, vilas ou povoações por onde a Comissão passasse, cópias autênticas de documentos interessantes à história e geografia do Brasil deveriam ser obtidas; extratos de notícias compiladas nas secretarias, arquivos e cartórios, tanto civis como eclesiásticos; e cópias de manuscritos importantes pertencentes a particulares, se não conseguissem levar “os próprios originais”.349 Desse modo, estava lá, como uma das incumbências da seção chefiada por Gonçalves Dias, a coleta de documentos na província do Ceará que contribuíssem para a história do Brasil.350 Cabe averiguar se foi cumprida. À busca pelo conhecimento das cousas passadas se somava a das cousas presentes. Na última recomendação constava “o conhecimento do comércio interno e externo da província, de todos os dados estatísticos que puder, da fundação, prosperidade ou decadência das

povoações”.351

Neste ambicioso projeto etnográfico, estatístico, geográfico e histórico, tais documentos chegariam à Corte? Sim, a partir do primeiro semestre de 1860, documentos começaram a ser encaminhados por Gonçalves Dias ao Instituto.352

Aproveito para mencionar o papel desempenhado por Gonçalves Dias como pesquisador nos arquivos no Norte. Antes de ser escolhido para Imperial Comissão Científica de 1859, o poeta indianista foi incumbido pelo Imperador, em 1851, para duas Comissões nas

349

ALEGRE, M. de A. P. Seção etnográfica e narrativa de viagem. Sessão em 14 de novembro de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 73, 1898 [1856].

350 Sobre as entrevistas dos doutores da Corte e o recolhimento de depoimentos: KURY, 2009a, p. 202; BRAGA, 2004, p. 210.

351

ALEGRE, M. de A. P. Seção etnográfica e narrativa de viagem. Sessão em 14 de novembro de 1856. RIHGB, t. 19, suplemento, p. 74, 1898 [1856].

352 Na sessão em 11 de maio de 1860, constou nas ofertas por Gonçalves Dias o autógrafo (manuscrito original) da circular de Joaquim Pinto Madeira oferecido por João Brígido dos Santos. Dias alegou, também, que o sócio Manuel Ferreira Lagos receberia de Brígido o processo e julgamento de Pinto Madeira. RIHGB, t. 23, parte 2, p. 608, 1860. Esse e outros documentos sobre o Ceará foram remetidos por Gonçalves Dias e constaram em: Manuscritos oferecidos ao Instituto durante o ano de 1862. RIHGB, t. 25, p. 742-744, 1862.

províncias do Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Alagoas.353 Ele deveria examinar os estabelecimentos destinados ao ensino e coligir “todos os

documentos concernentes à história do país” existentes nas bibliotecas, arquivos dos

mosteiros e repartições públicas. Sobre os lugares de onde seriam extraídos os documentos relativos às histórias locais e considerando a sua experiência de pesquisador, Dias disse que nos tribunais judiciários e nos cartórios espalhados pelas províncias se encontrava o que havia de mais importante na história de um povo ou de um determinado círculo seguidor da civilização europeia. Nos processos, principalmente nos políticos, havia fatos e seus efeitos, homens e suas paixões. De acordo com Gonçalves Dias, não havia nesses papéis incidente que se desprezasse nem circunstância que se devesse omitir. Além dos processos judiciários, o pesquisador maranhense indicou o uso de cartas régias, de larga utilização por Alencar

Araripe, como “preciosa indicação” para quem pretendesse escrever a história das províncias

na segunda metade do século XVII e XVIII. Entretanto, à pretensa riqueza documental se contrapunha as péssimas condições de arquivamento. Ao estrago do tempo, Gonçalves Dias acresceu a negligência dos homens. O ambiente tormentoso do passado na província do Maranhão não poupou as fontes para as narrativas futuras: “experimentando repetidas comoções, já da invasão estrangeira, já do gênio turbulento dos seus habitantes, esses

documentos desapareceram em todo ou em parte.”354

Por exemplo, sobre a revolta no Maranhão, no recente 1840, Dias constatou que nenhuma repartição escapara da fúria dos rebeldes. E nas últimas campanhas eleitorais na província do Rio Grande do Norte, a Câmara foi suspensa e o escrivão, por motivos políticos, escondeu não só os livros das atas, pelo valor eleitoral, como também os antigos registros.355

Às intempéries do espírito humano se somavam as da natureza. A chuva e a umidade também não pouparam os registros passados. Os que sobreviveram à água e ao fogo jaziam desorganizados, carentes de simples ordenamento cronológico. Há mais um elemento nessa visada do pesquisador sobre os arquivos no Norte que julgo fundamental para entendermos a

353 Interessante apontar a relação entre as viagens de estudos etnográficos e a criação poética do índio brasileiro por Gonçalves Dias. Das publicações de cunho etnográfico do autor, destaco: DIAS, A. G. Brasil e Oceania. RIHGB, t. 30, parte 2, p. 5-192, 257-396, 1867. Análise minuciosa desse trabalho, incluindo a visão do

“historiador poeta” foi realizada por: KODAMA, 2009. Especificamente no capítulo 2.6 (p. 158-176). Outro

texto de Gonçalves Dias publicado na Revista do Instituto situa-se entre a História e a Etnografia: Amazonas. RIHGB, t. 18, p. 5-66, 1896 [1855]. Como linguista cito o Dicionário da língua Tupi chamada língua geral dos indígenas do Brasil. Lipsia: F. A. Brockhaus, 1858. O único trabalho que encontrei sobre a experiência arquivística do poeta nas províncias do Norte no início da década de 1850 foi o capítulo “A evolução da pesquisa

pública histórica brasileira” em: RODRIGUES, 1982, p. 51-57.

354 DIAS, A. G. Exames nos arquivos dos mosteiros e das repartições públicas para coleção de documentos históricos relativos ao Maranhão. RIHGB, t. 16, p. 370-384, 1853.

355 Id. Catálogo dos capitães mores e governadores da capitania do Rio Grande do Norte. RIHGB, t. 17, n. p. 22- 55, 1854. p. 26.

difícil situação dos que se dedicaram a historiar o passado das províncias. No afã de coligir e conservar os documentos concernentes à história pátria, na primeira metade do século XIX, concomitantemente, houve a centralização arquivística nacional em detrimento da local. Reportando-se ao Ministro do Império, Gonçalves Dias questionou a necessidade de existir no

Arquivo da Corte “todos os esclarecimentos precisos à nossa história”. Não era justo que as

municipalidades e arquivos provinciais fossem “despojados de suas preciosidades”. O pesquisador ressaltou que deveria ser encontrada uma maneira pela qual os arquivos provinciais não sofressem com o engrandecimento do central.356 Reverberou a dilapidação e o descaminho citados por Cunha Matos nas reuniões do IHGB.

Ações menos nocivas, segundo Dias, deveriam envolver a confecção de cópias dos documentos em vez do envio dos originais. Mas nem todos os pesquisadores teriam paciência de transcrevê-los ou meios para contratar pessoas, copistas, escribas. A dilapidação dos arquivos provinciais dificultava a consulta e a escrita das narrativas pelos letrados na própria terra. A história das províncias só poderia ser feita na Corte? A pressa de Araripe por escrever e publicar a sua narrativa esteve relacionada ao esvaziamento dos mirrados arquivos locais? Havia o temor pelos provincianos de verem a escrita da história da sua terra levada adiante pelos doutos da Corte? A correspondência entre Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa sugeriu a opção do poeta pela maneira mais fácil de coligir os documentos locais para a história do país. Lisboa, escrevendo a Dias, disse: “V. Sa. deixou no arquivo da Câmara