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I. O futuro desinformado: aprendendo a lutar guerras inexistentes

I.2. c Passado e futuro: explicação e planejamento

Com o fim da guerra, uma lição parecia óbvia:um conflito como aquele deveria ser evitado, tanto concernente às suas causas, quanto aos seus efeitos. A questão era como alcançar isso frente ao cenário duvidoso e incerto que despontava. Um mundo com velhos poderes destruídos, com duas ideologias antagônicas e com armas e técnicas de destruição em massa.

Pelo lado dos Estados Unidos, uma das maneiras pretendidas para se atingir e manter uma paz duradoura foi justamente pensar sobre a guerra. Não somente pensar sobre a guerra, mas tentar racionalizá-la e trazê-la novamente para o domínio humano, torná-la, de novo, frente ao novo contexto, uma arte. Só pelo controle da guerra, de suas causas e de seus efeitos, que ela podia ser evitada. Seria a própria ideia e concepção dela os instrumentos necessários para evitá-la. A racionalização da guerra seria atingida, no mundo pós-guerras, a partir de dois sentidos, que podemos dissociar com uma finalidade didática, ainda que não totalmente precisa: um passado e um presente. Em outras palavras – ainda didáticas – uma preocupação com o que já se conhecia e uma preocupação com algo novo que se apresentava. Havia, portanto, uma preocupação em evitar que um conflito mundial, tal quais os anteriores, acontecesse novamente. Reconhecia-se, por outro lado, que os protagonistas e as condições eram diferentes. Além disso, conhecia-se a capacidade das mudanças técnicas e tecnológicas que poderiam mudar e agravar toda a situação de receio e de ansiedade da destruição que poderia ocorrer. Destarte, o futuro se reafirmava como elemento de incerteza.

Kahn usa a I e a II Guerras como parte da constituição de suas opiniões embasadas acerca do futuro da guerra. Com isso, primeiramente, ele pretendia suprir a ausência de experiência que ele próprio apontava acerca das guerras termonucleares, não de forma objetiva, mas de maneira parafrásica, como fora aprendido nos métodos probabilísticos e aplicado ao longo do trabalho com SA. Portanto, a relação estabelecida com o método de correlação entre problemas lá do Monte Carlo é transposta na relação passado-futuro da guerra. Como vimos, um problema com resposta conhecida (aqui, no caso, o passado, as guerras do século XX) era usado para estimar respostas para um problema com resposta

desconhecida (o futuro, a incerteza sobre a guerra termonuclear). Essa utilização da comparação por paráfrase de “problemas” temporais ainda é tênue e é uma das “técnicas” que aparece com mais ênfase no OTW do que nos relatórios de 1957. Todavia, em um exercício de “engenharia reversa” nos escritos de Kahn, é possível perceber a transposição de ferramentas, conceitos e ideias da OR e da SA nessa construção.

Para Kahn, as duas guerras mundiais eram lições do passado não por poderem se repetir – ele não acreditava que Kruschev seria um novo Hitler, por exemplo – mas por acreditar que as questões com as quais as potências europeias lidaram poderiam surgir novamente, ainda que modificadas. Elas teriam chances maiores de ressurgir se não houvesse um preparativo para que não eclodissem.136

Conforme Kahn, quanto mais os historiadores estudavam sobre a I Guerra, mais ficava claro que a guerra não era algo que os governos responsáveis queriam. Ela foi uma guerra que ocorreu por circunstâncias triviais e que, uma vez em movimento, não podia ser parada. Essa, portanto, para Kahn, foi uma guerra por acidente ou erro de cálculo e que possuía muitos pontos análogos com as crises que poderiam surgir entre 1960 e 1975. Alguns deles eram: a necessidade de uma vitória ou impasse rápidos, para prevenir uma situação que representasse perda para os envolvidos; a rigidez dos planos de guerra; a postura blasé dos governos ao testemunhar tantos alarmes e crises falsas; a ignorância, por parte dos governos, dos detalhes técnicos da guerra; e a oportunidade que as pequenas nações e aliados tinham de manipular as grandes potências. Kahn reconhecia que havia diferenças, sendo as principais delas o equilíbrio do terror pelo fator termonuclear, o medo da instabilidade futura decorrente de uma corrida armamentistas não bem controlada e possibilidade de ataque sem nenhum sinal. Ou seja, todos os pontos relacionados ao aumento do risco decorrente da tecnologia.137

Ao estabelecer essa relação de não repetição, mas de paráfrase e comparação entre passado e futuro, é possível pensar a proposta de Kahn nas bases oferecidas por Carl G. Hempel para explicação e previsão em história.

Em seu texto, A função das leis gerais, de 1942, Hempel argumenta, entre outras coisas, como seria possível uma previsão científica em história. O filósofo alemão inicia contrariando a ideia corrente de que as leis gerais não são importantes à história. O autor define lei geral como: “uma afirmação de forma condicional e universal capaz de ser confirmada ou infirmada por meio de adequadas descobertas empíricas”138. Porém, afasta-se

136 KAHN, H., 1969, On thermonuclear war, p. 416.

137 KAHN, H., 1969, On thermonuclear war, p. 368-370, 375.

da ideia de lei, por ela guardar uma aparência de que a afirmação é bem confirmada. Frente a isso, prefere o conceito de hipótese universal, a qual se baseia na seguinte regularidade: “em todos os casos em que um evento do tipo C ocorra em determinado lugar e tempo, um outro evento do tipo E ocorrerá num lugar e num tempo de modo típico relacionados com o lugar e o tempo da ocorrência do primeiro evento”139.

A partir do conhecimento das condições de manifestação de um evento é possível, então, realizar, dentro da ciência empírica, a previsão científica, que consiste “em deduzir uma afirmação acerca de um certo evento futuro de afirmações que descrevam certas condições já conhecidas (…)”140. Dessa forma, a previsão científica segue a mesma estrutura que a explicação científica, baseando-se, portanto, em hipóteses universais. Porém, enquanto na explicação conhece-se o evento final e buscam-se suas causas, na previsão, conhecem-se as causas e busca-se o evento. Todavia, para Hempel, na história – assim como nas ciências naturais – a explicação de qualquer evento pela sua individualidade única não tem como ocorrer, pois descrevê-lo assim exigiria o relato de todas as características manifestadas pelos aspectos que cercam o objeto em análise. Destarte, não há como dar conta de todos os “Cs” da hipótese universal, ou seja, de todas as causas que condicionaram o evento.141

Esse problema da explicação, aplicado também à história, condiz com um problema da previsão, a saber, a questão da impossibilidade de prever o que adviria. Hempel argumenta que há uma dificuldade à explicação histórica recorrer a leis gerais já que não consegue reunir todas as causas necessárias para a explicação do fenômeno. Assim, ao invés de leis gerais, a história poderia recorrer a hipóteses probabilísticas. Se pensarmos na questão da previsão aliada à possibilidade de hipóteses probabilísticas, temos uma previsão probabilística e científica, que não fornece, de fato, um evento final, mas probabilidades de eventos. Isso se assemelha, em certa forma, ao que Kahn propõe ao trabalhar o futuro da guerra e da defesa dos EUA desde o Monte Carlo, passando pelos jogos, até a análise de sistemas: a cogitação de diversas possibilidades.142

Hempel entende, relacionada à explicação, a interpretação dos fenômenos históricos, os quais, na forma científica, estão inseridos em uma explicação ou esboço de explicação143. Sendo assim, a descrição de algum evento não é a descrição de tudo que ocorreu até ele, mas a descrição dos eventos mais relevantes, que não resultam, conforme o filósofo alemão, de

Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 422.

139 HEMPEL, C.G., 1995, p. 421-422. 140 Ibid., p. 425.

141 Ibid., p. 423-428. 142 Ibid., p. 428-429. 143 Ibid., p. 433.

juízo de valor, mas sim de uma análise causal baseada em hipóteses universais. Esse conjunto de esboço, fenômenos históricos e descrição baseada nas hipóteses universais nos permitiria pensar, então, a continuidade histórica.144

A exposição de Kahn sobre a I e II Guerras seria o esboço que permite a compreensão dos fenômenos históricos sobre a natureza da Guerra no século XX. Kahn realiza isso e, então, constrói sua história – como participante e narrador – do rompimento com a situação anterior da guerra. O passo que Kahn não dá no pretendido livro que reuniria os relatórios de 1957 é como usar esse conhecimento para, a partir de algo próximo das hipóteses probabilísticas propostas por Hempel, pensar o desenvolvimento futuro. Kahn não pensa, historicamente, o papel específico dos EUA se o conflito termonuclear eclodisse.

Kahn só abordou tais questões no que foi seu principal trabalho com a arte de SA, o OTW. No livro, Kahn fornece os mecanismos de defesa que, para ele, precisavam ser pensados e constituídos para evitar o ataque inimigo. Além disso, desenvolve o planejamento da defesa que tentava evitar os erros cometidos que geraram e movimentaram a I e II Guerras. Com isso, constrói o planejamento dos EUA com a base no passado assustador da II Guerra que ainda assombrava, mas ensinava. O livro tem também uma base sobre o presente: a necessidade de lidar com um novo mundo, tanto político, quanto tecnológico. Tudo isso gerava, em contraparte, um pensamento sobre o futuro, ainda germinativo, mas que marcaria e se expandiria nos trabalhos de Kahn. Foi também esse pensamento e o conjunto de conceitos e ideias que o acompanharam que permitiram que uma visão mais ampla de futuro fosse pensada, incluindo diversos aspectos da política, da economia e das relações internacionais dos EUA, inclusive as propostas pensadas por Kahn em escritos posteriores, dando uma nova dimensão ao uso da história para pensar o futuro e trazendo novos elementos para essa tarefa, que encontrou sua base em uma análise de sistemas que foi ampliada para além do enfoque e

objetivo militares.