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O Cação Cego

63 O Cação Cego

Mas Balthazaar levou-os até o tal homem, um jovem alto de ombros largos, com longos cabelos negros em trança e uma cicatriz grossa que dividia-lhe o rosto da testa até o queixo. Dizia chamar-se Sig, e tinha a alcunha de “Olho Negro” por causa do globo ocular direito, que era preto como piche.

O barco de Sig Olho Negro era o “Cação Cego IV”, uma embarcação de médio porte que podia navegar por mares e rios profundos.

— O que houve com os outros três? — perguntou Ashlen.

— Serpente marinha, maremoto, motim — foi a resposta do jovem capitão, entre uma e outra cuspida negra de fumo de mascar.

— Sua tripulação se amotinou?

— Oh, não — sorriu Sig, limpando com um dedo o pretume dos dentes. — Quem se amotinou fui eu. Infelizmente o barco não resistiu — limpou o dedo nas calças enquanto sorria, cheio de dentes grandes. — mas ainda guardo os olhos do antigo capitão — e apontou para um frasco onde, com efeito, boiavam dois globos oculares díspares.

A tripulação do “Cação Cego IV” era de homens robustos e horrendos. Todos tinham idade indistinguível, já que anos de vida rude no mar, lutas e embriaguez haviam retirado todo o viço dos jovens, e endurecido os velhos. Na massa de desdentados com barba por fazer, destacavam-se apenas o capitão Sig, que era um homem belo apesar da cicatriz, e seu imediato, que era assim chamado por falta de outro termo, já que era uma mulher. Chamava-se Izzy. Era uma jovem ruiva de beleza estonteante. Trajava roupas de homem, embora fossem limpas e caras — na verdade, cheiravam de longe a butim de navios ricos. Izzy não era collleniana — tinha dois olhos muito verdes, mas idênticos. Algumas sardas no rosto e acima dos seios lhe davam um jeito de criança, mas o corpo, acentuado pelas roupas práticas e muitas vezes coladas com umidade, era voluptuoso. Notava-se, contudo, que, afora o capitão, ninguém no navio ousava nada além de olhares de vontade frustrada. Sig Olho Negro era pródigo em contar histórias e, dentro em pouco, já havia explicado que Izzy era uma nativa de Fortuna que entrara como clandestina, e fora feita sua amante.

— Ensinei a ela tudo o que sabe — riu o jovem capitão, dando um tapa do traseiro da moça. Com um olhar escarninho, ela arremessou uma adaga que passou a centímetros de sua orelha. Olho Negro deu uma gargalhada. — Inclusive isto.

Izzy, segundo a história de Sig Olho Negro, havia sido criada num convento, e um dia decidira fugir de um casamento arranjado. Acabou encontrando o antigo imediato do “Cação Cego”, um velho que a escondeu no navio até ser descoberta pelo capitão. Izzy era de uma inocência impressionante quando chegara, mas adotou os modos dos homens do mar, e conquistou o respeito da tripulação antes mesmo de poder se defender. Hoje em

dia, ele falava, ela podia lavar o convés com qualquer um daqueles marujos. Quando o antigo imediato decidiu firmar o pé em terra, Izzy foi a melhor candidata para assumir o posto.

— E o velho tolo morreu de febre, poucos anos depois, vejam só — outra gargalhada. Apesar de repulsivo, Sig Olho Negro não deixava de ser fascinante. Nichaela olhava seu rosto e via, escrito com clareza, um amor forte tanto por Izzy quanto pelo falecido imediato. Confirmando a suposição da meio-elfa, o capitão afogou a lembrança com um gole farto de aguardente.

— Uma história linda — interrompeu Ellisa Th orn. — Mas queremos apenas que nos leve daqui.

Eles estavam na cabine pessoal do capitão, dentro do “Cação Cego”, que estava ancorado há três semanas no porto apertado de Var Raan. Artorius, Masato e Rufus haviam preferido ficar de fora, no convés, observando a atividade do porto. O minotauro e o samurai haviam começado uma improvável conversa, descobrindo pontos em comum em seus modos rígidos de pensar, enquanto que Rufus se entretinha em rememorar os encantos da magia e de Ellisa Thorn.

Balthazaar estava junto ao grupo na cabine, e claramente já era um conhecido antigo do capitão Olho Negro. O velho intercedia em favor do grupo, regateando um preço mais ameno até ser calado rispidamente pelo homem mais jovem, apenas para recomeçar a tagarelice assim que a oportunidade surgia. As negociações demoraram um longo tempo, mais por causa da generosidade com que o pirata falava do que por dificuldade ou tensão reais. Enfim, foi acertado um preço (que cortaria uma fatia considerável do ouro que fora pago por Irynna), e eles partiriam na manhã seguinte. Durante todo o tempo, Izzy se manteve perto do capitão como um cão de guarda, exibindo o corpo e o sabre que carregava na cintura. Deixava a cabine apenas por breves momentos para berrar ordens aos marujos.

Por insistência de Ellisa e Gregor, o acordo foi ofi cializado com palavras e nomes em um pergaminho. A igreja de Tanna-Toh se esforçava para espalhar o conhecimento da escrita por Arton, e assim não era difícil encontrar quem soubesse ler e escrever, principalmente entre os que viajavam muito. O trajeto, as condições e a quantidade de ouro foram detalhados em tinta, e por fi m Vallen e Sig releram o documento e aprovaram-no, escrevendo seus nomes. Ashlen notou que Baltahzaar, ao examinar o pedaço de pergaminho, aproximou muito o rosto da folha, espremendo os olhos díspares por um certo tempo, até que pareceu conseguir fazer sentido das linhas.

O dia transcorreu sem mais problemas na vila triste de Var Raan. Balthazaar indicou uma estalagem mais limpa onde poderiam passar a noite (cuja dona, uma velha amedrontada, parecia ansiosa por ter visitantes armados que pudessem defendê-la dos vizinhos). Nichaela abençoou-os antes de dormir, Rufus estudou com calma e Artorius se acomodou como

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