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O Cação Cego

65 O Cação Cego

pôde na cama muito menor do que ele. Vallen e Ellisa aconchegaram-se nos braços um do outro, e o dia acabou.

“Cação Cego” era um nome agourento para um navio colleniano. Para um habitante de Collen, ser privado da visão era algo pior que a morte, e a sugestão desse destino, pintada em letras orgulhosas no casco da embarcação, fazia muitos marujos experientes rezarem para o Grande Oceano, visando espantar o mal. A tripulação do barco, contudo, desdenhava das superstições, dizendo que o que afundava os navios não eram os nomes, mas os homens frouxos. A própria aparência de Sig Olho Negro, ele mesmo contara sem ser perguntado, fora considerada um mau agouro. Sua mãe pensara que o olho de piche era cego, e tentara afogar o fi lho ao nascer. Foi um irmão que o salvou de nunca viver, conseguindo adiar a morte do bebê até provar que este enxergava bem dos dois olhos.

— E, no fi nal, quem se afogou foi ele — riu o capitão, com mais um gole de aguardente. Toda a reverência com os olhos, o verdadeiro culto à visão que havia em Collen, era visto com um pouco de desprezo pelo pirata. Ele já estivera em muitos lugares onde um olho não era nada mais que um instrumento do corpo, assim como um pé ou mão. Na verdade, ele dizia, para um fazendeiro perder um daqueles seria muito pior do que perder um olho. Todos os sinais e presságios que os collenianos viam em olhos cegos, olhos furados, olhos imperfeitos, eram bobagens para Sig. Dizia que não havia sorte.

— Afi nal, ela mesma é de Fortuna, o Reino da Boa Sorte — dizia, com um aceno de cabeça para Izzy. — E veja como a sorte lhe tratou! — emendava mais um tabefe maroto ou um beliscão na garota, e cobria o rosto do revide.

O caminho pela água era comprido. Saindo de Var Raan, eles rumariam para oeste, evitando a sinistra Ilha das Cobras, e passando entre a grande ilha que era Collen e a minúscula ilha de Lardder. Em seguida, costeando entre Collen e Tollon, seguiriam pelo norte até Kriegerr, onde os aventureiros iriam desembarcar e o Cação Cego continuaria. Balthazaar não os acompanhou, e na verdade, após recolher sua parcela do negócio que ajudara a fechar, o velho não foi mais visto por nenhum dos aventureiros. Era uma viagem pelo mar, e portanto o barco sacolejava e os estômagos se revoltavam, mas foram alguns dias em que um mal estar era o pior dos problemas do grupo. Por isso, eles agradeciam aos deuses.

Na terceira noite, Nichaela foi acordada por um som estranho, e seguiu-o até o quarto improvisado que Ashlen dividia com Gregor. O sono do paladino de Th yatis era pesado e ele não acordara, mas a meio-elfa foi capaz de distinguir o barulho por trás do chiado constante das ondas e da atividade perpétua da tripulação do navio. Eram soluços. Encontrou Ashlen retorcendo-se de pranto em sua cama.

Nichaela sentou-se na beira do leito forrado com palha. Ashlen, se notou sua presença, não fez nenhuma menção disso. Apenas continuou com o rosto afundado no travesseiro, sufocando as lágrimas gordas e se afogando em desespero e muco.

— Ashlen — a voz de Nichaela foi uma carícia, enquanto passava a mão pelos longos cabelos revoltos e castanhos do rapaz.

Ashlen Ironsmith demorou algum tempo até conseguir controlar os soluços. Lentamente, virou o rosto vermelho de olhos inchados para a clériga. Ambos eram bastante jovens e, embora ele fosse apenas pouco mais novo que ela, naquele momento parecia uma criança.

— Ela morreu — ele disse com um fi o de voz.

Nichaela abriu os braços e aninhou a cabeça do companheiro no colo. Não havia o que dizer, e ela sabia: Andilla Dente-de-Ferro estava morta.

— Morreu — repetiu Ashlen. — E foi culpa minha.

Nichaela conhecia aquilo: era uma das leis do universo em que as clérigas de Lena mais acreditavam. A vida era oportunidade de paz; a morte vinha com ódio e culpa e dor, e atormentava os vivos. Alguns viam a morte como um alívio, um descanso eterno ou a chance de estar para sempre na companhia dos deuses e de entes queridos. Mas as devotas de Lena viam-na como uma praga que afl igia um mundo repleto de vida. Para elas, aquilo não era um ciclo natural, da mesma forma que a doença ou a guerra também não eram. Nichaela sabia que deveria aplacar aquela culpa, antes que a morte engolisse mais um.

— Não — ela disse. — Se a culpa foi de alguém, foi minha. Afi nal, fui eu que não a salvei. Pergunte a Masato — Nichaela, é claro, não acreditava nisso. Mas era melhor falar algumas mentiras do que deixar o amigo ser soterrado por aquele peso insuportável.

Contudo, Ashlen via a si mesmo como único responsável. Ele havia perdido o mapa, ainda que precário, que eles possuíam. Era por causa disso que eles haviam entrado naquela fl oresta, e enfrentado o monstro. Mais tarde, eles descobririam que aquela era a Mata dos Cem Olhos, como era conhecida pelos collenianos. Nenhum deles sabia por que os habitantes não lhe davam um nome mais agourento, que sugerisse o que havia por lá.

De novo, Nichaela conhecia aquele sentimento. A morte trazia culpa. Nos outros quartos, certamente Artorius se culpava por ter sido fraco e não conseguido salvar a amiga; Vallen se culpava por não ter previsto aquele perigo; Ellisa se culpava por haver estado longe do monstro, na segurança do seu arco; Gregor se culpava por não poder dividir seu dom de ressurreição com os outros; Masato se culpava por apressar o grupo, levando-os a uma decisão inconsequente; Rufus se culpava por não ter sido capaz de conjurar seus feitiços ou identifi car a criatura. Ela só estava errada quanto a Rufus.

— Deve haver um jeito — continuou Ashlen, a voz embargada de choro. — Podemos trazer ela de volta, deve haver algum artefato, algum clérigo que possa fazer isso!

Mas, mesmo enquanto dizia, adivinhava ser tolice (rezando para ser verdade). Seu corpo convulsionava de choro. Nichaela observava: por mais que os bardos e poetas fl oreassem, a

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