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O Cação Cego

67 O Cação Cego

tristeza não era bela. Não havia lágrimas que não fossem feias. Chorava-se quando se era impotente, quando não se podia fazer nada além de chorar, quando o destino era demasiado.

— Eu também não entendo — a voz grossa de Gregor Vahn veio da cama próxima. Ele se sentou na palha, nu da cintura para cima, o rosto inchado de sonolência e os cabelos compridos mal-arrumados. — Não entendo como alguém pode morrer para sempre. Se vocês soubessem. É tão simples.

Gregor e Nichaela tinham visões opostas da morte, embora as duas levassem a caminhos semelhantes. Para Nichaela, era algo horrendo, repulsivo, a coisa mais medonha que os deuses haviam criado. Para Gregor, era trivial, sem consequência, um assunto menor. Mas ambos tinham um só objetivo: vida. E ambos, com sorrisos tristes e meneios de cabeça, mais uma vez eram obrigados a encarar a verdade: a morte, sua inimiga, era o que defi nia a vida.

— Gostaria que o dom de Th yatis viesse para todos — continuou Gregor Vahn. — Para que vocês entendessem como a morte não é nada. Para nós — falou, referindo-se aos paladinos do Deus da Ressurreição — voltar à vida é como o bater do coração, é como piscar os olhos ou respirar.

Ashlen levantou-se do abraço de Nichaela e limpou o rosto. O barco oscilava de um lado para o outro, cada vez mais forte.

— Nunca ninguém lhe tinha morrido, Ashlen Ironsmith? — disse Gregor.

— Nunca — depois fez uma tentativa de riso triste. — Minha avó, mas eu era muito pequeno. Nem lembro dela.

— Eu perdi um irmão — disse Gregor, amarrando os cabelos lisos. — Foi horrível, mas foi há muito tempo. Às vezes me esqueço que ele existia. Acho que é a única forma de viver.

— Eu também nunca havia perdido ninguém — disse Nichaela. — Mas também nunca tive muito. Não me lembro de meus pais, só das clérigas do templo — suspirou e deu de ombros. — Talvez seja melhor assim. Afi nal, todos sabem como nascem a maior parte dos meio-elfos.

Todos sabiam. Ou talvez fossem apenas histórias de preconceito, mas a maior parte dos meio-elfos eram fi lhos do estupro.

— Pode ter sido diferente — tentou Gregor.

— Mas provavelmente não. De qualquer forma, não importa — ela se levantou da cama de Ashlen e sentou-se em um banco atarracado, espremido em um canto. — Eu aprendi a amar e a valorizar toda a vida. As clérigas de Lena veem a todos como pais, fi lhos, irmãos.

— Deve ser maravilhoso — disse Ashlen.

— Por outro lado, sempre há uma morte na família — e todos concordaram em silêncio.

Naquele momento, sentiam-se como guerreiros veteranos trocando histórias de batalha. Dentre eles, apenas Gregor vivia pela espada, mas todos tinham convivido com as armas

tempo sufi ciente para saber que, entre soldados, mesmo aqueles que já haviam sido inimigos, havia uma espécie de camaradagem que só histórias de vida semelhantes podem trazer. Eles eram como soldados, assim como eram soldados todos os que viviam em Arton. Enfrentando as mesmas batalhas, vendo o mesmo mundo e admirando, temendo ou apenas observando os mesmos deuses, heróis e monstros. Até os aldeões mais humildes ou os burgueses de vida mais pacata eram soldados veteranos naquele sentido.

E, de todos os aventureiros daquele grupo, quem mais se aproximava de uma dessas pessoas de vida pacata era Ashlen Ironsmith. Ele não era órfão, não fora escolhido por nenhum deus, não vira sua cidade sendo atacada, não tinha pais mercenários ou grandes aspirações a heroísmo. Era fi lho de uma família rica de Valkaria, a maior cidade do Reinado e capital de Deheon, o que a fazia, para todos os efeitos, a capital do mundo conhecido. Tinha vários irmãos, que moravam na mesma grande casa ou nas imediações, em um bairro abastado. O negócio de ferreiro, que seu pai herdara do pai dele e antes disso do avô, trazia Tibares fartos à casa, e os irmãos seguiam no ofício. Até mesmo o nome da família fora dado pela atividade, já há mais de um século. Ashlen era o único que não desejava seguir a tradição: decidira se juntar ao grupo de Vallen Allond e ver o mundo antes de assumir aquela responsabilidade. De início, a única coisa que Ashlen trazia ao bando era dinheiro e uma curiosidade juvenil, intensa e duradoura. Com o tempo, foi se tornando um membro valorizado, e vira ainda a adição de Artorius depois dele próprio e, mais recentemente, de Masato. Nos planos de Ashlen nunca estivera a morte. Risco, sim, talvez algumas derrotas, uma fuga desesperada para ser relembrada depois, na taverna, mas em geral vitória e tesouros. Não se interessava por tesouros (os tinha à vontade em casa), então voltava seus olhos para vitória e maravilhas. Já vira monstros, magos, masmorras, lugares encantados e inimigos temíveis; já até mesmo cruzara com alguns heróis famosos. A vida ia bem para Ashlen Ironsmith, até que a morte lhe cruzou o caminho e lhe roubou Andilla, e ele percebeu, enfi m, onde estava.

O silêncio entre os três era reconfortante. A convivência trazia tensão e confl ito, mas também um tipo de amizade que só quem vive aventuras conhece. Súbito, o diálogo sem palavras foi interrompido por um barulho alto. O som de passos e correria encheu o navio, e os três saltaram alarmados.

Um chute decidido abriu a porta sem nem mesmo testá-la, e havia seis membros da tripulação invadindo o quarto, apontando bestas. Gregor, vestido apenas com a calça leve com a qual dormira, pulou em direção à sua espada, mas seu corpo foi cravejado por quatro setas e tombou inerte. As outras duas bestas permaneceram apontadas para Ashlen e Nichaela, que levantavam as mãos, rendidos.

Enquanto os que já haviam disparado recarregavam as bestas e um verificava que Gregor, realmente, estava morto, os dois restantes conduziam Ashlen e Nichaela, sob mira, para fora do aposento. Ambos já procuravam os outros membros do grupo. Ashlen

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