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Campo cênico de multiplicidades atravessado pelo sentido

1 SOBREVÔO PARA A DEFINIÇÃO DE UMA PRÁTICA-PENSAMENTO

1.5 Campo cênico de multiplicidades atravessado pelo sentido

Impulsionado por essas questões, trata-se, ainda, de explicitar o campo no qual se traçam as linhas de uma improvisação física e experimental, ou seja, em que tipo de campo cênico definem-se os estudos compositivos. Não conseguiria definir em poucas palavras, que não estas, em que implica uma improvisação física e experimental: num campo cênico de multiplicidades, atravessado pelo sentido.

Tomo multiplicidade como sendo uma das características do rizoma (DELEUZE e GUATTARI,1995a), no qual não há princípio único em derivação posterior (sempre se bifurcando como no sistema-radícula ou sistema árvore)44. No

rizoma, ao contrário, ocorre a distribuição de conexões contemporâneas umas às outras. Não se deve, entretanto, deixar-se levar pela tentadora idéia de entender a multiplicidade como inconsistência de misturas. Como característica do rizoma, a

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multiplicidade torna-se difícil de ser expressa enquanto tal, para o que os

pensadores propõem que se opere, pragmaticamente, por linhas de sobriedade, em termos da fórmula n-1, ou seja, a de sempre exercitar a subtração do uno ao múltiplo.

A multiplicidade é tomada, também, por Deleuze (2005b), em termos de

matilha por oposição à massa. A matilha implica em fenômenos de borda e mútua

conexão, operações que envolvem estar à margem, do lado de fora e, simultaneamente, do lado de dentro. Sua potência aponta para uma conexão com os procedimentos cênico-coreográficos em que a dispersão não é uma diluição, mas fabricação da margem45

. Nesse aspecto, proponho a mim mesmo sempre a tarefa: ver uma cena realizada, num determinado espetáculo, fazendo-a, na minha imaginação virar outra cena, através do recurso de retirar um ou mais elementos para fora da unidade de ação, ou ainda criar uma conexão desviante, e ver de que modo fenômenos de borda podem ocorrer.

Entretanto, falar de um campo cênico de multiplicidades atravessado pelo

sentido poderia dar a idéia de que o múltiplo seria carente dele. A expressão - atravessado pelo sentido- quer dizer que se trata de uma operação que incide sobre

a multiplicidade, não para lhe emprestar alguma coesão faltante, mas para enfatizar

a tarefa da criação cênica. Um modus operandi que se dá através dos fluxos de

matéria-energia, em termos de conexões entre materialidade cênica e corporeidade. A multiplicidade pode, além disso, ser entendida a partir das mudanças operadas por John Cage nos anos cinqüenta, no Black Montain College. Trata-se dos procedimentos de indeterminação, incluindo a quebra da relação frontal cena-público e do ponto de vista único do observador. Essa última ruptura, também operada pelas investidas de Allan Kaprow com o Happening, incidiu sobre um dos maiores baluartes do teatro clássico. (MARINIS, 1988).

Cohen desenhou para nós, nos seus escritos e criações cênicas, uma cartografia possível do que chamo de campo cênico de multiplicidades atravessado

pelo sentido. Numa síntese dessa entrada proporcionada por Cohen, a pesquisadora

Sílvia Fernandes (COHEN, 1998, p. XX) aponta para uma cena que a) faz uso de

narrativas sobrepostas gerando indeterminação; b) define-se como obra progressiva a

partir do corso-ricorso, tomado de James Joyce; c) processa-se através de variáveis

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Um dos procedimentos é o exercício improvisacional intitulado Dispersão e conexão, como explicitado no Capítulo 3, Caderno de exercícios, item 3.5. Cartografias de Improvisação.

abertas num fluxo livre de associações, evitando assim o fechamento do sistema,

como ocorreria, por exemplo, com o texto dramático; d) opera através de leitmotive condutores. Esses últimos substituem a progressão dramática linear e resolutiva.

A encenação contemporânea, “momento do espalhamento da teatralidade e da atitude performática” (COHEN, 1998, p. XXIX), passa por entre linguagens artísticas (dança, teatro, imagem, música), gerando, também, contaminações mútuas.

Esse espaço entre, por onde proliferam as novas textualidades cênicas ou

performance texts (DIÉGUEZ, I2003), ou ainda, como prefiro dizer, um fluxo operatório e expressivo, é abordado por Villar (2004, p.153) num artigo em que busca expor um

acontecimento em que a improvisação é a própria criação cênica (espetáculo do Studio Nova Dança, Palavra). O espetáculo produz, segundo Villar, um entre e um intra linguagens artísticas, ultrapassando fronteiras. Villar cita Dick Higgns do Fluxus, para quem o Happening surge como um intermeio. Esse seria um espaço que não pode ser pensado por regras, mas por singularidades, de modo que cada trabalho define o seu modo de compor.

Um campo entre torna-se mais potencializador, portanto, menos determinado quanto ao que ele pode. Dizer o contrário, definir de antemão o que ele

pode, seria a sua limitação prévia, não-experimental. O que não quer dizer que não

seja específico como técnica e procedimento artístico, principalmente no que implica e incide. O espaço entre, dizem Deleuze e Guattari (1995a, p. 37), não estabelece uma relação localizável de um para outro: ele possui sua própria autonomia.

Um campo potencial, portanto, sempre em atualizações que não o esgotam (um procedimento artístico ou uma solução cênica não se tornam sistema e nem passam a fornecer as regras de captura do que pode vir a seguir). Ao contrário de uma regra universal, são “manifestações artísticas que não têm nenhuma necessidade de trincheiras artisticamente monodisciplinares” (VILLAR, 2004, p. 153).

Tenho chamado as criações nas quais me envolvi com os diversos colaboradores46

, de evento cênico ou de intervenção cênica, conforme a sua inserção. Não chamo de performance para não confundir com o ato performativo,

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Entre os colaboradores, cito os que têm trabalhado comigo de modo mais constante nos últimos dois anos: Ricardo Alves Júnior, que contribui provocando e partilhando os pensamentos conceituais e a criação dos roteiros e Jéssica Azevedo, que participou dos procedimentos de treinamento em e como criação, dos exercícios corporais e como performer em alguns trabalhos.

característico de várias artes, e para não configurar como performance no sentido de

performance art: um ato que não se repete, que é único.

O termo evento vem no bojo das Novas Vanguardas a partir, principalmente, da década de 1960. Ken Dewey (1995), que participou do Formed

Action Theatre, Inc. em Nova York e morreu em 1972, fez a travessia do teatro

dramático, para aquilo que denomina de evento cênico, num texto escrito na década de 1960, intitulado X-INGS. De estilo rápido e quase telegráfico, Dewey (1995, p. 208) vai cortando frases, como quem tem um sentido de urgência, expondo as fontes de um novo pensamento cênico: “out of the text, out of the building, and, most earnestly, out of theatre’s way of doing things”47

Ken Dewey diz que aprendeu a compor com eventos a partir de uma oficina de Ann Halprin, uma das coreógrafas pioneiras na abertura da dança para a improvisação, em 1963. Haveria para Dewey uma continuidade de experimentações até que surgisse, na sua opinião, uma forma: Allan Kaprow teria feito isso, criando o

Happening.

Não importa tanto o nome, desde que nesse campo possa se exercitar uma multiplicidade atravessada. Teatro físico, artes do corpo e da cena, evento cênico, Intervenção cênica: nomes que carregam mais para um lado ou mais para o outro, importando antes as aberturas para a multiplicidade.

O campo é fértil para o desenvolvimento da sobriedade dos estudos compositivos: neles, os rizomas podem se multiplicar. Portanto, em vez da oposição treinamento/criação, processo/obra, abrem-se, nessa perspectiva de pesquisa, as possibilidades de treinamento em e como criação, conectando-se ao procedimento

working in process.

Essa perspectiva deve ser compreendida em toda a gama variável e heterodoxa contaminada pelo campo da performance art, pelas suas potências desestabilizadoras da representação:

a) utilização do real time em oposição ao stage time;

b) a inserção dos exercícios numa visão do espetáculo em termos de um evento cênico e não mais como dramaturgia teatral;

c) a utilização de contextos retirados diretamente da vida, de modo que possam dialogar com as criações dos performers;

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Tradução livre: “fora do texto, fora do edifício, e, ainda mais radicalmente, fora do modo teatral de criar”.

d) apropriação de espaços urbanos e outros, não partindo de uma ilusão cenográfica (reprodução de interiores etc.);

e) a ritualização cênica que permite apropriação dos estados cotidianos do performer como partituras explícitas;

f) a corporeidade que emerge transgressora, como é o caso da Body

Art;

g) estudo do sentido da performance como evento não repetível e único, em suas conexões com os procedimentos working in progress.