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Assim como a expansão do ensino público resultou em grande parte da vontade política, os interesses políticos também se fizeram presentes nas ciências sociais privadas, tanto na forma de subvenções públicas quanto na própria participação direta de alguns governantes e administradores do ensino em iniciativas na área. A diferença estava em que as ciências sociais “livres” dependiam muito mais de fatores diretamente econômicos e culturais no seu movimento de expansão e contração. Dado que a universidade positivista se distanciava de sua tradicional função de atender o ensino secundário e o público burguês, era exatamente esse espaço que as escolas, revistas e cursos privados procuraram preencher. Segundo Charle, os “cientistas amadores ou os intelectuais livres têm tendência a defender, por tradição ou para guardar o contato com o público letrado o mais amplo de onde eles vêm e ao qual se dirigem, a versão a mais vulgar (exotérique) e a mais sintética [da prática intelectual]” 45. O entendimento do campo das ciências sociais “livres” é algo que ainda desafia a compreensão, dada a complexidade das redes, instituições e motivações, bem como das trajetórias e destinos.

No caso dos grupos leplaysianos, os estudos podem ser agrupados entre, de um lado, as correntes que enfatizam o componente de dominação de classe em suas ações  em razão das fontes de financiamento e da classe social de seus principais líderes e organizadores  e, de outro lado, os estudos que priorizam o conteúdo propriamente científico desses trabalhos, ou seja, sua importância teórica46. É inegável o vínculo orgânico entre os leplaystas e as instituições de pesquisa e ensino que eles criaram com o objetivo claro de controle social. Por outro lado, nem todas as iniciativas no campo das ciências sociais privadas estão sob o domínio do poder social e, pelo menos duas outras iniciativas, a de Dick May e a de René

45 CHARLE, Christophe, Naissance des “intellectuels”: 1880-1900, Paris, Minuit, 1990, p. 52.

46 Veja-se, por exemplo, para a primeira interpretação, o trabalho de ELWITT, Sanford, “Social Reform and

Social Order in Late Nineteenth-Century France: The Musée Social and Its Friends”, French Historical Studies, vol. 11, no 3, 1980, e, para a segunda interpretação, o trabalho de HORNE, Janet, “L’antichambre de la Chambre:

le Musée Social et ses réseaux reformatrices, 1894-1914”, in TOPALOV, Christian (éd.), Laboratoires du nouveau

siècle: la nébuleuse réformatrice et ses réseaux en France, 1880-1914, Paris, Éditions de l’École des Hautes

Worms, devem ser diferenciadas das do grupo leplaysta. É possível, inclusive, formular a hipótese de uma homologia entre o campo privado e o público, dado que o pólo profissional e o pedagógico também eram formados por instituições privadas, tais como a École Libre des Sciences Politiques, de Émile Boutmy, a Revue Internationale de Sociologie, de René Worms, e a École des Hautes Études Sociales, de Dick May. Na década de 90, houve uma proliferação desse tipo de instituição: escolas superiores, sociedades científicas, salões intelectuais, cursos privados, revistas e coleções editoriais, financiadas principalmente pela iniciativa privada. Por outro lado, o campo das ciências sócias “livres”, mesmo em suas as posições dominantes  pense-se na École Libre des Sciences Politiques ou na Société d’Enseignement Supérieur  tinham maior dificuldade de financiamento e de sobrevivência, o que impelia à mudança de seu estatuto para instituição de “utilidade pública” com o fim de permitir subvenções públicas47.

As escolas e as associações científicas mais sólidas nesse meio foram as subvencionadas pelos “notáveis”  a aristocracia e a grande burguesia de negócios. Se se considera a origem social dos mecenas por trás da École Libre des Sciences Politiques, das escolas livres de comércio, bem como das associações leplaysianas de filantropia e de pesquisa social, os grandes doadores são homens de negócios, principalmente banqueiros, mas também grandes industriais, tais como as famílias Rotschild, Eichthal, Lazard, Weill, Siegfried, André, Reinach e Baccarat. Antes dos anos 90, a prática da filantropia privada, inspirada pela vocação religiosa, com o fim de legitimação social ou simplesmente por tradição local havia dado origem a instituições de assistência social de toda espécie, mas sua vocação para a ciência só ocorreu nas últimas décadas do século, quando a pressão social fez com que hábitos e valores familiares se transformassem em necessidade consciente de dominação e controle racional. Ao mesmo tempo, a relação das tradicionais famílias nobres, proprietárias e monarquistas com os novos poderes republicanos passava por mudanças, entre as quais as relativas à nova ambição científica da República, baseada na crença de que os problemas sociais poderiam ser resolvidos pela educação e pela ciência. A atitude de Émile Boutmy ao anunciar a criação da École Libre des Sciences Politiques, em 1871, após a perda da guerra para a Prússia e a Comuna de Paris, antecipou uma necessidade que as antigas classes dirigentes começaram a sentir em relação aos novos grupos republicanos: ele conclamou as antigas “classes superiores” a dominar não mais pelo nome ou pela

47 Sobre as dificuldades da École Libre des Sciences Politiques, cf. GUETTARD, Hervé, Émile Boutmy: un

réformiste liberal (1835-1906), Tese de História, dir. Raoul Girardet, Paris, Institut d’Études Politiques, 1990.

Sobre os problemas de financiamento da Société d’Enseignement Supérieur, veja-se as cartas de Boutmy a Joseph Reinach, BNF – NAF – MF 24874.

propriedade, mas pela competência. As ciências sociais “livres” têm, portanto, uma origem social dominante e impregnada da disposição “pragmática”, ou seja, vinculada à resolução de problemas sociais, mas também uma vontade de se diferenciar da tradição “clássica” em nome da vocação científica. Essas disposições deram origem, em termos de metodologia de pesquisa, a uma obsessão pela empiria, pela coleta e classificação de dados, por oposição à “abstração”, considerada maléfica porque perpetuadora da tradição ou da utopia socialista.

As carreiras independentes dos chamados “intelectuais livres”48 estavam mais sujeitas às instituições e aos meios de circulação privados e dependiam mais de capital econômico e de relações sociais do que de credenciais universitárias. Nas posições mais dominadas, ligadas ao mercado da cultura, a instabilidade das carreiras era ainda maior, pois mais suscetíveis a mudanças na preferência do público, nas estratégias editoriais, nas vendagens ou assinaturas de jornais e revistas. A figura do publicista49 passava por uma transformação importante nesse período. Se durante grande parte do século XIX o publicista era uma figura próxima do poder político ou em vias de ocupá-lo, nas últimas décadas do século é praticamente um comentador da vida contemporânea através de jornais ou de livros de vulgarização, no melhor dos casos um escritor de best-sellers. O que exprime essa nova dependência é o caráter altamente seletivo dos nomes citados em seus textos, dada a obrigatoriedade moral  e o imperativo profissional  de retribuir uma citação, moeda de troca nesse meio e base da publicidade de um autor nessa posição 50. Dependentes da memória do leitor, eles também se apresentavam em concursos de sociedades científicas, outra forma de angariar prestígio e assegurar a sobrevivência51. No meio jornalístico, os publicistas expressaram essa tensão através de disposições anti-estatistas radicais: elogiavam a iniciativa privada, individualista e quase heróica do intelectual “independente” e, ao mesmo tempo, criticavam abertamente o

48 Christophe Charle denomina “intelectual livre” os autores que, sem vínculo institucional universitário,

têm uma produção menos pautada pelas formalidades e pelo controle da universidade. Cf. CHARLE, C., Naissance des “intellectuels”: 1880-1900, op. cit.

49 “Nós nos habituamos, erroneamente, a chamar de publicista todo jornalista. Deve-se reservar essa

qualificação àquele que trata de matérias políticas e sociais com uma superioridade real, uma real independência de espírito. ‘O publicista, afirma o senhor Ch. de Mazade, é particularmente um escritor dos novos tempos, um homem que, sem ser exclusivamente um historiador ou um filósofo, é freqüentemente um e outro, que mistura filosofia, literatura e história, reunindo de uma maneira surpreendente e rápida todos os elementos das questões à medida que elas se sucedem, condensando por vezes a vida de uma época ou de um homem em algumas páginas (...)’”. Cf. verbete ‘Publicista’, LAROUSSE, P., Grand Dictionnaire Universel du XIXe siècle, Paris,

Administration du Grand Dictionnaire Universel, 1866.

50 Carta de Gustave Le Bon a Gabriel Tarde em que ele envia, anexada, parte do artigo em que cita Tarde:

“(...) envio a passagem em que eu o cito. Nós evitamos cuidadosamente a citação recíproca durante anos. O senhor nunca me citou (...) porque eu naturalmente o precedi na carreira. Hoje eu creio que muitos escritores me citam (...). Pois o senhor pode ver que (...) eu já comecei”, CHEVS, GTA 80.

51 TOPALOV, Christian (éd.), Laboratoires du nouveau siècle, op. cit. Os prêmios em concursos

representavam um conforto à condição de publicista, já que viviam de suas próprias publicações de livros e artigos em revistas da burguesia letrada, tais como a Revue des Deux Mondes.

intelectual “funcionário”, supostamente conformista na posição de funcionário público ou revoltado quando desempregado. Nesse sentido, as teses de Le Bon sobre a “independência” de sua condição por oposição à domesticação do pensamento universitário podem ser consideradas parte de uma série de textos publicistas que durante os anos 90 sustentaram a tese da “decadência” francesa e da proletarização das carreiras liberais, em particular a da decadência do intelectual universitário. Uma projeção deslocada, mas verdadeira, dado que, no fundo, exprime a real perda de status da própria carreira.

Diferentemente da situação do publicista puro, a carreira docente numa instituição privada era um pouco mais prestigiada, ainda que também nesse caso sua situação fosse frágil em razão da remuneração instável e insuficiente, bem como da dependência em relação ao mecenato patronal e às subvenções públicas. Para os professores das universidades públicas, a passagem por uma escola livre interessava no início da carreira, enquanto procuravam qualificação ou prestígio, ou no fim da carreira, quando se identificavam ideologicamente ao projeto, já que a remuneração dessas instituições era praticamente simbólica52. Outra fonte de interesse era a inovação disciplinar, dado que, por vezes, o ensino privado era a única forma de ter público para uma disciplina ainda inexistente na universidade. Para os não credenciados à universidade, contudo, ser professor de uma instituição livre exigia um enorme esforço de acumulação de capital de relações sociais. A motivação para a docência era bastante variada: desde os mais diletantes e interessados na vida mundana até os mais vocacionados à pesquisa científica, passando pelos que buscavam legitimar-se para outro campo, como é o caso dos pretendentes à carreira política ou na administração pública.

A participação em sociedades científicas (sociétés savantes) era outra forma de se credenciar para o campo intelectual, principalmente porque elas costumavam editar revistas ou boletins que publicavam os artigos dos seus membros. As sociedades científicas, filantrópicas e profissionais se tornaram uma verdadeira febre nesse período, a ponto de não ser raro encontrar intelectuais, como Émile Cheysson, que fossem membros de cem instituições desse tipo ao longo da vida. Os artigos e obras publicados, por sua vez, serviam de currículo para a candidatura a uma vaga numa escola ou curso livre, ou mesmo numa instituição de consagração como o Instituto, formado pelas cinco Academias. Este foi o caso de Raul de la Grasserie que enviou uma lista de artigos e obras publicadas a Gabriel Tarde anexada a uma carta em que pedia apoio para sua candidatura como correspondente do

52 LETERRE, Thierry, “Elie Halévy et l’école libre des sciences politiques”, texto apresentado no Colloque

Instituto53. Freqüentemente, como se pode observar pelo currículo de Raoul de la Grasserie, a classificação disciplinar era muito abrangente e abarcava temas muito distintos sob uma mesma rubrica, como é o caso da “Sociologia”, seção em que estão incluídos artigos sobre direito civil, penal, criminal, trabalhista, internacional e, ainda, sobre religião, feminismo, criminologia, estatística etc.. A concepção larga de sociologia de La Grasserie é correlata à amplitude dos temas tratados pelo autor, cujo currículo está dividido em seis subdivisões  “volumes de versos”, “métrica”, “psicologia”, “sociologia”, “direito internacional e comparado” e “lingüística e gramática comparada”. O currículo relativamente eclético de La Grasserie pode ser considerado modelo da produção intelectual na área de ciências sociais por parte dos autores posicionados no pólo profissionalizante do sistema universitário, ligados principalmente às faculdades de direito e às escolas de engenharia e comércio.

O recrutamento nesse campo, dada sua lógica de funcionamento, está baseado, em grande parte, em profissões não intelectuais  profissionais liberais e administradores públicos ou privados , cuja renda familiar ou proveniente de outra carreira garantia uma posição independente ao campo intelectual. Além desses grupos, também estão presentes os que não têm recursos familiares nem uma profissão estável, razão pela qual são mais dependentes de capital de relações sociais e de diplomas e geralmente ocupam postos assalariados na burocracia dessas instituições54, como é o caso de Émile Boutmy, Edmond Demolins, Émile Cheysson, Émile Levasseur e Gustave Le Bon. Esses intelectuais, nascidos em famílias não tão privilegiadas da pequena e média burguesia, buscavam no mundo intelectual e nas ciências sociais nascentes uma fonte de legitimação social que lhes permitisse servir de intermediários entre a demanda por controle social, de um lado, e a ambição pela carreira intelectual, de outro lado. A presença de professores do secundário e mesmo de professores universitários no campo das ciências sociais “livres”, principalmente filósofos e historiadores, pode ser explicada pelo caráter militante de algumas instituições, à esquerda ou à direita do espectro político, resultado da sociabilidade escolar e da identidade de práticas e de representações ligadas à função intelectual. Do mesmo modo, os administradores do ensino podem ser considerados uma categoria eminentemente militante em sua participação nas redes privadas, ao mesmo tempo em que utilizam esses espaços flexíveis para experiências sobre o poder da educação na estabilização social.

53 Cf. o Anexo 2 – Currículo de Raoul de la Grasserie. O currículo foi enviado com a seguinte mensagem:

“(..) já que o senhor é membro da Academie des Sciences Morales et Politiques poderia, talvez, se considerar conveniente, propor meu nome como correspondente do Instituto. (...) Tenho alguns títulos que o senhor pode examinar. Com essa finalidade, envio-lhe a lista de minhas obras, entre as quais a sociologia ocupa a maior parte”, CHEVS, GTA 87.

Duas iniciativas se destacam nos anos 90: a de René Worms e a de Dick May. Essas duas figuras realizam uma verdadeira divisão do trabalho intelectual no campo das ciências sociais “livres”: May funda uma coleção na Alcan  a Bibliothèque des Sciences Sociales  e duas escolas superiores  o Collège Libre des Sciences Sociales e a École des Hautes Études Sociales , enquanto Worms funda uma revista  a Revue Internationale de Sociologie  duas associações científicas  o Institut International de Sociologie e a Société de Sociologie de Paris e uma coleção editorial na Giard et Brière  a Bibliothèque Sociologique Internationale. Esses quatro formatos institucionais  revista, sociedade científica, coleção editorial e escola  são fundamentais para a sobrevivência do pólo privado no campo intelectual. Impedidos legalmente de fundar escolas de ensino superior com o nome de “faculdade” ou “universidade”, bem como de emitir diplomas, o grande objetivo desses intermediários intelectuais era fundar uma nova escola superior de Ciências Sociais  privada para Dick May e pública para René Worms  o que exigiu um conjunto de estratégias e a mobilização de redes políticas, sociais e intelectuais.