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M HOMEM PASSOU CORRENDO, NU, E DESAPARECEU EM MEIO à neve. Trovejava, o vento rugia para todos os lados, e todos os sapos e libélulas estavam inquietos. Os vermes despencavam do céu, leves como penas de raposa e escamas de porcos magros, rodopiando felizes por não existirem. Da fl oresta saíam todos os cavaleiros, e atrás deles seus reis e uma princesa casada com um macaco. As margaridas piscaram seus olhos para Glórienn enquanto ela caminhava pelo Reino de Nimb, o Deus do Caos.

Uma família cortava seus dedos dos pés, sentados no chão de pregos e sorrindo com dentes verdes. A fi lha menor repreendia os pais, furando seus olhos com agulhas. Havia elfos por lá, Glórienn observou, brincando de suicídio com orcs e anões e halfl ings. Todos eram irmãos na loucura. O céu vomitou mais um pouco e a Deusa dos Elfos apertou o passo. Teve medo pois se sentia cada vez mais em casa por ali.

Chegou ao palácio de Nimb em meio a um cheiro avassalador de estrume, e bateu na porta feita de ossos de galinha e crianças pequenas.

— Os guardas foram embora, entra quem quiser — disse a porta. — Todos são livres, todos são bem-vindos.

— Não aceito suas boas-vindas — disse Glórienn, sabendo aonde toda aquela liberdade levaria. — Não sou livre, não moro aqui. Sou visitante, preciso da permissão do seu lorde.

A porta remexeu-se, admirada com a sagacidade da elfa. Era verdade que a loucura admitia todos, e eram raros os que não aceitavam seu abraço quente como urina.

— Aqui o lorde é mendigo, e o oleiro lava nossas calças. Mas se quer falar com Nimb, entre sem medo.

A porta se abriu e Glórienn passou, sem olhar para ela de novo.

— Sempre terá um lar aqui! — ainda disse a porta, mas Glórienn não olhou para trás. Passou por uma câmara revestida de órgãos sexuais, um palco onde crocodilos atuavam para a diversão de príncipes, e uma planície onde a chuva fugia de uma horda de máquinas

feitas de carne crua. Por fi m, em uma pequena sala, o Deus do Caos olhava para dentro de uma bacia com água.

— Minhas saudações, lorde Nimb. Venho aqui com uma proposta.

Nimb levantou a cabeça para olhar Glórienn. Estava sentado em uma cadeira feita de unhas. Um dragão pendia do teto, caçando peixes. Os olhos de Nimb eram negros e vazios, e, de repente, Glórienn entendeu que, embora houvesse tantas coisas, tantas pessoas e animais naquele Reino, esse vazio era sua verdadeira natureza.

— A Deusa dos Elfos! — disse Nimb, sorrindo com dentes podres. Saltou da cadeira, fi cando de pé com sua estatura baixa. — Imaginei que viria para cá. Muitos dos seus fi lhos chegaram nos últimos dias.

Glórienn engoliu em seco. Sabia que, caso se ofendesse e discutisse com Nimb, ele acabaria arrastando-a para dentro de seus pensamentos frenéticos.

— Venho com uma proposta — repetiu. — Só você, Deus do Caos, pode me ajudar. Nimb observou-a divertido. Em seguida, semicerrou os olhos, como se nunca a houvesse visto. — A Deusa dos Elfos! Imaginei que viria para cá. Muitos dos seus fi lhos chegaram nos últimos dias.

— Venho aqui com uma proposta — por um instante, Glórienn pensou ser um jovem molusco. Agarrou-se à memória da chacina de seus fi lhos para lembrar-se do que viera fazer. — Venho aqui com uma proposta.

Nimb tirou a cartola, de onde saiu uma nuvem da gafanhotos.

— Sempre direta, minha amiga. Nem me deu a chance de cumprimentá-la.

— Venho aqui com uma proposta — disse mais uma vez a elfa. Glórienn sabia que apenas insistindo de forma estoica conseguiria prender Nimb a uma linha de raciocínio.

Nimb pegou um pedaço de madeira do chão e pôs-se a devorá-lo. — Diga-me sua proposta, então.

Glórienn rapidamente foi uma pedra no castelo de um rei apaixonado por um tigre aleijado. Forçou-se a continuar.

— Haverá uma tempestade. Muitos morrerão. Mesmo agora as criaturas responsáveis olham para Arton, pensando no arauto que irão enviar.

Nimb fi cou em silêncio. Depois disse:

— Mesmo agora um menino mata formigas com óleo de lampião, sem saber que elas o cultuam como a um deus.

— A tempestade, Nimb! — exclamou Glórienn. Ela não sabia por quanto tempo conseguiria manter sua mente intacta.

— Quer que eu ajude a detê-la? Não me interessa. Peça a Khalmyr.

Não. Glórienn não queria deter a tempestade. Queria garantir que ela viesse.

Nimb sorriu. Foi até uma mesa que já fora um menestrel e serviu-se de uma taça de saliva de cachorro. A taça retorceu-se em sua mão.

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Caos, Sorte e Azar

— Todo Arton pode ser destruído — continuou Glórienn. — Mas ela deve vir. Depois nós iremos detê-la, depois que meu objetivo for cumprido. Não conheço seu poder total, mas julgo que nós, os deuses, juntos, poderemos detê-la.

Nimb bebeu um gole e seguiu ouvindo, com a atenção de um obsessivo.

— Sei que é o Deus do Caos, não da Morte. Sei que não é maligno. Mas deixe-me explicar por que quero arriscar tanto.

— Não é necessário — interrompeu Nimb. — Venha, olhe isto. Glórienn acompanhou-o até uma cabeça empalhada de golfi nho.

— Olhe — disse o louco, fi tando um dos olhos de vidro da cabeça empalhada.

Glórienn olhou dentro do outro olho, e viu uma cena em Arton. Um homem, de cerca de quarenta anos, sentado em uma cadeira e em frente a uma mesa simples, observava um cesto de pães.

— Um dos pães está envenenado — disse Nimb. — São seis ao todo, e um deles está envenenado. Ele sabe disto. Tem uma chance em seis de morrer, caso decida comer um pão.

O homem estendeu o braço e pegou um dos pães. Depois soltou-o e escolheu outro. Levou-o lentamente até a boca.

— Por que ele vai comer? — disse Glórienn. — Está faminto? É miserável? Isso é algum tipo de pilhéria dos seus clérigos, Lorde Louco?

— Não — riu Nimb, sem tirar os olhos da cena. — Ele vai comer porque quer. Na verdade, ele vem fazendo isso todas as manhãs, há um mês.

Glórienn deixou de olhar o olho do golfi nho empalhado e voltou-se para Nimb. Começou a entender. Era apavorante.

— Isto é Caos, Glórienn. Ele está prestes a arriscar tudo, tudo, sem razão alguma. Isto é entregar-se aos dados. Isto é confi ar na Sorte, não temer o Azar.

Glórienn, súbito, estava consciente de onde estava, e do quanto isto era terrível.

— Se eu quero que venha a Arton uma tempestade que pode acabar com nossa criação? Eu não quero o fi m da Criação, Glórienn. Eu não quero destruí-la. Eu não quero que tudo acabe. Mas eu quero arriscá-la, Glórienn, ah, como quero! É fantástico! Eu mesmo estarei à mercê do caos, da sorte, do azar! E, caso vença, que delícia! Caso perca, posso até morrer, não é? Diga-me que sim!

— Sim — disse Glórienn, muito quieta, afastando-se de Nimb com passos pequenos. Na verdade, ela não sabia disto, mas era o que temia.

— Garantirei que sua tempestade venha, Glórienn! Ah, ela virá! Virá como os reis gorilas da primavera!

Nimb começou a gargalhar, todo o seu corpo pequeno convulsionando, as grandes argolas de ouro que pendiam das suas orelhas chocando-se contra o rosto, fazendo hematomas roxos. O dragão no teto encolheu-se de medo.

— Irei partir, então — disse Glórienn, olhos arregalados. — Nosso assunto está acabado.

— Não pode partir, você mora aqui — falou Nimb, de repente sério. — Você é Puwick, o filho de um comerciante de Sambúrdia, não lembra? Um dia resolveu investigar os gemidos que vinham do sótão e encontrou sua tia, que seus pais haviam dito que estava morta. Não lembra?

Nimb olhava Glórienn com um sorriso muito aberto, e uma expressão de pura maldade em todo o seu rosto exceto os olhos. Seus olhos não traziam maldade, apenas breu, vazio, desespero. Nada. Glórienn olhou dentro daquelas órbitas negras e começou a entender que não havia vida, nem sonhos, nem esperança, nem vingança, nem propósito; não havia o que entender. Só caos, esquecimento a cada segundo, abismo, queda sem fi m.

— Lembra-se do que ela fazia? — continuou Nimb. — Ela comia as próprias fezes. E o cheiro, lembra-se? Dos restos de comida que os empregados colocavam lá todos os dias. A janta de ontem e de anteontem, apodrecidas, lembra? Lembra-se dos vermes? Lembra da expressão de sua tia, Puwick?

Glórienn lembrava.

— E o diário? Lembra-se do diário? Quando ela ainda era sã, e a tinta da pena ainda não havia secado. A última anotação era de três anos atrás, não é? Já incoerente. Mas, nas anotações anteriores, o registro de como seu pai havia arrancado a língua dela, Puwick. Porque o que ela gritava, lá em cima, no sótão, assustava as crianças! Assustava você! Lembra-se?

E Glórienn era Puwick, o fi lho do comerciante de Sambúrdia que tinha cortado a língua da própria irmã.

— Diziam que ela era louca, não é? E você, não fi cou um pouco, também, depois de ver sua tia, de sentir aquele cheiro?

Era verdade. Glórienn/Puwick havia enlouquecido, e sabia disso. Havia fugido, empregado-se numa caravana e fugido de casa, do horror.

— E então, o que aconteceu, Puwick?

— A caravana foi atacada — disse Puwick/Glórienn. — E eu morri. — E veio parar aqui.

— E vim parar aqui.

— Muito bem — disse Nimb, satisfeito. — Agora, volte a seus afazeres. Acredito que você tenha de alimentar os cavalos com outros cavalos.

Puwick, que já fora Glórienn, virou-se e partiu, para cumprir a ordem de Nimb, seu lorde. Quando estava prestes a sair pela porta, observado pelo dragão do teto, seu corpo teve um espasmo de dor. Em Arton, outro elfo morria, vítima dos ferimentos sofridos no ataque a Lenórienn. A dor trouxe a deusa de volta.

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Caos, Sorte e Azar

Nimb riu.

— Apenas uma brincadeira. Agora vá, Deusa dos Elfos. Cumprirei o que combinamos. Glórienn hesitou, estremecendo, enquanto Nimb voltava a se sentar em sua cadeira de unhas, olhando para dentro da bacia com água.

— Isto é outro instrumento divinatório? — disse Glórienn, antes de ir. — Está olhando a loucura de outro de seus seguidores, Deus do Caos?

N

ÃO PODERIAM ESTAR MAIS LONGE, EM CORPO E ESPÍRITO, DE onde queriam. Seu destino era Kriegerr, vila pacata de mar e pesca; estavam em Var Raan, cidade duvidosa, com povo sinistro e reputação de adaga nas costas. Não bastasse, Kriegerr fi cava no extremo norte de Collen, e Var Raan na ponta sul.

— Mas há barcos — disse Ashlen.

— Há piratas — cuspiu Vallen. Inverno e Inferno, as lâminas irmãs, imploravam para pular de suas bainhas.

Eles haviam esperado estar na parte fácil da jornada. Uma viagem por Collen, o Reino dos Olhos Exóticos, onde nada de muito grave poderia acontecer. Contudo, já haviam sido ameaçados, escorraçados, e haviam perdido uma amiga querida para uma aberração medonha. Sem Andilla Dente-de-Ferro, eles foram incapazes de retomar o caminho para o norte em tempo hábil. Haviam seguido uma trilha ditada por Ellisa Thorn para chegar até um lugar onde pudessem adquirir suprimentos e transporte. Por infelicidade, o lugar era Var Raan, uma cidade suja que, pelo que sabiam, tinha a fama de abrigar piratas. Mas era melhor do que a mata escura e maligna na qual haviam estado há pouco mais de uma semana.

Haviam decidido fi car em Var Raan o mínimo possível. Sem descanso, sem perda de tempo: apenas contratar um barco e comprar a comida necessária.

De fato, a cidade não convidava nem um pouco. O cheiro de maresia e peixes mortos empesteava cada canto, e as habitações eram sujas e decadentes. Não havia prédios altos, apenas casebres precários e a ocasional construção de pedra feia, que reunia tipos insalubres. O povo de Var Raan olhava os aventureiros com o rosto torto, e muitos preferiam virar a cara a responder uma pergunta simples. Por um lado, este era exatamente o tipo de lugar que se esperaria que escondesse criminosos. Por outro, talvez toda essa desconfi ança fosse fruto de anos de escárnio e da marca de “vergonha de Collen”. O sol que ardia com força não parecia

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