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I. Os nomes da São Paulo Oriental do século XVI ao XIX

I.3. A capela de Nossa Senhora da Penha

O fim dos ataques indígenas no seiscentismo não cessa, contudo, as dificuldades de manutenção dos povoados paulistanos. Além da constante saída dos homens para o sertão, esvaziando os aglomerados, as secas e epidemias dizimam a população e desencorajam a fixação de novos colonos. Espalhar-se no entorno reduz chances de contaminação e ampliam as terras a serem cultivadas. O isolamento, contudo, leva à abertura de capelas ao longo dos caminhos, como ocorreu no Tatuapé com o estabelecimento da capela do Belém. A partir do século XVIII, nenhum outro orago guarda a força devocional representada pela Nossa Senhora da Penha, cuja capela foi construída na estrada que seguia

para o aldeamento de São Miguel. O processo de escolha do orago se reveste de lendas27. A mais comum reporta a um francês que, passando por São Paulo, pernoitou em uma colina afastada do núcleo. No dia seguinte, o viajante percebeu que a imagem de santa que amarrara ao cavalo havia desaparecido, encontrando-a, para sua surpresa, no lugar onde dormira no dia anterior. Retomada a viagem, a imagem desaparece pela segunda vez e, novamente, é encontrada no alto da colina. Diante do milagre, o próprio francês teria construído a primeira capela (Arroyo: 1954, 176-177; Bontempi: 1969, 33).

As estórias abrigam muito da crença popular, encobrindo fatos que poderiam elucidar as verdadeiras razões que levaram à manutenção da imagem na colina da Penha, a esquerda do ribeirão Aricanduva, de difícil acesso sobretudo nos meses de cheia do Tamanduateí e Tietê. Todas chegam a um ponto em comum: a própria santa escolheu o local onde deveria ser venerada pela população. O culto a Penha, contudo, não ficou restrito a São Paulo.

A origem do convento de Nossa Senhora da Penha, no município de Vila Velha (ES), também é encoberta por milagres. Em 1558 chegou ao Brasil o primeiro quadro a óleo da santa, trazido pelo franciscano Pedro Palácios, que, misteriosamente, desapareceu algumas vezes, vindo sempre a ser encontrado no alto de um morro. O Frei Palácios viu no milagre o desejo da santa de permanecer no lugar e construiu uma capela, concluída apenas em 1750 e transformada, posteriormente, em convento.

A localização da cidade de Reduto (MG)28 assemelha-se ao sítio onde se construiu a capela da Penha na São Paulo Oriental. O povoado do século XVIII foi criado no cruzamento de dois caminhos, um que ligava Minas Gerais a Goiás e ao Rio de Janeiro e outro que cruzava a Província de norte a sul. O orago escolhido foi Nossa Senhora da Penha de França, em virtude de o povoado ser estabelecido no alto de uma grande pedra.

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Muitas lendas espalharam a fama da santa, algumas registradas pela Igreja. Entre estas, documentou-se um estranho fato no Bispado de Dom José de Barros de Alarcão: o próprio bispo ordenou que a imagem fosse levada para o núcleo, onde seria construído um convento, ato que a população da circunvizinhança em vão tentou impedir. Marcado o dia da translação, todos foram acompanhar a partida da imagem, mas ficaram entristecidos ao encontrarem a capela fechada, sinal de que a santa já tinha sido levada. De repente, a capela se abre, e, estarrecida, a população vê a santa colocada no seu nicho, sem conseguir explicar como as portas foram abertas. Diante do milagre, como sinal de que a própria santa não deseja sair de sua capela, o bispo desistiu de sua intenção. (Bontempi: 1969, 54)

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O município de Reduto foi elevado a distrito em 1840 com o nome de Nossa Senhora da Penha de França do Arraial da Lage.

Estes exemplos revelam características recorrentes. No caso de Vila Velha, um milagre justifica a construção da capela em um morro. Reduto surge ao longo de estradas, no entorno de uma capela construída na parte mais elevada do terreno. A fé por Nossa Senhora da Penha e a construção da capela para a imagem no alto, para ser adorada e olhada de baixo para cima, são comuns no século XVII-XVIII. A dificuldade de acesso representada pela elevação e, especialmente em São Paulo, pelo penoso caminho reforça a devoção à Virgem, tornado-se penitência em favor de curas e milagres29.

Faltam documentos que indiquem a data e o construtor da primeira capela de Nossa Senhora da Penha em São Paulo. A petição datada de 1668 do licenciado Matheus Nunes de Siqueira, anteriormente transcrita, é o primeiro documento conhecido que trata da Penha, mas ainda não se refere ao orago. Pelo registro, subentende-se que a capela era mais antiga, “lhe faça mercê dar por carta de sesmaria a terra que pede para maior augmento da capella” (Azevedo Marques, 1952, 165). Segundo Sant’Anna (1958: 490-1), antes do licenciado Mateus Nunes de Siqueira, a capela já existia como propriedade de Francisco Jorge, na qual se enterravam os povoadores daquela região até 1621 ou 1622.

Bontempi (1969, 58) identifica o primeiro registro do designativo Penha, em 1682: já em 1682 (note-se bem o ano!), nos primeiros anos do povoado, em seu berço, aparece a designação tal como se emprega hoje, “Penha”, bem moderna e isso está em papel oficial. Foi usada por André Lopes em pedido de carta de aforamento de terras situadas na paragem de “Jagoaporeruva”, com o fim de melhor esclarecer a posição delas: “(...) confrontando com um ribeiro que está junto com o sítio vindo delle para a Penha e da outra parte correndo”, etc. (CDT, III, 132). (...) E, nota curiosa, do mesmo modo como é chamado hoje, simplesmente “Penha”.

Assim como se observou no caso de Belém, a designação da localidade ocorre apenas pelo termo determinante do orago, Penha. No início dos setecentos, tem-se o primeiro registro no qual o orago dá nome ao caminho:

O bairro da Penha, nos papéis antigos do Arquivo Histórico da Prefeitura, começou a aparecer, com êsse nome, muito depois da fundação da ermida. “Caminho da

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Anos em que ocorreu a transladação da imagem da Penha para a igreja da Sé: 1768, 1780, 1783, 1791, 1816, 1817, 1819, 1841, 1842, 1846 (seca), 1847, 1858 (varíola), 1859 (varíola), 1863 (varíola), 1864, 1867, 1869 (seca), 1873 (varíola), 1875 (varíola) e 1876 (última vez). (Langenbuch, 1968, 111; Arroyo, 1954).

Penha”, só por volta de 1715 (ACSP, VIII, 344); depois em 1748 e 1749, “bairro da Penha” ou “caminho de São Miguel até a Penha” (RGCSP, XIX, 92 e 303). (Sant’Anna, 1953, 491)

Trata-se da estrada que ligava o núcleo ao aldeamento de São Miguel, preterido ao percurso fluvial durante o século XVI e cruzado por tropeiros nos primeiros anos do XVII. Esta mudança é evidenciada em registro de 14 de julho de 1764, apresentado por Sant’Anna (1950, 94-5), no qual os camaristas ordenam aos moradores de São Miguel a realização de reparos de caminho e aterrado:

que fosse o alcaide deste Senado notificar aos cabos de São Miguel à sua custa para logo virem fazer o caminho e aterrado desde Nossa Senhora da Penha até á ponte de José da Silva Ferrão na forma do mandado que se expediu.

Solicitações como esta eram comuns; nesta época a manutenção das estradas era realizada pelos próprios moradores a mando dos camaristas. O estranhamento recai sobre o interesse do trabalho: apesar de os moradores serem de São Miguel, meia légua antes da capela da Penha, restringiu-se os consertos dos limites da várzea do Carmo, marcada pela chácara do Ferrão, até proximidade do povoado da Penha.

Difícil afirmar quanto do traçado seiscentista da estrada que conduzia aos aldeamentos de São Miguel e Guarulhos tenha se alterado; mesmo porque, a maneira mais usual de se chegar aos aldeamentos era pelo Tietê, e a trilha, senão as trilhas, recebia pouca atenção da vereança e, conseqüentemente, pouca manutenção. Em meados do século XVIII, seu traçado se estabiliza, tornando-se o mais próximo possível ao conhecido no século XIX, pelas obras do caminho de São Paulo ao Rio de Janeiro determinadas em 1725 no governo de Rodrigo César de Meneses (Bontempi, 1970, 104).

A fama de milagrosa da imagem da Penha e o progressivo aumento de peregrinos certamente foram decisivos na estabilização do traçado final. O Conde de Assumar, 3.º Governador e Capitão-mor da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, por exemplo,

oito anos antes de ser iniciada a estrada nova, passou pela Penha ao se dirigir ao Rio de Janeiro, lá parando obviamente para uma oração a Nossa Senhora e, ao

ensejo, saborear doces e guloseimas da casa, já famosos na época. (Bontempi: 1969, 71)

Os camaristas voltam-se para a São Paulo Oriental, portanto, como obstáculo a ser vencido até a Penha, e a necessidade de manter o caminho aberto levou a constantes ordens de reconstrução dos aterrados e pontes. Em 15 de abril de 1769, determinava-se novos trabalhos de manutenção da estrada, desta vez a uma quantidade maior de moradores e a ser realizado desde proximidades do núcleo até São Miguel:

se passou um mandado para se fazer o caminho, e pontes e aterrados desde o bairro de São Miguel até á ponte do Ferrão e se nomeou por cabos a saber a Salvador Munhoz Paes – e a Ignácio Fernandes. (ACSP, XV, 454)

A descrição de Müller (1978, 244A) mostra que, em 1836, a freguesia da Penha é passagem obrigatória da estrada que se iniciava no núcleo, e, a partir deste ponto, bifurcava-se. Um dos caminhos, possivelmente o mais utilizado, resultante das obras iniciadas em 1725, não mais passava por São Miguel nem por Itaquaquecetuba. Torna-se a ligação aos antigos aldeamentos apenas mais uma das muitas estradas secundárias e de menor importância, assim como as “trilhas e picadas vicinais que levavam à baixada do Ticoatira (Cangalha), Guaiaúna, cabeceiras do Aricanduva (Rio Verde), Jaguaporeruba, enfim, a inúmeras direções, sempre ao longo dos pequenos cursos fluviais” (Bontempi: 1969, 71).

Fixa-se, paralelamente, o novo referencial da São Paulo Oriental. A Penha passa a designar toda a região à direita do ribeirão Aricanduva, e referencial do caminho, reflexo da função principal que este adquiriu: permitir acesso de peregrinos a partir do núcleo e, apenas em segundo plano, tropas provenientes do vale do Paraíba e do Rio de Janeiro.

Nos Registros de Terras, somam-se 53 referências à designação da estrada da Penha. Destas, apenas 3 não fazem qualquer remissão à capela da Penha:

* estrada geral (RT 20);

* estrada geral para o Rio de Janeiro (RT 13); * estrada que segue para o Rio de Janeiro (RT 124).

O primeiro refere-se à propriedade que se encontrava no lado direito da estrada, em ambas as margens do ribeirão do Aricanduva. Os demais foram declarados nas proximidades da primeira ponte da estrada e no Tatuapé, respectivamente; o primeiro, por um engenheiro alemão responsável por diversas obras na Província, o que, em parte, justifica declarar o destino da estrada por uma maior dimensão.

Quanto ao fato de ser uma estrada geral, ou seja, oficial, além dos dois registros acima transcritos, apenas outros três assim o declararam: estrada geral que [segue] de São Paulo [segue] {à/para a} freguesia de Nossa Senhora da Penha [de França] (RT 22, 28, 30A)30. Ainda em relação ao termo genérico, apenas um registro o indicou como ‘caminho’ (RT 42), no Tatuapé, e outro como ‘rua’ (RT 105), nas proximidades da várzea do Carmo.

A análise destes registros31 permitiu traçar, esquematicamente, os elementos máximos e mínimos deste topônimo:

elemento

geográfico {caminho / E-estrada [geral] / rua}

topônimo

propriamente dito

{[que] [vem / segue / vai] [{desta / da [mesma]} {cidade / F-freguesia [do Brás] / do Brás}] [segue] [de São Paulo] [{segue / vai}] [{à / para a}] [F-freguesia [{de Nossa Senhora / da Senhora}] da] / da}

Penha [de França]

Após apresentação dos elementos máximos da composição do topônimo, verificou- se que se trata de três os elementos mínimos: elemento geográfico + preposição indicativa de subordinação ou expressão indicativa de origem e destino + ‘Penha’. Os termos indicativos do aglomerado humano freguesia, do templo capela e, ainda, o termo determinado do orago Nossa Senhora mostram-se acessórios e não mínimo à constituição do topônimo.

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Os colchetes indicam termos não citados em todos os registros, ou seja, que não integram a composição mínima da representação. As chaves, variações, sendo que as barras separam variantes. Os termos sublinhados remetem àqueles que alternam a posição na lexia textual.

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Utilizaram-se os seguintes RTs: 2; 6A; 6B; 11; 12A; 13; 22; 26B; 28; 30A; 36; 37; 40; 42; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50; 55; 59; 62; 74; 76; 88; 94; 97; 101; 102; 103; 104; 105; 107; 115; 117; 128; 129; 130; 138A; 138B; 138C; 138D; 140’.

O designativo declarado pelos moradores da principal estrada da freguesia do Brás reflete a sua especialização para o pequeno comércio de atendimento a tropeiros e, especialmente, a romeiros.

A distribuição de aglomerados humanos se faz por grandes eixos viários, organizados a partir das necessidades das comunidades. Os sistemas de circulação “decorrem da distribuição dos núcleos, e não os antecedem”, conforme observa Petrone (1995, 140). Quanto à designação, os caminhos a recebiam não apenas pelo local para o qual seguiam ou por onde passavam, mas especialmente por aquilo que se tinha de referência principal, assim como qualquer outro elemento geográfico denominado espontaneamente. Assim, a estrada da Penha, enquanto denominada pela comunidade e tão-somente por ela, representa apenas um determinado tempo, um determinado espaço e, acima de tudo, uma determinada visão de si mesma:

Êsse caminho, recentemente construído que se denominou, indistintamente, do Tatuapé, da Conceição dos Guarulhos e de São Miguel, data de 1622, havendo entre outro, antigo, nas suas imediações, o qual, em 1623, em certo trecho, foi igualmente causa de ríspidos desaguisados. Foi depois Caminho da Penha, e, com o correr do tempo, Avenida da Intendência, Rua do Brás, Avenida Celso Garcia e Avenida Rangel Pestana.” (Sant’Anna, 1953, 490)

II. Os nomes da São Paulo Oriental do século XVI ao XIX

A cidade collocada na montanha, envolta de varzeas relvosas, tem ladeiras ingremes e ruas pessimas. É raro o minuto em que não se esbarra a gente com um burro ou com um padre.

Álvares de Azevedo