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Características e imperfeições do sistema de controle da administração brasileira

Trinta anos de controle da Administração Pública: À espera de um giro de eficiência

3. Características e imperfeições do sistema de controle da administração brasileira

A seção anterior, ao descrever em linhas gerais o sistema de controle da Administração Federal, abordou três caracte- rísticas que marcam o modelo adotado pela Constituição de 1988 e pela ordem infraconstitucional que a ela se seguiu: (i) a abertura dos tipos sancionadores; (ii) a ênfase na punição de ilícitos em detrimento de sua prevenção e do aprimoramento da atividade administrativo; e (iii) a sobreposição e a ausência de coordenação e definição clara de competências entre os órgãos de controle.

A combinação dessas três características pode gerar uma sé- rie de distorções no sistema de controle público brasileiro, com decisões contraditórias emanadas de controladores distintos, os quais passam a disputar protagonismo e quem dá a última pa- lavra. A abertura dos tipos sancionadores contribui ainda mais para o agravamento deste quadro, na medida em que favorece o voluntarismo destes órgãos, podendo cada dar uma interpreta- ção diversa à norma sancionadora; o MP pode entender que uma determinada conduta configura improbidade, enquanto o TCU entende que o mesmo comportamento não representa ilegalida- de – e vice-versa. Muito embora estes não façam parte do escopo do presente trabalho, pode-se destacar que o problema se torna ainda mais grave se levarmos em conta, ainda, a existência de controladores em outras esferas federativas.

Toda essa volatilidade traz uma insegurança jurídica alta- mente indesejável para a ordem jurídica brasileira e contribui para afastar das fileiras da Administração Pública gestores que poderiam atuar de forma bem-intencionada, porém têm medo de se submeter ao decisionismo dos órgãos de controle. Surge,

nesse contexto, o “direito administrativo do medo”37.

No mesmo sentido, Floriano de Azevedo Marques Neto e Juliana Bonacorsi de Palma identificam sete impasses do controle da Admi- nistração no Brasil, a saber: (i) captura das competências públicas, com deslocamento de competências administrativas para órgãos e entes com maior prestígio, mas não raro desprovidos de capacidade institucional para lidar com a gestão pública; (ii) neopatrimonialismo, caracterizado por um controle exercido de acordo com as predile- ções pessoais e a orientação jurídica do controlador; (iii) desvirtua- mento da atividade-fim, na medida em que os gestores, temerosos de sanções, passam a priorizar o atendimento de demandas dos con- troladores, em detrimento da execução da atividade-fim da Admi- nistração; (iv) limitação dos reais efeitos do controle no combate à corrupção; (v) gestão de defesa, isto é, o administrador de boa-fé torna-se refém dos órgãos de controle; (vi) competição institucional

de órgãos de controle entre si; e (vii) decisões instáveis e mutáveis38.

O deslocamento de competências administrativas para as ins- tâncias de controle é ocasionado pela falta de confiança em algumas instituições e sobreposição de confiança em outras, o que ocasiona a consequente captura de competência públicas para essas insti- tuições. A título exemplificativo, se ilustra que o Ministério Público é a terceira instituição mais confiável do país e o Governo Federal

37 Expressão que vem, nos últimos anos, permeando colunas jurídicas e, mais recentemente, artigos científicos: Vide: RIBEIRO, Leonardo Coelho. Na dúvida, dorme tranquilo quem

indefere e o Direito Administrativo como caixa de ferramentas. Disponível em: <http://www.

direitodoestado.com.br/colunistas/leonardo-coelho-ribeiro/na-duvida-dorme-tranquilo- quem-indefere-e-o-direito-administrativo-como-caixa-de-ferramentas>. Acesso em: 30 set. 2018. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/ fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia- pelo-controle>. Acesso em: 30 set. 2018. CAMPANA, Priscilla de Souza Pestana. A cultura do medo na administração pública e a ineficiência gerada pelo atual sistema de controle. Revista

de Direito Viçosa. V. 9. N. 01/2017. P. 189-216.

38 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Os sete impasses do controle da Administração Pública no Brasil. In: PEREZ, Marcos Augusto; SOUZA, Rodrigo Pagani de (Coord.). Controle da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

a terceira menos confiável39. Deste modo, os órgãos de controle,

como o próprio Ministério Público, militam no sentido de assumir competências que seriam constitucionalmente reservadas a órgãos e entidades do Poder Executivo, como, por exemplo, a regulação de setores técnicos da economia por meio de agências reguladoras, as

quais têm sido objeto de profundas ingerências por parte do TCU40.

Por sua vez, o neopatrimonialismo caracteriza-se pela orienta- ção de controle por meio de predileções pessoais e orientação ju- rídica do funcionário controlador. Trata-se, aqui, do fenômeno do voluntarismo e do decisionismo do controlador – o qual, em última instância, pode ocasionar episódios de abuso de poder, sobretudo caso de decisões e determinações oriundas de um único membro do órgão de controle. As deliberações em órgãos colegiados ten- dem a reduzir os espaços para esse subjetivismo, evitando o exer- cício de “ilhas de poder” pela pessoa física na função de controle.

Já a inversão da atividade-fim (terceiro impasse) ocorre quan- do, em razão do expressivo poder do controlador e a inseguridade com sanções diuturnamente aplicadas aos gestores, o temor passa a subverter a prioridade das pautas. O administrador público, em vez que se dedicar à consecução das políticas públicas definidas em seu plano de governo, opta por atender, quase que exclusi- vamente, às demandas e determinações oriundas de controlado- ras. Neste cenário, constatam-se dois efeitos comportamentais do gestor: no primeiro, o gestor pode ser estimulado a uma atuação ineficiente, de modo a esperar um posicionamento do controlador para tão-somente apresentar uma versão final da decisão; e, em segundo lugar, até por insegurança e receio, o gestor passa a levar a decisão administrativa para análise do controlador. A descarac- terização da discricionariedade do gestor fica latente e as priorida- des passam a ser as demandas do controlador.

O quarto impasse diz respeito a uma dúvida sobre se, de fato, os mecanismos da cultura de controle são realmente eficazes na prática ao combate à corrupção. Partindo de uma ideia geral de que o

39 Cf. Relatório ICJ Brasil (1º a 4º Trimestre de 2014), ano 6, p. 24.

40 Vide: Entrevista concedida pelo Prof. Carlos Ari Sundfeld à Revista de Direito Administrativo e

exercício da discricionariedade administrativa pelo gestor ocasiona atos de corrupção, a cultura do controle chega a: (i) quanto a maior a margem de liberdade conferida aos gestores públicos para atuar (discricionariedade), maior o risco de corrupção; (ii) quanto maior a incidência de controles, maior a certeza de que a administração atue dentro dos quadrantes da legalidade; (iii) instituições de contro- le fortes, dotadas de irrestrita independência funcional e avantajados recursos, barrariam a corrupção; (iv) a corrupção na máquina pública seria contida por meio de punições exemplares, as quais constrange- riam novas práticas delitivas e infracionais públicas.

Entretanto, este entendimento excessivamente otimista em re- lação às potencialidades do controle não considera as ineficiências e limitações do próprio modelo, algumas, inclusive, já apontadas aqui. Não são levados em conta, por exemplo, os riscos que emanam da insegurança jurídica gerada pela sobreposição de controladores nem, tampouco, os custos econômicos gerados pelo atendimento às formulações dos controladoras – inclusive no que se refere à pro- dução de novos incentivos para a corrupção, dadas as dificuldades

de se atender, pelos veículos hodiernos, a essas determinações41.

Excesso de controle pode ser tão prejudicial para o combate à cor- rupção e à ineficiência administrativa quanto a sua ausência – reali-

dade ignorada pelos entusiastas acríticos do modelo42.

A quinta premissa apontada por Floriano Neto e Juliana de Pal- ma trata do exercício da gestão pública de defesa em detrimento de uma gestão pública proativa. Este comportamento, aqui já referido por meio da expressão “direito administrativo do medo”, ocorreria devido ao temor dos gestores de exercerem a discricionariedade, ainda que de boa-fé, e, eventualmente, esbarrarem em um entendi-

41 No mesmo sentido: “É certo que as irregularidades praticadas no âmbito do serviço público têm um elevado custo social e material. Entretanto, também as políticas voltadas para a redução dessas irregularidades têm seu custo. E esse pode ser tanto direto (representado pelas estruturas específicas de controle, em termos de recursos humanos e materiais) como indireto (traduzido, de modo abrangente, pela perda de eficiência organizacional, ou, em outras palavras, pelo aumento da burocracia). Com efeito, um dos principais instigadores da criação de rotinas excessivas na administração pública tem sido, precisamente, o desejo de controlar os desvios. Entretanto, paradoxalmente, é consenso entre os especialistas que o excesso de burocracia é um importante fator a estimular – e não a inibir – a ocorrência de atos de corrupção”. SANTOS, Homero. O controle da Administração Pública. Revista TCU. p. 20. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/998/1072>. Acesso em: 30 set. 2018.

42 Vide, por exemplo, MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

mento do controlador que penalize a gestão pública proativa e cria- tiva com responsabilização pessoal. Assim, os gestores ficam retraí- dos e acabam dedicando mais tempo a se proteger do controlador do que a buscar soluções criativas ao protagonismo dos problemas públicos que merecem a sua atenção.

Os autores prosseguem tratando da competição institucional pela concentração do poder de controle. Nesta sexta premissa, discute-se a atuação de órgãos de controle que, em vez de bus- car cooperação para atender a um fim comum, muitas vezes com- petem entre si para manutenção ou aumento de competência de controle, o que denota uma falta de maturidade institucional dos controladores para cooperar.

Essa sobreposição de controle, como já pontuado, contribui para a insegurança jurídica do modelo de controle desenhado pela Constituinte de 1988, a qual é agravada pelo sétimo e último impasse versado por Neto e Palma: a instabilidade e a mutabili- dade das decisões dos controladores. A manifestação mais ex- pressiva deste diagnóstico se consubstancia principalmente em decisões liminares que analisam de forma sumária – e passível de reforma a qualquer tempo – o risco do dano e a probabilidade do direito, podendo suspender a tomada de decisões administrati- vas complexas que demandam pronta implementação.

Medidas de natureza cautelar podem acabar produzindo mais problemas do que pretendiam evitar. Não raro determinam a suspensão de procedimentos licitatórios e contratos adminis- trativos e, com isso, geram graves riscos de descontinuidade de serviços públicos. Essas determinações produzem, ainda, uma série de custos econômicos relativos à paralisação dos traba- lhos, tanto no que tange à deterioração de bens e equipamentos quanto no que se refere à necessidade de celebração de contra-

tos emergenciais, frequentemente mais caros43, a fim de evitar a

descontinuidade de serviços essenciais.

43 De acordo com o art. 24, IV da Lei nº 8.666/93, a contratação emergencial por dispensa de licitação somente pode perdurar por 180 (cento e oitenta) dias, sem possibilidade de contratação. O prazo mais curto faz com que os contratados apresentem preços mais elevados do que poderiam apresentar no caso de contratações mais longas. Além disso, o contratado, ao apresentar sua proposta de preços, leva em conta que a Administração se encontra em situação de urgência e, portanto, é possível que se disponha a desembolsar um valor mais alto para evitar a descontinuidade de serviços públicos essenciais.

Os impasses do controle público apresentados pelos auto- res ilustram exatamente o argumento aqui trazido de que, após trinta anos de vigência da Carta de 1988, o atual cenário é de evidente expansão e fortalecimento dos órgãos de controle. Esse modelo, contudo, apresenta vantagens e desvantagens. Se, de um lado, propiciou avanços no combate à corrupção e no fortalecimento das instituições democráticas, por outro, ainda há muitas imperfeições a serem equacionadas. A próxima seção pretende trazer algumas propostas para a sua mitigação.