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5. Tarefas Descritiva e Interpretativa

5.1 Categoria Corpo-forma

5.1.2 Categoria Corpo-forma para o AJPF

Ao longo do tempo sempre se reflectiu sobre a relação que se estabelece entre um conteúdo estético e a sua expressão, sendo que, durante um longo período, esta se identificou pela forma (Mora, 1991). Porém, afirmou- se posteriormente que “a expressão é sempre de índole subjectiva, estando dependente da experiência estética e das suas inúmeras variações” (ibid., p. 149).

Não esquecendo a sua condição corpórea, evidenciada numa forma diferente de corpo, que diverge das formas habituais (trata-se de um corpo que, por exemplo, não acede autonomamente à posição vertical), mas ao mesmo tempo encarando-a como fazendo parte da “normalidade”, o AJPF afirma: “Nunca rejeitei o meu corpo (…) eu gosto, cuido-me, dou importância ao meu corpo. (…) Eu sou como sou e gosto. Valorizo-me mais da cinta para cima, que é onde eu consigo fazer mais alguma coisa. (…) O corpo da cinta para cima está mais desenvolvido, é mais útil.”

Julgamos estar aqui presente a ideia de movimento e a importância que este assume na concretização da vida e da experiência humana. Ou melhor, aqui o movimento parece despontar como a própria vida, como o elemento fundamental que permite que tudo aconteça e que o corpo se realize. Este corpo da cinta para cima, entendido como a forma “livre” do seu corpo, aparentemente separado do corpo da cinta para baixo, percebido como a sua forma “fixa”, é um corpo “comunicante”, é um corpo que se projecta para a interacção e para a concretização. Considerando as palavras do AJPF, este corpo parece ser o (seu) corpo do desporto, o corpo ideal, que simplesmente funciona.

Para Matos (2006) o desporto é principalmente corpo e movimento, sendo que para Cunha e Silva (1999, p. 62) “desporto e motricidade implicam- se numa dependência mútua”. Sem motricidade, de facto, não há desporto (Sérgio, 2003).

Deste modo, o corpo aparentemente fragmentado do AJPF, e que se converte em corpo unitário pela comunicação estabelecida entre as suas “duas partes”, cria uma das maneiras possíveis de ter acesso ao mundo do desporto, indo ao encontro do pensamento de Nóbrega (2003), para quem o corpo é entendido como uma comunicação gestual, sendo a experiência estética uma forma de ampliar essa mesma comunicação.

De acordo com a opinião de AJPF pensamos ser possível no desporto a existência de múltiplas experiências estéticas, que variam consoante as suas formas de expressão. Por isso, a instalação da diferença exteriorizada pelos corpos em movimento, mais do que atenuar, engrandece e amplifica as

assumisse como o campo da diversidade, alojando no seu interior a pluralidade da diferença.

Neste contexto, mais do que em qualquer outro, entendemos que o corpo é o fim em si mesmo, corpo que parece cumprir a existência na sua plenitude, encontrando no desporto a forma de revelar a sua multifuncionalidade.

Ampliando os seus graus de liberdade está o que entendemos ser a outra parte do seu corpo: “O meu corpo também é a cadeira de rodas, sem a

cadeira não há corpo. A cadeira é o meu corpo, é um objecto, mas é um corpo. Trocar de cadeira é a sensação de deixar um corpo velho e vir um corpo novo.”

Partindo destas afirmações, o AJPF parece incorporar a cadeira de rodas na forma do seu corpo. Ao seu corpo ele associa outro, ele avoluma-se, chegando ao ponto de serem apenas um só. Assim, este corpo, que de longe a longe se renova, que melhora a sua forma na medida em que melhor a adequa à função, vai ter sempre novas possibilidades, vai ter sempre novas capacidades que lhe permitirão atingir o que à partida parecia inatingível. Mesmo as experiências que teve anteriormente serão sempre redescobertas e vividas de outra forma: “A cadeira que provavelmente virá já tem outras funções: já

tem o encosto com o formato do meu corpo. De modo que a cadeira tem que estar adaptada ao meu corpo. Não sou eu que tenho que estar adaptado à cadeira.”

Do mesmo modo que Merleau-Ponty (1999, p. 211) se refere à bengala, “como um apêndice e um acréscimo do corpo”, a cadeira de rodas surge como uma prótese e como uma extensão da síntese corporal. Com esta ampliação, o corpo, independentemente da sua condição primeira, anuncia a sua autonomia, com uma expressividade e um simbolismo únicos. O AJPF está assim em condições de cumprir o seu corpo, já que “no desporto o corpo é um libertador de mensagens aprisionadas através da semântica do gesto” (Cunha e Silva, 1997b, p. 112).

Para o AJPF todos os corpos têm valor estético. Por isso, a forma do seu corpo (biológico) não parece influenciar a apreciação estética que os outros poderão fazer: “O meu corpo é normal, tem braços, tem pernas graças a

Deus, tem orelhas, tem nariz, tem boca, tem olhos e tudo funciona. O factor da diferença de valor estético é que tu andas e eu não. Podes correr e eu não. Quem

nasce assim não nota muito, porquê? Porque eu não sei o que é ser dito “normal”. Agora de certeza absoluta que se for uma pessoa que caminhou, correu, saltou, e que depois fica como eu, o valor estético que dará ao seu corpo será completamente diferente. Eu sou assim e dou valor àquilo que sou. (…) Mas o meu corpo é normal, o meu corpo é de uma pessoa normal.” Aqui o AJPF assume uma vez mais a normalidade do seu corpo, realçando o valor estético do movimento, parecendo este ser imprescindível para a existência daquele. Para além disso, realça a diferença de entendimento sobre esta temática, que poderá estar associada à pessoa que nasce portadora de uma deficiência, já que esta não terá a oportunidade de viver um outro corpo e com outro corpo. Assim na sua perspectiva: “ (…) a morfologia corporal não condiciona a apreciação estética. Penso

que isto funciona da mesma maneira se tivéssemos uma pessoa magra e outra gorda. Eu, por exemplo, dou o mesmo valor estético a uma pessoa mais forte ou mais magra. Eu olho mais para dentro da pessoa, não olho muito para fora. Olho mais para dentro. (…) Mas uma cadeira de rodas se calhar influencia.”

O AJPF reforça uma vez mais a ideia de que todas as formas de corpo são passíveis de serem contempladas do ponto de vista estético, dando o exemplo de duas pessoas com dois corpos distintos, um magro e um gordo. Daqui podemos inferir um modo de pensar que remete para a Ética e para os valores morais. Na perspectiva de Bento (1990), a maneira como as pessoas lidam consigo e com o seu corpo tem algo a ver com a moral. Para o autor, o termo “Ética” é difícil de apreender, porém, todos parecem ter alguma sensibilidade para o seu conteúdo – “um ponto de referência para definir aquilo que é bom ou mau, correcto ou falso, positivo ou negativo” – contribuindo para que a vida humana resulte no plano individual e social (id., p. 37).

Mesmo considerando a cadeira de rodas uma parte integrante do seu corpo, o AJPF é da opinião que ela poderá, para um observador, condicionar a apreciação de valor estético do seu corpo, talvez por ser um objecto externo e um acrescento visível ao corpo humano, já que o visual funciona como uma segunda natureza do corpo (Ferreira, 2003).

Outra das ideias que na nossa opinião parecem emergir do discurso do AJPF diz respeito à separação das noções do “ser” e do “ter” corpo: “Eu acho

me ao corpo objecto. Apenas lhe falta uma parte. (…) Não é deficiente. É uma pessoa com um corpo deficiente.” De acordo com Sobral (1990), a corporalidade manifesta a unidade do “ser” e do “ter” corpo. No entanto, recordamos que para alguns autores, como Gabriel Marcel (s.d., cit. por Gervilla, 2000), mais do que termos corpo, somos corpo, e a melhor forma de o conhecer, é vivê-lo e experimentá-lo.