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Meu interesse pela migração de brasileiros para o Suriname começou em uma viagem de férias a esse país, em 200726. Além de um período de lazer, foi um período de estranhamento e de descoberta do mundo muçulmano surinamês e da diversidade étnica e cultural do país, pois eu acompanhava John Araujo, que na ocasião realizava sua pesquisa de campo de mestrado, no qual abordou o islamismo nesse território27. Com o objetivo de ajudá-lo, sempre que surgiam

oportunidades eu circulava pelos espaços religiosos muçulmanos, sobretudo javaneses, tirando fotos das cerimônias nas quais apenas a presença feminina era permitida.

A sociedade surinamesa é bastante complexa e muito distante do imaginário brasileiro, e foi justamente o estranhamento desse primeiro contato que me impulsionou a buscar compreender a sua construção, marcada pela migração e pela diversidade étnica. Na época, o pouco que sabia sobre o Suriname vinha de informações veiculadas pelos meios de comunicação brasileiros: o contrabando de armas, o tráfico de drogas, a migração ilegal, a exploração de garimpos, a prostituição de mulheres brasileiras e o tráfico de mulheres brasileiras para lá — geralmente informações negativas, muitas vezes relacionadas a crimes e violação de direitos humanos, não muito diferentes das que publica a imprensa internacional28. Em Paramaribo, inicialmente ficamos em um hotel, no centro, cujo preço (cobrado em euros ou em dólares, o que é comum ali) era alto para nós, mesmo com o desconto ofertado pelo proprietário29. Procurando uma alternativa de hospedagem, pegamos um táxi, e seu motorista, um surinamês casado com uma brasileira (vendedora em uma loja de roupas), nos falou de dona Milena, também brasileira, que alugava quartos para brasileiros que trabalhavam

26 Apesar da proximidade geográfica com o Brasil, o Suriname não costuma atrair turistas brasileiros que viajam

pela América do Sul. No Suriname, dificilmente encontraremos um brasileiro que não esteja trabalhando ou em busca de trabalho, principalmente no garimpo.

27 ARAUJO, John da Silva. O “Oriente” no “Ocidente”: observando o islã no Suriname. 170p. Dissertação

(Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2009.

28 Como observou Richard Price (Les premiers temps: la conception de l’histoire des marrons saamaka. La Roque

d'Anthéron: Vents d’ailleurs, 2013, p.8), “Les rapports sur la situation au Suriname dans la presse internationale parlent régulièrement d’une ‘narcocratie’, où des trafiquants, de connivence avec l’armée, traversent la forêt en avion pour échanger armes et drogue avec des groupes de guérilla colombiens, puis transbordent la drogue en Europe”.

29 Apaixonado pelo Brasil, ele falava português muito bem, algo comum no Suriname, pois poucos brasileiros

falam o holandês. Apenas os brasileiros mais antigos no país ou mulheres que casaram com surinameses, que conviveram ou convivem com famílias surinamesas aprenderam a se comunicar através do Sranantongo (língua crioula popularmente chamada de taki-taki, inclusive pelos brasileiros), contudo, mesmo entre estes, poucos o conhecem bem.

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no garimpo em visita temporária à cidade (para fazer compras ou passear)30, e em sua casa alugamos um quarto.

Dona Milena morava no pavimento superior31 de uma casa grande, de madeira, nas proximidades do mercado Combe Slijtej32 e do Klein Belém33 — este, carinhosamente chamado de Belenzinho pelos brasileiros, é o bairro de maior concentração deles em Paramaribo. Com ela moravam o filho de 20 anos (trabalhador da construção civil) e uma garotinha de 4, da qual ela cuidava enquanto a mãe estava no garimpo. Sua casa tinha sala, cinco quartos (dois de uso da família e os demais para alugar), um banheiro e cozinha, onde as pessoas podiam preparar sua própria comida, mas, na maioria das vezes, utilizada por ela, que servia refeições no local; além da sala e da cozinha, o outro espaço coletivo era uma varanda grande, na qual as pessoas costumavam se sentar para conversar e fugir do calor que fazia dentro da casa. Na sala, uma televisão estava o tempo todo ligada, sintonizada na Rede Globo, e, no horário do Jornal Nacional (que começa às 20h30m) e das telenovelas34, tinha sempre público assíduo, fosse morador, fossem os amigos que frequentavam a casa.

Dona Milena migrou para trabalhar como prostituta em um clube de Paramaribo na década de 1980, aos 25 anos, e nele conheceu seu ex-marido, um surinamês que a ajudou a pagar sua dívida com o clube. Mulher alegre e frequentadora assídua de cultos da Igreja Evangélica Deus é Amor, estava sempre com roupas comportadas, que cobriam todo o corpo e não o marcavam. Um dia, umas duas semanas depois que eu estava hospedada em sua casa, ela me falou que iria se “arrumar” porque tinha um encontro com alguém, e complementou: “Agora eu tenho um fixo; ele é casado, mas é muito bom pra mim: paga minha conta de luz todo mês e ainda me ajuda quando preciso”.

Fiquei um pouco surpresa com a sua confidência, e com naturalidade ela continuou explicando que no Suriname “não dá pra ficar sem homem”, pois as despesas são altas, e começou a falar sobre a migração de brasileiras para prostituição em clubes de Paramaribo; dos

30 Ela alugava quartos sobretudo para garimpeiros que iam a Paramaribo uma ou duas vezes por mês (às vezes

nem iam), passavam alguns dias e retornavam para o garimpo, mas deixavam ali parte de seus objetos pessoais e o aluguel pago (moravam/circulavam no garimpo, e o pagamento do aluguel era garantia de chegar à cidade e ter onde ficar).

31 No térreo morava uma família surinamesa de origem hindustana.

32 No qual é possível verificar a presença constante de brasileiros, muitos comprando grande quantidade de coisas

para levar para as áreas de garimpo do Suriname ou da Guiana Francesa.

33 Uma referência à capital paraense, Belém, de onde parte avião do Brasil para Paramaribo, e de onde são

provenientes muitas mulheres brasileiras que estão no Suriname. Lugar de parada obrigatória para os brasileiros de passagem por Paramaribo e referência em todo o país para encontrá-los; ali circulam as informações sobre os garimpos.

34 Também os programas do tipo “policial”, que mostram os delitos acontecidos diariamente e a ação da polícia,

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casamentos bem-sucedidos e dos que foram breves entre brasileiras e surinameses; das mulheres que trabalhavam no garimpo (cozinheiras, sacoleiras, etc.) e das dificuldades de se conseguir um bom salário na capital surinamesa — sempre dando a entender que não atuava mais no mercado do sexo, que tinha alguém “fixo”, em alusão bem-humorada à telenovela Paraíso Tropical35, que a Rede Globo transmitia na época, no Brasil, em que um dos temas

abordados era a prostituição no Rio de Janeiro. Uma das personagens, a prostituta Bebel, que trabalhava no calçadão de Copacabana, dizia que tinha conseguido um amante “fixo”36, que

usava “cueca maneira” (um jargão que caiu no gosto popular e era motivo de brincadeiras), querendo dizer com isso que estava bem, tinha um cliente rico que não pagava apenas pela relação sexual, mas a levava para jantar e lhe dava presentes, o que significava que não precisava ir com frequência trabalhar no calçadão. No Suriname a novela era seguida pelos brasileiros que possuíam antena parabólica, e se transformou em momento de descontração na sala da casa de dona Milena, que era parada obrigatória para aqueles que acompanhavam o desenrolar da trama.

No final do dia, dona Milena saiu com algumas amigas brasileiras que vieram do garimpo, que também haviam atuado na prostituição, primeiro em clubes e depois em cabarés. Chamou-me a atenção a mudança no seu visual: nada das roupas sérias de evangélica de antes; agora usava calça jeans de lycra, blusa justa e decotada, maquiagem, tinha o cabelo solto e as unhas pintadas, uma transformação completa, em um jogo performático que a distanciava da “imagem de evangélica” — e todas se vestiam no mesmo estilo37. Até esse momento meus

olhos estavam voltados para o universo cultural e religioso surinamês. Claro que eu conhecia histórias sobre a prostituição de brasileiras naquele país através da imprensa (geralmente associada ao tráfico de mulheres), mas não imaginava que iria me deparar com o tema, e comecei a ficar mais atenta às histórias relacionadas à migração das brasileiras. Outra coisa que instigou minha curiosidade na sua casa foi a expressão “piseiro de brasileiro”: nas vésperas dos finais de semana, sempre a escutava, e quando perguntava do que se tratava, a resposta que

35 Escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, e dirigida por Denis Carvalho, Paraíso Tropical foi exibida no

período de 5 de março a 28 de setembro de 2007, às 21h — considerado o “horário nobre” na televisão brasileira.

36 O mau caráter Olavo, que de cliente casual passou a cliente fixo (amante). Diferente da novela, em que a

personagem continuava atuando na prostituição, mesmo que com menos frequência, e que o cliente continuava cliente, as brasileiras no Suriname empregavam o termo “fixo” para se referir a relações amorosas que não eram consideradas como prostituição, mas uma relação afetiva que comportava a “ajuda” do parceiro, como veremos na terceira parte da tese.

37 Ao retornar ao Brasil, percebi que não se tratava de um figurino ligado à prostituição (como pensei em

Paramaribo), pois jovens da periferia se vestiam da mesma forma, no verão. São roupas que lembram as que as mulheres usam nos bailes funk, no Rio de Janeiro, ou nas festas de aparelhagem, em Belém. Em qualquer lugar de Paramaribo, as brasileiras, quando se diziam “arrumadas”, vestiam-se dessa forma.

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obtinha é que eram festas direcionadas ao público brasileiro: “diversão pra noite inteira, música, dança, bebida e mulher” — e aconteciam no garimpo ou em Paramaribo.

Durante essa estada em Paramaribo, conversei com vários brasileiros que circulavam nessa cidade, e muitos costumavam dizer “Eu ando pelo Suriname”, referindo-se às idas e vindas entre o Brasil e o Suriname — isso porque se esqueciam de mencionar a Guiana Francesa, pois nesta eles circulavam (e os brasileiros circulam até hoje) pelas áreas de garimpo clandestinas, onde a noção de território limita-se ao espaço de garimpagem. Mas, de modo geral, falei com pessoas que estavam em situação administrativa irregular ou viviam com documentos de turista (embora morassem no país havia anos), e que iam à casa de dona Milena, principalmente com mulheres do Pará que migraram para trabalhar como prostitutas em clubes de Paramaribo e que, naquele momento, estavam trabalhando em garimpos localizados na Amazônia surinamesa como sacoleiras ou cozinheiras.

Voltei ao Brasil com várias interrogações sobre a forma de migração de brasileiras e o universo do mercado do sexo no Suriname. Naquele momento pensei em escrever um artigo sobre prostituição no país, o que acabou não acontecendo, mas a questão da prostituição não foi esquecida e comecei a ler sobre as trabalhadoras do sexo brasileiras no exterior e, principalmente, no Suriname38.

No projeto de pesquisa do doutorado a intenção era abordar o tráfico internacional de seres humanos, projeto que, de certa maneira, acabou tomando outro formato em razão da realidade encontrada no Suriname durante a realização da pesquisa de campo em 2011 e 2012, pois nela o que apareciam eram a migração relacionada à prostituição de mulheres (não necessariamente TSH) oriundas principalmente da região amazônica e o fato de que a mobilidade dessas mulheres ia além da travessia da fronteira geográfica: elas circulavam constantemente nos espaços físicos e simbólicos, de uma ocupação laboral a outra, contornando um emaranhado de relações sociais e papéis de gênero. Isso me levou a descentralizar do TSH o foco da pesquisa, para compreender os processos e dinâmicas de mobilidade de mulheres no mercado do sexo.

A migração internacional demarca a formação histórica do Suriname, e compreender a circulação de brasileiras/os por esse país requereu uma pesquisa de campo também em

38 Um tema novo para mim, pois as pesquisas que havia realizado na pós-graduação estavam relacionadas com a

polícia: na especialização pesquisei sobre a formação da Polícia Militar no Pará, e no mestrado, o controle externo das polícias Militar e Civil. Ver, respectivamente, ARAUJO, Osvaldina dos Santos. O educador e a formação do

policial militar no CFAP. 122p. Monografia (Especialização em Gestão de Sistemas Educacionais) - Universidade

Federal do Pará, Belém, 2002; e ARAUJO, Osvaldina dos Santos. O controle da atividade policial: um olhar sobre

a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública do Estado do Pará. 179p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) -

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movimento, da mesma maneira que as/os brasileiras/os circulam geograficamente em seu território: em constante movimento entre o urbano e o interior, entre o Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa, observando os circuitos que levam a relações próximas ou distantes com os seus diferentes grupos étnicos e culturais.