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1.1 NATUREZA DA EXPERTISE

1.1.2 Chunking e automaticidade

Descritas as características propostas por Chi (2006), dois mecanismos cognitivos se

destacam na diferenciação entre experts e não experts e serão descritos a seguir: Chunking e automaticidade.

A compreensão da natureza da expertise passa por uma tentativa de avaliar psicologicamente indivíduos que desempenham performances em nível de expert em determinado domínio. Por exemplo: quais os mecanismos responsáveis pelo fato de programadores experts recordarem-se de uma quantidade muito maior de informações acerca de um software, mesmo depois de uma curta exposição, ou pelo fato de experts no domínio de xadrez serem capazes de seguir vários jogos simultaneamente e poderem se lembrar dos posicionamentos de todas as peças com altos níveis de precisão? Seriam esses indivíduos dotados de memórias ou de estruturas cerebrais superiores aos não experts? As pesquisas têm apontado que não. As hipóteses para a explicação desse enunciado parecem residir na maneira em que a memória desses indivíduos está organizada no que diz respeito à representações de problemas e situações internas aos domínios de sua expertise (Hoffman, 1996; Ericsson, 2014;

Ericsson & Pool, 2016). Um dos mecanismos responsáveis, então, pela supremacia da performance dos experts é a “representação mental”. De acordo com Ericsson e Pool (2016), uma representação mental é uma estrutura representada mentalmente que corresponde à objetos, ideias, informações concretas ou abstratas. Assim, o conhecimento dos experts se diferencia do conhecimento dos “novatos” em sua organização, extensão e também por possuírem uma melhor e mais detalhada representação mental das tarefas e do domínio em que atuam, o que faz com que conceitos estejam inter-relacionados de maneira mais significativa e as memórias sejam contextuais e mais acessíveis (Hoffman, 1996; Ericsson & Pool, 2016).

Um outro mecanismo ainda mais específico do que o apresentado acima e também apontado como um possível desencadeador de uma melhor representação mental são os chunks.

Segundo Feltovich et al. (2006, p.49), um chunk é uma estrutura perceptual ou de memória que liga um número de unidades mais elementares a uma organização maior, como, por exemplo, a junção de letras que formam uma palavra (as unidades “c”, “a”, “r”, “r” e “o” tornam-se uma unidade na palavra “carro”). Pesquisas iniciais acerca da superioridade da memorização dos experts buscaram mostrar que essa característica se ligava a uma memória de curto prazo mais desenvolvida, o que faria com que os experts pudessem se lembrar melhor em qualquer tipo de situação. Porém, pesquisas subsequentes apontaram o contrário: por exemplo, a memorização dos experts em xadrez para posições aleatórias das peças no tabuleiro é muito menos precisa do

que a memorização desses mesmos músicos quando se trata de situações reais de jogos (Gobet &

Simon, 1996). Além disso, a memorização para peças aleatórias não aponta superioridade de performance para os experts em relação aos não experts.

Assim, Ericsson e Kintsch (1995) alegam que a experiência no domínio não faz com que a habilidade de memorização de curto prazo se desenvolva mais nos experts, mas sim com que esses indivíduos desenvolvam ferramentas que permitem a codificação de posições (chunks) do jogo na memória de longo prazo. Esse armazenamento de grandes quantidades de informação na memória de longo prazo permite ao expert o acesso à informações relevantes sem a necessidade de mantê-las ativamente na memória de curto prazo, que possui uma capacidade limitada (Ericsson, 2006). É também a memória de longo prazo que possibilita ao expert antecipar potenciais contextos futuros e permite a eles que recordem posições do jogo após interrupções da memória de curto prazo, o que faz com que eles apresentem também maior reconhecimento para novos materiais. Isso possibilita a realização de inferências através de menores quantidades de informações parciais e promove uma maior capacidade de integração desses novos materiais dentro de um quadro coerente e interconectado.

Simon e Chase (1973) explicam que os enxadristas experts adquiriram cerca de 50.000 chunks para poderem se recordar de movimentos apropriados para o posicionamento atual em um jogo em uma situação real. Entretanto, alguns estudos apontam que é o tamanho do chunk que é maior para os experts, não necessariamente a quantidade. Assim, um principiante de xadrez vê uma série de peças independentes enquanto um expert reconhece uma grande quantidade de unidades maiores. Os “novatos” não têm uma exposição suficiente para as configurações do jogo terem desenvolvido muitos desses tipos de padrões. Então, embora tanto o expert quanto o noviço tenham as mesmas limitações de memória, o especialista vê o mundo em unidades maiores e mais diversas (Feltovich et al., 2006).

Segundo os autores, assim como a memória dos experts não demonstra superioridade em relação à memória dos "novatos", o mesmo parece acontecer com tentativas de mensuração generalista da inteligência. Isso exemplifica a ineficiência dos testes de QI para predição da expertise e evidencia o quanto as habilidades desenvolvidas pelos experts nas mais diversas atividades são restritas ao domínio.

Feltovich et al. (2006) sustentam que pesquisas recentes que visavam relacionar uma possível relação entre QI e expertise com fãs de futebol e beisebol, mostraram que a

compreensão e a memória para textos que descrevem jogos desses esportes é mais influenciada pelo conhecimento relevante ao domínio desses esportes do que por pontuações de QI. Os resultados de um estudo que visava relacionar a expertise de apostadores de corridas de cavalos sugeriram também que o raciocínio dos experts no domínio em questão é complexo, mas não está correlacionado com o QI geral. Além disso, o estudo indicou que a forma com que estes apostadores raciocinam relaciona-se com habilidades que parecem ser amplamente, se não inteiramente, diferentes das habilidades que os testes de inteligência padrão medem.

Essas descobertas acerca da contextualização da memória e do desempenho das performances convergem para a afirmação de Chi (2006) que diz que expertise e inteligência são termos distintos e não estão necessariamente relacionados. Segundo a autora, testes de inteligência tradicionais prestam-se de maneira mais eficaz para avaliar e prever apenas desempenhos em contextos escolares.

Em relação à automaticidade, Feltovich et al. (2006), asseveram que uma das grandes limitações dos “novatos” é a incapacidade de acesso ao conhecimento em situações relevantes.

Em uma pesquisa acerca da aquisição da expertise para a resolução de problemas via estratégias para montagem de quebra-cabeças, Wismath et al. (2015) demonstram que o desenvolvimento de uma compreensão mais profunda naquele domínio é, em certa medida, dependente de um processo complexo, mas que uma vez que os conceitos ultrapassam uma espécie de limiar, torna-se irreversível. Relatos de alguns dos participantes dessa pesquisa que passaram por mudanças de estratégias propostas pelos autores durante o estudo, apontaram para o fato de que a construção de um caminho para a realização das atividades propostas por meio de ideias complexas mostra-se mais importante do que encontrar as “respostas corretas” dos problemas ou quebra-cabeças.

Em outras palavras, os resultados obtidos não parecem ser suficientes para comprovação da expertise dos participantes, mas sim uma mudança na forma de pensar e agir percebida por eles no que se refere às estratégias de resolução de problemas.

Em outro estudo relacionado à mensuração de aspectos cognitivos envolvidos no desenvolvimento da expertise, Brady (1970) demonstra a possibilidade de adquirir “ouvido absoluto” por meio de treinamento e relata que, uma vez desenvolvida, a tarefa de identificar notas musicais exigia pouco esforço e não necessitava mais de prática. Segundo Feltovich et al.

(2006), a aquisição da expertise é um processo de desenvolvimento a longo prazo, resultante de ricas experiências e extensa prática. Os autores atestam que a criação de chunks requer

independência que limita o processamento da informação e que a aquisição da expertise se relaciona com o desenvolvimento de representações integradas de conhecimento e coordenação de tarefas inicialmente desvinculadas, que dificultam o processamento de informações. Portanto, pode-se inferir que a aquisição da expertise em qualquer domínio necessita que o indivíduo crie automaticidade.

De acordo com Feltovich et al., (2006, p.53) a automaticidade é “um meio de reestruturar procedimentos para que a memória seja largamente contornada, liberando recursos para outras tarefas cognitivas”. Os autores sancionam ainda que o desenvolvimento de estratégias para o uso eficiente do conhecimento e do processamento advém de uma tensão entre alta carga de informação e de recursos internos limitados. Assim, por exemplo, se as habilidades básicas de leitura não se tornarem automatizadas, como a decodificação e codificação de letras e palavras, outras habilidades, como a compreensão de texto, não se desenvolvem de maneira adequada.

Além disso, Feltovich et al. (2006) declaram que a relação entre automatização e compreensão parece ser causal, isto é, o aumento da velocidade em habilidades verbais desencadeia um posterior aumento da compreensão, enquanto que os aumentos na compreensão (que de certa forma também passa a ser automatizada) não necessariamente desencadeiam um aumento na velocidade das habilidades verbais.

Desse modo, o ato de praticar, de maneira adequada, traz três alterações de caráter cognitivo para as operações necessárias ao domínio de expertise desejada. Em primeiro lugar, melhora a velocidade das operações; em segundo, melhora a suavidade dessas operações; e, em terceiro, reduz as demandas cognitivas para a realização das operações, liberando recursos cognitivos (atencionais) para outras funções, numa espécie de ciclo de dependência. Os autores explanam ainda que, com uma quantidade suficiente de prática, pode-se aprender como fazer várias tarefas ao mesmo tempo. Um dos principais benefícios da codificação na memória de longo prazo é que o expert seja capaz de antecipar futuros contextos em potencial.

Endsley (2006) explica que automaticidade é normalmente considerada quando se realiza tarefas físicas, como andar de bicicleta ou dirigir um automóvel, ou seja, casos em que as ações físicas são realizadas de forma mais autônoma e em uma menor quantidade de atenção consciente e esforço necessários do indivíduo. Porém, o conceito deve também ser levado em consideração quando se trata de tarefas de cunho mais cognitivo, não apenas motor. Conforme a autora, com um emparelhamento fixo de estímulo e resposta, comportamentos cognitivos

complexos podem desenvolver-se até um nível de automatismo como, por exemplo, as respostas de motoristas a luzes de semáforos.

Estudos comportamentais de aquisição de habilidades demonstraram que a automaticidade é central para o desenvolvimento de expertise e que a prática é o meio para se obter a automatização (Feltovich et al., 2006). Segundo Proctor e Vu (2006), o desenvolvimento da automaticidade não garante que altos graus de performance em nível de expert sejam atingidos, porém, fornece uma base necessária para isso. Assim, é possível inferir que os experts sabem mais, mas sabem também de modo diferente. E, dessa maneira, o desenvolvimento da expertise não deve ser visto como mera aquisição de habilidades, mas sim como uma construção complexa de adaptações da mente e do corpo do indivíduo, que incluem mecanismos eficientes de auto monitoramento e controle em serviço de seus objetivos (Feltovich et al., 2006).