• Nenhum resultado encontrado

3.1 Revisão Bibliográfica

3.1.3 Impacto dos fogos na parte quantitativa do ciclo hidrológico

3.1.3.1 O ciclo hidrológico e o coberto vegetal

Para uma melhor percepção de como o fogo pode influenciar e alterar quantitativamente o ciclo hidrológico, torna-se necessário descrever sumariamente o mesmo e fazer referência aos diversos processos ou componentes que o constituem, e como estes se encontram interligados. O ciclo hidrológico (Fig. 14) consiste na circulação interminável da água entre o oceano, a atmosfera e a terra, constituindo para além de um ciclo da água, um ciclo de energia em que a água alterna de estado, podendo apresentar-se no estado líquido, gasoso e sólido (Freeze e Cherry, 1979).

Fonte: Pike (2003)

Fig. 14 - Representação esquemática do ciclo hidrológico

O vapor resultante da evaporação da água dos oceanos é transportado pelas massas de ar, sofrendo condensação caso as condições sejam favoráveis, dando origem às nuvens. Por sua vez estas podem resultar em precipitação na forma de chuva, granizo, neve, orvalho e geada, que cai sobre a terra ou é interceptada pelas plantas. Podendo ser dispersa de várias formas, grande parte da água resultante da precipitação fica retida temporariamente no solo e outra é devolvida à atmosfera, através do processo de evaporação e como resultado da transpiração das plantas (Linsley et al., 1975). A água não evaporada ou assimilada pelas plantas é conduzida para os cursos de água através do escoamento que ocorre à superfície do solo (escoamento directo), assim como por correntes subsuperficiais que ocorrem após infiltração, constituindo estas o escoamento intermédio, a recarga dos aquíferos, descarga dos aquíferos e finalmente o escoamento de base dos cursos de água. Sob a influência da gravidade, tanto o escoamento de base como o directo movem-se em direcção a elevações mais baixas e podem finalmente descarregar para o oceano, de onde a água será evaporada novamente fechando-se assim o ciclo (Linsley et al., 1975).

Esta descrição do ciclo hidrológico é, para além de breve, simplista, na medida em que por exemplo, parte da água que aflui aos cursos de água pode infiltrar-se dando origem a água subterrânea, assim como a precipitação pode ocorrer sobre a forma de neve, permanecendo à superfície do solo por muitos meses até que o degelo liberte a água para os cursos ou aquíferos (Linsley et al., 1975). De modo a poderem identificar-se possíveis impactes decorrentes da acção do fogo, na parte quantitativa do ciclo hidrológico, torna-se pertinente abordar de uma forma mais pormenorizada alguns dos processos do referido ciclo, nomeadamente a intercepção, a evapotranspiração e a infiltração, tentando dar-se ênfase à relação da vegetação com os mesmos, e consequentemente com o ciclo hidrológico.

A intercepção é, segundo Lencastre e Franco (2006), a parcela de precipitação nas suas várias formas que é impedida de atingir o solo, sendo esta promovida pelas copas das árvores (folhas, ramos e troncos) ou pela manta morta vegetal; esta fracção da precipitação retorna posteriormente à atmosfera por evaporação, condicionando assim a precipitação que atinge o solo (precipitação eficaz). Apesar de se ter associado a intercepção a uma “perda” de água para a rede hidrográfica, é importante salientar que em alguns casos esta pode representar um ganho, nomeadamente em zonas costeiras, em que as minúsculas gotículas que constituem o nevoeiro são interceptadas, escoando parte dessa água para o solo (Pike, 2003).

A quantidade de água interceptada pela vegetação, depende não só das características da precipitação, mas também de factores como o tipo e densidade do coberto vegetal, estádio de desenvolvimento vegetativo, tamanho e forma das plantas, assim como das suas folhas (Ritter, 2006). A salientar a importância do tipo de espécie (folhosa ou resinosa) e respectivas folhagens na intercepção pela cobertura florestal, destaca-se uma das conclusões duma síntese de diversos resultados experimentais, referentes à medição de uma série de parâmetros em florestas de folhosas e resinosas, citado em Lencastre e Franco (2006), expondo que as florestas de resinosas interceptam mais água que as de folhosas, devendo-se tal situação ao facto de as primeiras possuírem folhagem persistente, em contraste com as segundas, e de a superfície de retenção nas agulhas das resinosas ser maior do que nas folhas largas das folhosas. Em Oliveira (2004) é também apresentada uma compilação de diversos valores de intercepção encontrados na literatura, para diferentes espécies vegetais.

A evapotranspiração é o termo utilizado para designar a perda de água através dos processos de transpiração e evaporação uma vez que, ao estudar-se o balanço hídrico para uma dada bacia revestida por vegetação, é praticamente impossível dissociar os dois processos (Linsley et al., 1975; Lencastre e Franco, 2006). A transpiração refere-se à evaporação da água absorvida pelas plantas e por elas eliminada nos diferentes processos biológicos, visto que apenas parte da água absorvida do solo fica nos tecidos. Segundo Linsley

et al. (1975), a transpiração constitui uma fase importante do ciclo hidrológico dado que é o

mecanismo mais importante através do qual a água que cai na superfície terrestre é devolvida à atmosfera.

Por sua vez, a evaporação é o processo de passagem da água do estado líquido ao estado gasoso, podendo ocorrer a partir de água presente na superfície do solo, nas massas de água (e.g. lagos e albufeiras), na superfície da vegetação, assim como durante o próprio processo de precipitação (Pike, 2003). O processo de evaporação é influenciado por diversos factores, designadamente pela radiação solar (fonte de energia), diferença de tensão de vapor entre a camada vizinha da superfície de água e a atmosfera, pressão atmosférica, humidade, vento, entre outros (Linsley et al., 1975; Lencastre e Franco, 2006).

O coberto vegetal em geral, e o florestal em particular, afectam de um modo directo as taxas de transpiração e evaporação, algumas propriedades do solo (e.g. teor em matéria

orgânica e húmus), os padrões de acumulação de neve e degelo, entre outros (Hetherington, 1987, citado por Pike, 2003), desempenhando portanto um papel preponderante no ciclo hidrológico, na medida em que perturbações sobre a estrutura de tal tipo de coberto podem modificar os processos que controlam o balanço hídrico, tanto no espaço como no tempo. Tais perturbações podem ter diversas origens, não só por acção do fogo, mas também por acção de várias actividades de índole económica como o desbaste florestal. Estas e outras perturbações podem levar ao incremento da radiação solar que atinge o solo (com consequentes repercussões sobre outros processos como a evaporação e o degelo), conduzindo também à redução das perdas decorrentes dos processos de evapotranspiração e intercepção (e.g. através da eliminação das copas das árvores e/ou eliminação da cobertura herbácea ou arvense), acompanhadas pelo aumento da humidade do solo e, em consequência, por uma diminuição da capacidade de armazenamento de água na matriz do solo, resultando numa maior quantidade de escoamento à superfície (Winkler, 1999, citado por Pike, 2003), ou no aumento da recarga de águas subterrâneas.

Após a água resultante da precipitação atingir a superfície, parte da água sofre infiltração para o solo por influência da gravidade e do potencial capilar. Durante uma chuvada, o solo pode absorver água até determinado valor de intensidade da chuva, valor a partir do qual a água já não se infiltra e ocorre o escoamento superficial, designando-se este limiar por capacidade de infiltração do solo (Lencastre e Franco, 2006). A infiltração é controlada pela textura do solo, assim como pela sua estrutura, teor de humidade e vegetação existente (Ritter, 2006). Altas taxas de infiltração podem ocorrer quando o solo está seco, provocando o humedecimento um forte efeito de capilaridade facilitando a infiltração, mas à medida que a espessura da camada saturada vai aumentando reduz-se a infiltração. Por outro lado, os solos secos apresentam muitas vezes partículas finas à superfície, sendo estas carreadas para o interior do solo, colmatando muitas vezes os poros (especialmente em solos de textura fina) resultando na redução da taxa de infiltração e consequentemente no incremento do escoamento superficial (Lencastre e Franco, 2006).

A compactação do solo é também um factor que condiciona a infiltração, podendo esta decorrer de acções humanas (e.g. tráfego pedestre e de veículos) e de acções naturais, como a própria chuva. A chuva, devido à energia cinética que lhe é conferida por acção da gravidade, poderá ter capacidade para destruir os agregados estruturais do solo, originando uma crosta superficial, minimizando a infiltração; este fenómeno depende da textura do solo, apresentando mais relevo em solos argilosos do que nos arenosos (pouco afectados). Em climas frios verifica-se ainda a possibilidade da infiltração ser minimizada por aspectos de índole meteorológica, nomeadamente a ocorrência de gelo à superfície do terreno e penetração da geada, reduzindo-se deste modo a capacidade de infiltração.

Em função disto e no que se refere à infiltração, verifica-se que o coberto vegetal é importante para a manutenção de melhores condições de infiltração da água no solo, ao reduzir a energia cinética da precipitação (por acção das copas e da folhada na superfície do solo), consequentemente evitando a desestabilização dos agregados, compactação e colmatação do

solo. O coberto vegetal impõe-se ainda como obstáculo ao escoamento directo, minimizando a sua velocidade. As suas raízes facilitam também a infiltração, tanto através da descompactação do solo, como pela criação de canais para o seu interior que, para além de facilitarem o acesso à água, permitem o arejamento do solo, sustentando a existência de uma microfauna diversificada que por sua vez influencia também a estabilidade estrutural do solo e deste modo a infiltração (Lencastre e Franco, 2006; Ritter, 2006).

Em suma, verifica-se que existe uma influência mútua entre o ciclo hidrológico e o coberto vegetal de determinada bacia, pelo que qualquer perturbação neste poderá conduzir a alterações no regime hidrológico dessa mesma bacia, com resultados variados no espaço e no tempo, pois as características da vegetação influenciam não só cada um dos processos do ciclo, mas também algumas características físicas da bacia que podem, por sua vez, influenciar também o ciclo hidrológico (e.g. solo), tornando assim o sistema para além de dinâmico, complexo, devido às múltiplas interacções que podem ocorrem em diversos sentidos.

3.1.3.2 A resposta do ciclo hidrológico ao fogo: o escoamento superficial, escoamento