1. O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?
1.3 Clímax
De volta à narrativa, toda a história de como se deu o sequestro, como foram as negociações com os militares, a notícia da libertação dos presos políticos e toda a cena da soltura
do embaixador aconteceu no capítulo 15. Apesar de acharem que a ação havia sido um sucesso, o desfecho é tenebroso para o MR-8.
Os participantes da ação se dispersaram a partir da noite de domingo. Dois morreram: Toledo, sob torturas em São Paulo; Jonas, o comandante militar da ação, massacrado a pontapés pela equipe do capitão Albernaz, na Operação Bandeirantes. Alguns foram presos e liberados, depois de cumprirem a pena, outros foram liberados, por sequestro, e vivem em lugares diferentes, no exílio. Alguns fugiram, e finalmente, um de nós enlouqueceu e perambula pelas ruas de Paris, de barba e cabelo grande. Sobrevivi. E pensei que talvez fosse interessante contar a história. (GABEIRA, 2009, p.126)
Este trecho, desolador, é dramático e nauseante. Toda a inocência e comicidade desaparecem do texto e a narrativa, como nas peripécias dos episódios folhetinescos, envolve e amarra o leitor para a trama final: o que acontece com Gabeira. Essa estratégia não era novidade e tinha reascendido no meio jornalístico com um movimento norte-americano, chamado de Novo Jornalismo, que trouxe de volta para as redações algumas preocupações estéticas típicas da literatura. O que Gabeira construiu também foi, de certa maneira, jornalismo literário, o mesmo que os novos jornalistas exultavam nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos.
Finalmente, o último capítulo da obra descreve como o narrador entrou na “mais profunda clandestinidade” (GABEIRA, 2009, p.126). Depois do sequestro e do desfecho desastroso de seus colegas, Fernando Gabeira se esconde. Ele é colocado para morar com uma mulher, chamada Ana, que segue sua vida normalmente, enquanto ele fica restrito a viver dentro do apartamento. Esse período em que ele fica recluso, apenas escondendo-se, se torna uma fase de amadurecimento do personagem.
O poder, quando entra em conflito, de um modo feral parte para repressão. E quem mais dedicado à repressão intelectual do que o intelectual que se nega? Quem mais capaz do que ele para orientar os seus inimigos? O assustador naquele período da exaltação ao militarismo foi o quanto andamos perto de uma visão muito rígida e burocratizante, incapaz de libertar não apenas as forças culturais dos setores onde atuávamos, mas incapaz inclusive de liberar nossa própria potencialidade. (GABEIRA, 2009, p.134)
Reflexões como essa seguem ao longo das primeiras páginas do capítulo. Por vezes, o narrador reconhece algumas de suas falhas no movimento, em outros momentos se inocenta do calamitoso final da ação. De qualquer maneira, o leitor é levado a repensar a solidez dos conceitos levantados pelo MR-8.
Com um olhar mais maduro, o narrador passa a desnudar a escabrosa condição a que os trabalhadores comuns estavam fadados durante o regime militar. Já em São Paulo, percebe a grande quantidade de migrantes nordestinos que chegam à metrópole e são recebidos sem a menor condição social e econômica, vivendo à margem da sociedade, excluídos, invisíveis. Pela sua própria experiência, denuncia o abismo social que separa a elite dos operários, apontando também para a sua própria desilusão. Ele que sonhava com os operários musculosos e conscientes dos cartazes russos, agora enfrenta a realidade paulistana. É uma cena de enfrentamento da realidade.
A miséria, entretanto, era ainda bem visível, e a casa onde fiquei nas primeiras semanas era uma expressão dela. Com dois cômodos, uma sala e um quarto, abrigava o casal de operários, sua filha maior, duas crianças e a avó. O dono da casa era operário na construção civil, a filha trabalhava na indústria têxtil. A mãe e a avó das crianças passavam o dia em casa. O casal usava o quarto e os outros dormiam na sala. Não havia água corrente, mas um poço no fundo do quintal. (GABEIRA, 2009, p.142).
Ainda na casa desta família, o narrador questiona o poder da televisão, que começava a aparecer nas casas dos mais pobres. A TV, que chegara ao Brasil em 1950, foi muito influenciada pelo rádio em sua linguagem e programação. Não demorou a se tornar um veículo de massa altamente popular e influenciador. E é justamente essa influência que chama a atenção de Gabeira.
O tempo da narrativa é a virada do ano de 1970 para 1971. Mas definir esse tempo também é problemático. A narrativa fluida não faz muitas marcações temporais e, por vezes, alonga-se em histórias que se passam em dias; outras vezes, acelera os acontecimentos de anos. O grande momento de toda a história acontece quando Gabeira é preso, numa cena digna do cinema. O “aparelho” (GABEIRA, 2009, p.88) - local onde se instalavam momentaneamente – em que Gabeira e um companheiro estavam alojados fora desbaratado pela polícia. Enquanto tentava fugir, foi perseguido e levou um tiro pelas costas antes de ser efetivamente detido. O episódio remete às peripécias de uma novela, em que o herói é posto contra a parede e não consegue fugir ao destino que lhe fora traçado. O narrador é levado ao Hospital das Clínicas no porta-malas do camburão policial para os primeiros-socorros. Ficou um tempo internado lá, até ser transferido para o hospital do II Exército, “onde poderiam atuar com mais tranquilidade” (GABEIRA, 2009, p.153). Ele foi sucessivamente interrogado pelos oficiais da Operação
Bandeirantes (destacamento paulista da repressão política), mas por ter tomado um tiro, em um primeiro momento não foi torturado.
Seu cenário favorável logo mudaria de figura e, pouco tempo depois, ainda preso, o narrador começa a sofrer torturas físicas em seus interrogatórios, com choques elétricos em suas mãos (antes, havia sofrido torturas psicológicas, com xingamentos, gritarias e discursos opressores). Neste cenário, em uma das pouquíssimas vezes ao longo da obra, o narrador se assume Fernando Gabeira.
Às vezes éramos exibidos aos grupos que estavam montando o trabalho no interior. Capitães do Rio Grande do Sul apareciam na porta da minha cela e ouviam uma ligeira preleção: “Este é o Gabeira, participou do sequestro do embaixador americano, foi preso aqui em São Paulo, por nós. Tudo bem, Gabeira?” (GABEIRA, 2009, p.161)
O fato de lhe parecer desnecessário, pois evidente, explicar que o narrador é um outro eu do autor, sugere técnica jornalística, uma vez que no jornalismo o narrador é sempre uma projeção do próprio autor.
A relação do narrador e dos outros presos com os guardas, que eram da Polícia Militar e não do Exército (a PM era conhecida por ser menos truculenta que o Exército), denunciam a naturalidade da violência naquele contexto. Tudo parece normalidade para os guardas. O preso não lhe dá bom-dia e ele acha que há algo errado. Aquele contexto de violência e violação de direitos básicos da humanidade pareciam costumeiros para os militares. Aquilo não passava de um companheiro de trabalho, de um objeto de trabalho: era como um guarda de museu. Muitos soldados rasos e guardas de baixa patente estavam alienados das questões políticas das quais faziam parte. Há uma retomada do conceito de alienação usado por Marx (2007). Os militares aceitavam as condições que viviam como algo natural, do destino, não como resultado de relações sociais e, portanto, de decisões.
A violência praticada pelas forças militares era brutal e degradante. A obra de Gabeira atinge seu ápice, denunciando os escabrosos procedimentos a que eram submetidos os presos pela ditadura.
Lembro-me de Augusto, um ex-oficial de cavalaria, acusado de pertencer ao comitê central do PCBR11. Tinha um postura física irrepreensível, apesar dos
11 “Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Dissidência do Partido Comunista Brasileiro” (GABEIRA, 2009, p.210)
seus sessenta anos. Perto dele, com aquele tiro nas costas, eu parecia um velho reumático. Contava histórias de 37 e dizia que, na Fortaleza de Santa Cruz, as condições de prisão eram piores que as daquela cela grande da PE. Segundo ele, ficavam todos dentro da água, molhados até o joelho. Ainda bem que não estávamos em 37, pensava, tentando me consolar a respeito da nova situação. A apenas alguns metros abaixo de nós, aconteciam coisas certamente muito mais graves do que naquela época. Mário Alves fora trucidado e morrera com um pedaço de pau enterrado no ânus. E de quem eram aqueles gritos agora? (GABEIRA, 2009, p.177-178)
Criatividade para tortura e humilhação não faltavam aos militares: presos eram obrigados a lamber chão e paredes, ouviam xingamentos sistematicamente, ficavam sem comida, levavam choques elétricos, eram postos no pau de arara, enforcados e afogados.
A última parte da obra é uma reflexão acerca da brutalidade da ditadura militar brasileira. Gabeira se aprofunda em questões complexas, como o caso dos inocentes que morrem em qualquer guerra ideológica.
Um deles estava ali porque pegou uma carona para o Maracanã com um amigo chamado Razek. O amigo era militante e tinha um ponto. Ele viajava ao seu lado com a bandeira do Flamengo na mão, completamente despreocupado. O amigo pediu um tempo, parou a Rural perto do passeio público e foi ao seu ponto. Nisso, a polícia que estava no ponto prendeu Razek apontando metralhadoras contra a sua cabeça. Ele tinha se afastado um pouco, para tentar achar um botequim. Antes de sair, entretanto, aconselhara Razek a não estacionar em cima do passeio. Quando voltou do botequim e viu seu amigo cercado pensou: esses caras do Detran exageraram, por que não multar apenas? Quando se aproximou para protestar contra a violência policial diante de uma simples infração de trânsito, foi preso e levado também para a PE da Barão de Mesquita, onde ficou um mês tentando entender. (GABEIRA, 2009, p.179)
O parágrafo é interessante porque, de certa forma, o narrador reconhece sua culpa e reconhece os inocentes da história. Eles aparecem para o narrador como o lado humano de si mesmo. Enxerga nos inocentes o lado emocional daquela guerra: a organização e a ditadura travavam uma guerra ideológica, no âmbito do pensamento, mas os inocentes eram a emoção, ao menos para o narrador.
Nessas páginas, o narrador discute a podridão moral da sociedade brasileira que tolera atitudes como as vividas na PE da Barão de Mesquita. Argumenta que ele mesmo não via bem e mal tão divididos assim, mas que certamente saberia dizer que aquilo era podre, pré-histórico.
Por mais que nós enviássemos bilhetes da cadeia, por mais que colecionássemos histórias escabrosas, não conseguiríamos apreender aquele
processo em sua complexidade, antes de vivê-lo na carne. [...] Às vezes, antes de dormir, dizia a mim próprio que nos tratavam como inimigos de guerra. Mas era apenas um consolo. E daí? E se fôssemos prisioneiros de guerra vindos de outro país, ou mesmo de outro planeta? Uma civilização que tratava dessa forma seus prisioneiros de guerra precisaria ser repensada de alto a baixo. Também eu era um produto dessa civilização. (GABEIRA, 2009, p.180-181)
De fato, precisa ser repensada. E esse talvez seja o grande desejo do narrador com sua obra: refazer a sociedade brasileira. Para ele, o inimigo era a tortura em si. Depois de ver publicadas em jornal fotos do Exército executando treinamentos para suportar situações de tortura, obviamente, treinamento de um instrumento que a própria ditadura utilizaria recorrentemente, Gabeira insinua que tudo aquilo não passava de um grande e ensaiado balé (2009, p. 185). No entanto, as causas nobres nunca torturam. Quase um contrassenso do narrador, que por sua causa sequestrou um embaixador, torturando-o, portanto.
A discussão caminha, dessa maneira, para a sensibilidade das pessoas em perceber o que as cerca. Uma discussão quase epistemológica do jornalismo. Contar essa história em livro, é uma tentativa de tornar o discurso perene, de não se deixar ser esquecido. Embrenhar-se na literatura, ainda que jornalista, seria um enorme desafio e a obra parece que faz um caminho de redenção do narrador. “O governo havia decretado nossa morte oficial assinando uma pena de banimento, mas, paradoxalmente, começávamos a viver” (GABEIRA, 2009, p.206).