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4. TRANSCULTURALIDADE

5.5. Comunidades de Fala e Comunidades de Prática

A partir dos conceitos até agora expostos, passamos a definir Comunidade de Fala (CF). Façamos uma breve revisão bibliográfica antes de analisar tal conceito sob a perspectiva da Linguística Ecossistêmica.

Desde que Bloomfield dedicou um inteiro capítulo de seu livro Language, de 1933, às ‘Speech Communities’ (Comunidades de Fala), o tema vem sendo discutido e nem sempre há acordo entre as suas definições. O conceito laboviano de CF talvez seja o mais referenciado. Em seus estudos, o linguista estadunidense percebe que não é possível distinguir língua de sociedade. A língua deve ser sempre observada em seu contexto social, isto é, se desejamos estudar todos os aspectos estruturais das línguas, eles devem ser sempre vinculados ao contexto social da comunidade de fala onde essa língua é usada, uma vez que “as pressões sociais estão operando continuamente sobre a língua, não de algum ponto remoto do passado, mas como uma força social imanente agindo no presente vivo” (LABOV, 2008 [1972], p. 21). Isto posto, resta definir o que determina o pertencimento a uma ou outra CF, e Labov considera que esse limite surge sob duas perspectivas, a do nível consciente e a do nível inconsciente do indivíduo. O nível inconsciente diz respeito a práticas não percebidas, tais como as variações diatópicas, ou as variações por faixa etária. Isso não nos interessa diretamente nesse estudo uma vez que Labov trata de variedades linguísticas da mesma língua, abordando a questão do prestígio, ao passo que nós tratamos de CF nas quais a língua usada é estrangeira. Porém, vale ressaltar que o baixo prestígio da língua falada pelos

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Não pretendemos aprofundar esse tema porque ele não nos interessa nesse momento e não interfere no tema dessa pesquisa.

imigrantes foi fator determinante para a sua não transmissão intergeracional. No nível consciente, os falantes de uma CF compartilham os mesmos valores e têm as mesmas atitudes linguísticas. Uma CF “é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas em relação à língua” (LABOV, 2008 [1972], p. 188).

Hudson (2001 [1980]) nos propõe interessante discussão acerca do desacordo entre definições de CF, além de nos mostrar a confusão por vezes tomada entre tais conceitos e os de Comunidade Linguística. Segundo ele, ambas as terminologias são usadas para se referirem a uma comunidade com base na língua falada em seu seio. Burke (2010, p. 21), por exemplo, admite que os sociolinguistas têm necessidade da ‘comunidade linguística’ para trabalhar, termo cuja origem vem do alemão Sprachgemeinschaft ainda nos anos 20 do séc. XX. Sua abordagem não distingue comunidade linguística de CF, o foco de sua argumentação está na problematização do uso do termo ‘comunidade’.

Ao mostrar as principais definições surgidas desde Bloomfield, Hudson (2001 [1980]) demonstra que essas vão sendo refinadas e aprimoradas ao longo da história, até chegar a Gumperz, em 1968, e Labov, em 1972. O primeiro aponta para a necessidade de haver diferenças linguísticas específicas para que se constitua uma CF, diferentemente das definições anteriores que mencionavam apenas línguas, ou seja, transmitiam a ideia de que CF eram distinguidas por línguas diferentes. Para Gumperz uma CF é qualquer conjunto de seres humanos que interagem entre si através de um conjunto compartilhado de signos verbais (HUDSON, 2001 [1980], p. 25). Diferentemente das outras definições, Gumperz considera algo mais do que somente a língua comum como marca de uma CF: é preciso, haver interação frequente e um sistema de signos verbais comum à comunidade, o que aponta para uma relação mais estreita entre membro e comunidade. O segundo, Labov, que já vimos no parágrafo anterior, enfatiza as atitudes linguísticas como marcas de uma CF (HUDSON, 1980 [2001], p. 25).

Por fim, Hymes (1986 [1972]) vai mais além e aponta para CF como grupos sociais dos quais os membros se sentem parte. Diferentemente das outras definições, seus membros têm consciência de que fazem parte de um grupo social, que são membros de uma comunidade. Uma CF é a condição primária para que se postule a existência de um grupo como entidade social e não linguística. “Inicia-se a partir do grupo social e considera-se todas

as variedades linguísticas ali presentes, em vez de começar com alguma variedade176” (HYMES, 1986 [1972], p. 54). O mesmo autor define CF como “uma comunidade que compartilha regras de conduta e interpretação da fala e regras para a interpretação de, ao menos, uma variedade linguística. Ambas as condições são necessárias” (HYMES, 1986 [1972], p. 54).

Le Page & Tabouret-Keller (1985) também se referem a grupos sociais que se distinguem pelo modo de falar, além de outras características sociais peculiares, embora não mencionem explicitamente a expressão ‘Comunidade de Fala’ – segundo Hudson (2001 [1980]), os autores a evitam. Da mesma forma que Hymes (1972), os autores sustentam que tais grupos são aqueles nos quais o falante se percebe como parte, e não necessariamente aqueles descobertos (ou delimitados) metodologicamente pelo pesquisador: “indivíduos criam padrões para seus comportamentos linguísticos de modo a se assemelhar ao(s) grupo(s) com o(s) qual(is) de tempos em tempos querem ser identificados177”. (LE PAGE & TABOURET- KELLER, 1985, p. 18).

O entendimento de Le Page & Tabouret-Keller (1985) nos remete ao conceito de Comunidades de Prática (CP) proposto primeiro por Lave & Wenger, em 1991 e Wenger, em 1998, para organizações sociais, e levado à sociolinguística por Eckert (2000). Wenger (2006 [1998]) define CP como um conjunto de pessoas que se juntam em um grupo em torno de um empreendimento comum. Três são os elementos básicos para a existência de uma CP (WENGER, 2006 [1998], p. 87):

 Empenho (compromisso/comprometimento) recíproco;  Objetivo/empreendimento comum;

 Repertório comum.

Uma CP não é somente um conjunto de pessoas definido por algumas características comuns. Por isso deve haver um compromisso recíproco entre os membros. Uma CP não é definida simplesmente por quem conhece quem, ou por quem fala com quem numa rede de relações interpessoais através das quais correm as informações. Essa é uma prerrogativa das redes sociais, mas não basta para que haja uma CP.

176 “One starts with a social group and considers all the linguistic varieties present on it, rather than starting

with any one variety”.

177 “individuals create the patterns for their lingusitic behaviour so as to resemble those of the group or groups

O comprometimento recíproco não implica homogeneidade, mas cria relações entre as pessoas. Ao longo do tempo une os participantes com especificidades que podem vir a ser mais profundas do que afinidades abstratas no plano das características pessoais ou das categorias sociais. Nesse sentido, uma CP pode se tornar um nó muito apertado de relações interpessoais.

Repertório é o conjunto de recursos compartilhados pela CP que enfatiza o que foi experenciado por ela, além da disponibilidade de aceitação para novos envolvimentos em outras práticas. Estendido ao conceito de Ecossistema Cultural de Couto (2016; 2016b), o repertório é o próprio C da tríade P-C-T (Povo-Cultura-Território). Evidentemente, a língua é parte do repertório comum.

O empreendimento comum é a própria base de sustentação da CP, pois é em torno dele que se criam as CP. Como sugere Eckert (2000, p. 35), é fácil identificar o empreendimento comum que reúne as prerrogativas para o surgimento de uma CP. Por exemplo, uma banda de garagem, uma cooperativa, um grupo de pesquisa. O conceito de CP também é utilizado na perspectiva atual da sociolinguística de contato.

Eckert (2000) aborda a questão da variação linguística como prática social. A autora revê os conceitos de CF e CP para desenvolver estudos sobre social meaning of linguistic variables (significado social de variáveis linguísticas), que mais tarde vão dar suporte ao que ela denomina terceira onda no estudo das variações linguísticas (ECKERT, 2005; 2012). A autora retoma o conceito pioneiro de CP, de Lave & Wenger e o estende à sociolinguística.

A primeira onda nasce junto com a própria sociolinguística laboviana, que associava variações a dados sociais (sexo, idade, classe, etnia...). A segunda onda utilizava métodos etnográficos que abarcavam aqueles dados sociais. Ambas enxergavam as variações linguísticas como marcas sociais. A terceira onda enxerga a variação como motivador de mudanças sociais e não apenas reflexo delas. A terceira onda situa ideologia na própria língua, na construção de significado (ECKERT, 2012).

Os estudos das três ondas nos servem apenas para balizar nosso trabalho, uma vez que são voltados à sociolinguística variacionista, assunto não tratado aqui. Entretanto, achamos necessário esclarecer esses pontos, dada a ligação proposta entre CP e sociolinguística.