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2 A TRAJETÓRIA DOS JOGOS TRADICIONAIS AOS JOGOS DIGITAIS

2.1 Conceituação do Jogo

2 A TRAJETÓRIA DOS JOGOS TRADICIONAIS AOS JOGOS DIGITAIS

Dentre todas as brincadeiras codificadas, aquela que serve única e exclusivamente para entreter, que não tem outra finalidade senão divertir, recrear, distrair, distender, contentar, passar o tempo prazerosamente, é o jogo que, em razão disso, é definido como uma brincadeira com regras. As formas que o jogo adquiriu ao longo da cultura humana são múltiplas, exibindo desde os extremos de crueldade e violência do circo romano até a leveza inofensiva do dominó. Hoje, convivendo com uma grande diversidade de jogos tradicionais e de jogos que atraem multidões tanto para os estádios quanto para as telas de transmissão, como o futebol, por exemplo, o que caracteriza o nosso tempo são os jogos eletrônicos, os games (SANTAELLA, 2004, p. ).

Neste capítulo discutiremos inicialmente o conceito de jogo na visão de: Huizinga (1938), que apresenta o jogo como elemento histórico e cultural, e Callois (1967), que demonstra as dimensões sociais do jogo. Em seguida, apresentamos como se deu a evolução do jogar, e o surgimento dos jogos digitais, ancorados em Schell (2010), que define quais são os elementos básicos do jogo digital, e, por fim, Peixoto (2015) e Moraes (2017) que discutem qual o impacto do uso das tecnologias digitais nos ambientes educacionais.

2.1 Conceituação do Jogo

Para iniciar a reflexão acerca da origem do jogo, recorreremos inicialmente ao historiador holandês Johan Huizinga que, em 1938, publicou a obra “Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura”. Escolhemos este autor por tratar-se de um clássico quando o assunto é jogo; isso porque ele abriu um leque para estudos e reflexões relacionadas ao assunto, caracterizando o jogo como elemento constituinte da construção da cultura, capaz de desempenhar uma função significante para a vida do sujeito.

Desde os primórdios, o jogo já faz parte da vida e da história do homem, constituindose como um instrumento material e simbólico, já que é carregado de significações e faz parte do processo de apropriação e transformação da natureza, sendo fruto das relações socioculturais da humanidade e carregado de significados, pois tem sentido para quem o pratica. Huizinga (2017) descreve o jogo como elemento que antecede o surgimento da cultura por já ser utilizado pelos

animais, caracterizando-o como de natureza livre e atividade voluntária. Sendo assim, podemos perceber o jogo como atividade voluntária das crianças e que, desde o nascimento, ele já faz parte do cotidiano delas. O jogo, para ele:

Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa (HUIZINGA, 2017, p 3-4).

Segundo Huizinga (2017, p. 3), “O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições mais rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica”. Para o autor:

A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supra- lógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa a mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional (HUIZINGA, 2017, p.6).

O jogo é elemento constituinte da cultura, pois, além de ser utilizado pelas crianças e animais, ele se encontra presente na guerra, no direito, na ciência, na filosofia, nas artes, na linguagem e na poesia. O autor destaca elementos essenciais presentes no jogo, caracterizando-o ccaracterizando-omcaracterizando-o:[...] uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro dos limites espaciais e temporais próprios, segundo certa ordem e certas regras (HUIZINGA 2017, p. 16).

Ainda seguindo as ideias do autor, temos que:

[...] o jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratarse

“apenas” de um jogo pode passar para o segundo plano. A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo (HUIZINGA, 2017, p. 24).

Portanto, os estudos de Huizinga (2017) trataram de compreender o jogo como elemento constitutivo da cultura e de sua importância para o desenvolvimento da sociedade, já que exerce um papel significante e social. Posteriormente a Huizinga (2017), Caillois (2017) utiliza a sua obra Homo Ludens como ponto de partida para os seus estudos, tendo por intento estudar e classificar os jogos, descrevendo que os jogos possuem as seguintes qualidades:

1º) livre: à qual o jogador não pode ser obrigado, pois o jogo perderia imediatamente sua natureza de divertimento atraente e alegre;

2º) separada: circunscrito em limites de espaço e de tempo previamente definidos;

3º) incerta: cujo desenrolamento não pode, ser determinado nem o resultado obtido de antemão, pois uma certa liberdade na necessidade de inventar é obrigatoriamente deixada à iniciativa do jogador.

4º) improdutiva: pois não cria nem bens, nem riqueza, nem qualquer tipo de elemento novo; salvo deslocamento de propriedade no interior do círculo dos jogadores, resulta em uma situação idêntica àquela do início da partida; 5º) regrada: submetida às convenções que suspendem às leis ordinárias e que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta; 6º) fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade diferente ou de fraca irrealidade em relação à vida cotidiana (CAILLOIS 2017, p. 42).

Assim como Huizinga (2017), Caillois (2017) defende que só pode ser considerado jogo, se esta for uma atividade lúdica praticada livremente, sendo espontânea e voluntária, conduzindo o jogador à alegria e ao divertimento. Caso o jogador seja forçado a jogar, deixa de ser imediatamente jogo.

Para ambos os autores, o jogo possui um domínio, um universo reservado, com limites de espaço e de tempo próprios, seguindo certas ordem e regras. Assim, são as regras que definem a jogabilidade, os objetivos e os resultados do jogo. Eles também consideram o jogo como incerto, pois, para que ele conduza à diversão, é necessário que os jogadores desconheçam o resultado, caso contrário, o jogo perderia sua graça, já que a tensão e a incerteza constituem os fatores motivadores para que os jogadores queiram jogar e continuem no jogo, até encontrar a solução e vencer.

No entanto, o que diferencia esses dois autores é o fato de que Caillois (2017) realiza uma classificação dos jogos para discernir os conteúdos dos jogos e as suas diversas manifestações. A classificação realizada pelo autor descreve as diferentes manifestações do jogo por meio de sua natureza imperativa, sendo estas a Competição (Agôn), a Sorte (Alea), o Simulacro (Mimicry) e a Vertigem (Ilinx.)

Quadro 1 – Manifestações do jogo e sua natureza imperativa

Formas culturais

A partir das apresentações desses dois autores sobre a definição e a caracterização dos jogos, ressaltamos a importância de suas pesquisas para o desenvolvimento das reflexões do jogo e da compreensão da sua relação com a história e a cultura humana. Para tanto, nos sustentamos em Huizinga (2017), na tentativa de descobrir a origem dos jogos e definir o que é um jogo e o que é necessário para que ele seja considerado como tal, e em Caillois (2017) buscamos saber como diferenciar e classificar os tipos de jogos.

Ao utilizar os estudos desses dois autores, compreendemos o jogo como elemento histórico e cultural e que e as formas de jogar também acompanharam o processo de evolução tecnológica da sociedade e, junto com ele, também se aprimorou, o que permitiu o surgimento do jogo digital. Vale ressaltar que a existência do jogo digital não extingue os demais jogos, pelo contrário, ele distingue-se dos outros jogos pela tecnologia utilizada.

O jogo possui seu aspecto socializante e, mesmo com o desenvolvimento da sociedade, ele não perde sua essência, visto que continua existindo nas formas mais diversas já citadas e, também, se tornou mais amplo. Um exemplo dessa evolução histórica do jogo, em nossa sociedade, como já comentamos, é o jogo digital, fruto da criação do homem e consequência do avanço das tecnologias da informação e comunicação.

A definição que encontramos mais precisa sobre como podemos conceituar o jogo digital está nos estudos de Miranda e Stadzisz (2017), que analisaram quinze autores diferentes

tendo como objetivo construir a melhor definição de jogo digital e, a partir desse levantamento bibliográfico, tentaram unificar o termo e o caracterizam como:

[...] atividade voluntária, com ou sem interesse material, com propósitos sérios ou não, composta por regras bem definidas e objetivos claros, capazes de envolver os (as) jogadores (as) na resolução de conflitos e que possui resultados variáveis e quantificáveis. Esta atividade deve ser gerenciada por um software e executada em hardware (MIRANDA; STADZISZ, 2017, p.

299).

O jogo digital é uma realidade na cultura atual de nossa sociedade. É comum vermos crianças jogando em tablets, celulares, computadores etc. Por isso, pensamos que o jogo digital nas aulas de matemática pode vir a ser utilizado como um instrumento de aprendizagem capaz de levar a cultura lúdica à criança, propiciar experiências com a cultura, as novas tecnologias digitais e proporcionar conhecimentos matemáticos.

Contudo, salientamos que o jogo digital não é presente na vida de todas as crianças que frequentam a escola e, em concordância com Lorenzato (2010, p. 24),

O “aproveitar a vivência do aluno” não deve ser restrito ao início do aprendizado escolar, pois ele é válido para todo o processo de ensino. Convém, ainda, observar que Vivência não deve ser confundida com realidade, uma vez que alguns fatos, situações ou objetos podem não ser do convívio dos alunos e são realidades, como por exemplo, neve, guerra, cereja, cupuaçu, terremoto, vulcão.

Quando o jogo digital ou os aparelhos tecnológicos não fazem parte do convívio de algumas crianças, deve ser pensado como será este trabalho, pois, como Lorenzato (2010) afirma, pode ser que o jogo digital e os dispositivos tecnológicos façam parte da realidade, mas não da vivência do aluno. Assim, não devemos generalizar e pensar que, ao levar o jogo digital para a sala de aula, estamos inovando a aula ou trazendo a vivência de todos os alunos.

Como já foi discutido anteriormente, acreditamos no potencial pedagógico do jogo, mas cremos, também, que ele sozinho não abrange as necessidades da sala de aula e nem proporciona os conhecimentos almejados pelo professor dos conteúdos matemáticos e a colaboração e o diálogo entre os pares. Contudo, justificamos a necessidade de um trabalho com o jogo digital voltado para uma teoria de aprendizagem, no caso a teoria que nos auxilia nesta investigação é a teoria histórico-cultural. Tal teoria sustenta a pesquisa no que diz respeito ao processo de ressignificação dos conhecimentos científicos em situações do cotidiano e a mediação do professor.

Por meio dos estudos de Vigotski (1998), sabemos que as funções psicológicas superiores se desenvolvem, no indivíduo, a partir da interação dele com o meio físico e social em que vive, sendo o trabalho o fator principal dessa interação. “É o trabalho que, pela ação do homem sobre a natureza une homem e natureza e cria a cultura e a história humana”

(OLIVEIRA, 1997, p. 28). É pelo trabalho que o homem cria instrumentos que funcionam como mediadores na sua relação com a natureza. O instrumento físico amplia as possibilidades de transformação e modificação da natureza, carregando consigo a função para o qual foi criado, sendo a sua função preservada e transmitida a outros membros do grupo social. Já o instrumento psicológico é constituído pelos signos, que “são ferramentas que auxiliam nos processos psicológicos e não nas ações concretas, como os instrumentos” (OLIVEIRA, 1997, p. 30). Os signos auxiliam o homem em tarefas que exigem memória ou atenção, eles expressam outros objetos, eventos e situações.

Ambos os instrumentos: físicos e psicológicos são estabelecidos a partir do trabalho e da cultura humana.

A cultura, entretanto, não é pensada por Vygotsky como algo pronto, um sistemaestático ao qual o indivíduo se submete, mas como uma espécie de

“palco de negociações”, em que seus membros estão num constante movimento de recriação e interpretação de informações, conceitos e significados. A vida social é um processo dinâmico, onde cada sujeito é ativo e onde acontece a interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um (OLIVEIRA, 1997, p. 38).

A mediação é a construção do conhecimento dada pela relação entre o ser humano e o ambiente e, nessa relação, existem dois elementos mediadores que são os instrumentos e os signos. Nesse sentido, tomamos o conceito de mediação para pensar o trabalho com o jogo digital. A mediação é entendida aqui como o processo no qual o instrumento (o jogo digital) e o professor contribuirão para o desenvolvimento dos conceitos matemáticos. “O processo pelo qual o indivíduo internaliza a matéria prima fornecida pela cultura não é, pois, um processo de absorção passiva, mas de transformação, de síntese. Esse processo é, para Vygotsky, um dos principais mecanismos a serem compreendidos no estudo do ser humano” (OLIVEIRA, 1997, p. 38).

Assim, o conceito de número, a compreensão das relações existentes entre eles quando se realiza operações matemáticas, não é algo que deve ser ensinado automaticamente, mas, sim, construído por intermédio das relações da criança com o meio, cabendo ao professor o papel de mediar e criar necessidades para que o aprendizado ocorra. Por isso, apostamos que com o uso do jogo digital o professor pode enriquecer o processo de construção de conhecimento das

crianças. À vista disso, no próximo tópico, apresentaremos como o conhecimento científico aprendido na escola, por meio de situações matemáticas formalizadas, pode ressignificar os modos de jogar um jogo digital.

2.2 A Evolução do Jogar: do Real ao Virtual – A Origem dos Jogos Digitais

Estando inseridos em uma sociedade que os recursos tecnológicos surgem e se renovam, o tempo todo, encontramos os jogos digitais, que apresentam características peculiares, mas que, ao mesmo tempo, não se distanciam dos pressupostos filosóficos estudados por Huizinga (2017) e Caillois (2017) na definição do que é um jogo. Isso porque os jogos digitais também representam uma atividade livre, voluntária e prazerosa, além de possuírem regras.

Data-se que a origem dos jogos digitais se deu na década de 1950 e que essa invenção está diretamente ligada à cultura de uma época. Assim, Arruda (2014) retrata historicamente onde e como surgiu o primeiro jogo digital.

Os primeiros jogos conhecidos datam da década de 1950 e estavam relacionados ao contexto militar. As principais bases de dados mostram que o físico William Higinbotham, que fazia parte do projeto Manhattan, apresentou uma primeira versão do programa, considerando o primeiro jogo digital, em 1958. No ambiente militar do qual William Higinbotham fazia parte, a modificação de linhas de programação para a criação de momentos de relaxamento era uma estratégia utilizada por muitos profissionais da época.

Dessa forma, ela não foi percebida como uma invenção importante, e não gerou criação de patente. O jogo se chamava Tennis Programming, ou Tennis for Two¸ exposto em uma tela de 15 polegadas e projetado para ser processado em um computador analógico (ARRUDA, 2014, p. 31).

Arruda (2014), em sua obra “Fundamentos para o Desenvolvimento de Jogos Digitais”, conceitua e caracteriza os jogos digitais. O autor diferencia videogames de jogos digitais, descrevendo que:

o termo videogame historicamente esteve limitado aos jogos de console e às máquinas de fliperama. Já as tecnologias digitais são baseadas na microinformática, o que engloba jogos para computadores, consoles, fliperamas, smartphones, tablets e qualquer outro equipamento que venha a existir (ARRUDA, 2014, p. 3).

Dessa maneira, definem-se como jogos digitais aqueles que necessitam de um suporte eletrônico para ser jogado, como exemplo: um console, um smartphone, um tablet etc. Arruda (2014), em sua pesquisa, ao citar a pesquisa de Newzoo (2013) sobre o uso dos jogos digitais no Brasil, pontua que: