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De acordo com esta conceptualização de sujeito desviante, também sujeito autopoiético, é na própria lógica transgressiva que se encontra a racionalidade dos comportamentos

inscreve as suas acções no sentido existencial que assume face a si, aos outros e ao mundo, ou seja, conhecer em que plano de significação existencial e em que posição de significação transgressiva o indivíduo se situa.

Os resultados de um conjunto de estudos, que tomaram como quadro de referência a TSA (Agra, 1997)62, indicam, ao nível do determinismo e das significações dos

comportamentos de consumo de drogas, que, numa fase inicial, a significação dos consumos se situa fundamentalmente ao nível do plano lógico, ou seja: "um plano de significação em que o fenómeno da psicoactividade aparece como meio de agir voluntariamente sobre si e sobre as suas condições de existência" (Manita, 2000, p.24). Com o prosseguir da carreira de consumos as significações do plano ontológico tomam primazia em relação à fase anterior, o indivíduo é mais objecto de poder da substância do que actor de intenção e domínio próprios. Quer dizer que, em termos de significação transgressiva, se, na primeira fase, dominam as posições solitárias, na segunda fase surgem com grande relevância as posições substantivas. Dá-se uma verdadeira inversão das modalidades de determinação do comportamento no período de manutenção de consumo, passando da preponderância da acção autodeterminada pelos sujeitos para a heterodeterminação do comportamento de consumo de droga (Manita, 1997, 1998):

«Quando deixa de ser a experiência de si, a descoberta, a aventura, o saber de si e dos seus actos, a dominar a lógica dos consumos, e passa a ser a necessidade de suprir os estados de carência de droga, o sujeito perde a capacidade de auto-determinação dos seus actos e reduz a complexidade das significações associadas» (Manita, 1998, p. 460)

Agra (1991) considera que o plano de significação existencial, ou modo de vida, determinado pelo comportamento de consumo de substâncias corresponde a uma

62 Conjunto de estudos realizados por uma equipa de investigadores, do C.C.D. da F.P.C.E/U.P.,

que se centra de modo integrado, mas diferenciado, nas várias dimensões biopsicossociais do fenómeno; note-se que, não obstante destacarmos os resultados relacionados com as significações ligadas à carreira de consumo de drogas, a investigação em questão centra-se não apenas no fenómeno da droga como também na sua relação com o crime.

inversão da ordem hierárquica dos estratos constitutivos do sistema psíquico. Em lugar de individualidade psíquica capaz de exercer poder e saber sobre si, o sujeito torna-se objecto alienado da subjectividade, intencionalidade e determinação por si perseguidas. Nas palavras do autor, a trajectória prevalecente do consumidor de drogas constitui-se como um "jogo trágico":

«Um jogo porque o toxicodependente estabelece um acordo lúdico de si para si, que consiste em tornar-se outro no interior e a partir de si mesmo, trágico porque este jogo termina pela perda de si na qualidade de actor e pela perda de outrem que se desejava. Eis aqui uma vontade de se autoproduzir, de se autocriar, de se tornar um sujeito autopoiético, cujos processos conduzem ao oposto, à autodestruição...» (Agra, 1991, p.3)

2,3, Das significações das trajectórias de uso de drogas à (re)construção de trajectórias alternativas de sentido

«A lógica existencial do toxicodependente e das nossas sociedades é a mesma: "eu consumo , logo existo.»

Cândido da Agra63

A trajectória de consumo de drogas parece evoluir inexoravelmente para a dependência heterodeterminada64, culminando na figura do toxicodependente-criminoso que domina,

de facto, a "visibilidade social" do mundo da droga.

63 Agra (1991, p.5)

64 Ressalte-se, como já referido, que o proibicionismo sustenta não apenas a dessubjectivação do

indivíduo face aos seus actos, como favorece concretamente a substantivação da significação do consumo. Note-se, em particular, como a pressão económica sobre o consumidor, inerente ao

Manita (2000), no âmbito de um estudo que incide sobre as dimensões de sentido associadas às trajectórias de drogas-crime numa amostra de reclusos, destaca, no entanto, a existência de um número importante de sujeitos com uma gestão-manutenção de consumos numa lógica autodeterminada, alguns dos quais situando-se em posições de significação transgressiva de tipo solitário. Questionando a trajectória-tipo do consumidor heterodeterminado em relação à droga e ao crime, a investigação permite evidenciar a dominância de "posições de significação transgressiva" compósitas (associação de planos de significação) (Manita, Negreiros e Agra, 1997). Ou seja, existem entre os consumidores diferentes tipos de modalidades de gestão, autodeterminação e auto-organização no uso de drogas. A dominância de posições compósitas permite inferir, segundo Manita (2000, 2001), que existem diferentes tramas de significação subjacentes a diferentes trajectórias e, ainda, que é importante diversificar as intervenções terapêuticas de modo a adaptá-las às diferentes trajectórias e às respectivas determinações e significações dominantes.

Os objectivos do processo terapêutico, de acordo com a TSA, orientam-se «para a redução dos componentes de significação e de determinação mais elementaristas, mais rígidos, menos complexos e para o reforço dos mais elaborados, flexíveis e complexos.» (Manita, 2001, p.69, nota 14). Procurando integrar estes objectivos no quadro das abordagens narrativas, Manita reflecte sobre a importância das propostas terapêuticas terem em conta, como ponto de partida, as significações existenciais que estão na base da trajectória desviante do indivíduo, de forma a promover a complexificação do sujeito e a sua evolução para níveis mais elevados de subjectivação, ou de modo a favorecer a construção de trajectórias alternativas com sentido.

De acordo com a TSA, é no "plano existencial teleológico" que o sujeito autopoiético se produz plenamente. O sujeito, integrando de modo dinâmico os diferentes estratos da facto de se tratar de uma substância ilegal, tende a anular a individualidade face ao seu acto, expressa, por exemplo, na afirmação: "tinha que roubar para consumir".

personalidade, subjectiva-se, chama a si a vontade de saber e poder sobre a sua existência (Agra, 1990, 1991). O conceito de autopoiesis pressupõe que o indivíduo tem a possibilidade de se constituir como sujeito da sua experiência, de se tornar outro em si, num jogo criativo que supõe a relação entre heterodeterminação e autodeterminação. Ou, como diz o autor, o psíquico emerge do continuum dinâmico entre a heteronomia e a autonomia, entre o concreto e o abstracto, entre o singular e o universal e entre o simples e o complexo.

A acção humana não existe por si só, nem é resultado de causalidade única. Assim, o que importa analisar e constituir como objecto de intervenção é "o plano de significação existencial do acto". De acordo com Agra (1991) a intervenção com toxicodependentes implica uma espécie de "Pedagogia da Arte da Existência". Esta proposta pressupõe que o toxicodependente conduz a sua vida numa lógica de significação existencial em que o indivíduo, perdendo o saber e o poder do seu acto, não é capaz da gestão do prazer e do sofrimento. Pretende-se, então, favorecer a evolução do toxicodependente para planos de significação existencial superiores, integradores do acto desviante na sua história individual. Há que desocultar o lado libertador que o desvio pode revelar, compreender o sofrimento em lugar de o silenciar, «centrando-se nas "vozes caladas", nos "objectos- sujeitos" do sofrimento infligido», de modo a possibilitar ao indivíduo reconstruir a sua subjectividade (Carvalho, 2001, p.12765)

Poderíamos dizer que o objectivo principal detse modelo de intervenção na toxicodependência seria a re(construção) do toxicodependente como sujeito autopoiético, devolvendo-lhe o saber e o poder sobre o seu comportamento a partir da sua biografia: «a intervenção é um jogo de aprendizagem de uma nova ou novas maneiras (não

65 Da leitura que Carvalho (2001) desenvolve a partir de Foucault a autora sugere que talvez o

"lado oculto" da obra do autor seja, precisamente, uma arqueologia/genealogia do sofrimento que só em parte estaria por ele feita. Foucault teria realizado uma das partes de desocultação dos "discursos normalizadores geradores de sofrimento", "o lado dos que têm voz para silenciar os desviantes", faltando "erigir", diz a autora, a parte «do que fica "calado" nos sujeitos manietados pelo poder dos "jogos de verdade"», "aquele silêncio que o ser não pode quebrar porque não tem existência"(p.126).

destrutivas) de jogar à transformação de si por si próprio» (Agra, 1991, pp. 9-10). Agente perante as circunstâncias do seu consumo, pressupõe-se que o toxicodependente em tratamento não anulará o sentido do jogo do seu percurso, mas voltará a jogá-lo na senda de se "tornar outro". Ou seja, a intervenção vai no sentido do trabalho proposto pelas abordagens narrativas: a busca de um modo de jogo alternativo a partir da experiência do jogo existencial conhecido.

De facto, a abordagem de tipo processual que a TSA supõe permite dar conta da integração dos consumos de drogas, e suas significações, no contexto da história de vida do sujeito:

«A droga num dado momento da trajectória individual confere um sentido particular à vida do sujeito que, como vimos, pode ser um sentido potenciador de complexidade, de abertura experiencial, de capacidade de gestão de si, de promoção de saber e poder de si sobre si, ou pode serum sentido rigidificador e gerador de dependências múltiplas.» (Manita,2001, p.66)

As significações multipotenciais da trajectória individual traduzem também a relação do indivíduo consigo próprio, com a a sua acção, com os outros e com o mundo. O modo como as pessoas expressam os seus problemas não é independente das influências sociais e culturais. As significações pessoais não estão apenas no sistema cognitivo interno do indivíduo (Alves, 2000). Ou seja, o indivíduo não é completamente indeterminado nas suas acções e significados:

«[Há] influência das dimensões biológicas, psicológicas, eco-sociais, da sociedade e da cultura em que se insere, das condições e sistema-económico-político em que se integra, da posição social que ocupa, do género a que pertence, dos contextos em que vive, das relações que constrói, das experiências que constituem o seu vivido» (Manita, 2001, p.62)

No entanto, e por definição, o indivíduo é sujeito autopoiético pela capacidade de que é dotado para agir sobre as determinações e de recriar as condições que o afectam:

«(...)um sujeito capaz de se criar a si próprio e dar um destino e um sentido aos determinismos e indeterminismos que sobre ele actuam» (Manita, 2001, p.162).

Manita (2001), propondo a aplicação das terapias narrativas à toxicodependência, ressalta o modo como a narrativa do toxicodependente se organiza em torno de um "rótulo social estigmatizante" - núcleo de sentido que influencia a orientação existencial do sujeito de modo problemático, disfuncional, negativo:

«...quando a dependência emerge como núcleo central organizador do sentido existencial do sujeito consumidor, nessa altura a droga acaba por ocupar o lugar central na acção e nos sentidos de vida desse sujeito, sobredeterminando-os.» (Manita, 2001, p.60).

Reportando-se à TSA, a autora evoca a capacidade do sistema construir de forma criativa «...um projecto de vida dotado de um sentido próprio (...), construção que se joga na confluência de determinações e indeterminações, internas e externas (...), mesmo quando temporariamente afectado nas suas capacidades de auto-determinação e auto- organização (como acontece nas situações de toxicodependência grave)...» (Manita, 2001, p.62).

Também narrativamente o sujeito é entendido como actor social que age (pro)activamente sobre o próprio devir da existência - enquanto experiência e narra o vivido transforma recorrentemente as significações existenciais. As potencialidades múltiplas do existir prometem, assim, a construção ou reconstrução das histórias de vida.

Numa abordagem narrativa integradora, a experiência humana supõe: «uma organização coerente da diversidade de experiências numa totalidade dotada de sentido para o sujeito e partilhável com os outros (...) [mas que] tendo múltiplas potencialidades de organização e reorganização da existência, das vivências e das experiências do sujeito, seus sentidos e significados, não o fixa deterministicamente a nenhuma realidade (...)» (Manita, 2001, p.61).

Esta racionalidade narrativa66, nomeadamente a conceptualização da acção humana e da

terapia como processos de (re)autoria de narrativas múltiplas (White e Epston, 1990), poderá ser desenvolvida e potenciada na intervenção com toxicodependentes:

«À semelhança do que acontece noutros domínios, também ao nível das toxicodependências as terapias narrativas se podem revelar fundamentais na abertura do sujeito toxicodependente a um espaço narrativo mais amplo e múltiplo, onde diferentes alternativas possam ser co-construídas e legitimadas socialmente, amplificando o sentimento e sentido de autoria e de controlo sobre a vida, potenciando a transformação da sua posição existencial e experiencial dominante.» (Manita, 2001, p.66)

66 Tal como Manita (2001), pensamos que as perspectivas narrativas de compreensão dos

comportamentos apresentam dimensões comuns com a conceptualização do Interaccionismo Simbólico.

«...isso significa que todo o conhecimento está como se fosse um tricô (...) e que cada peça do conhecimento só faz sentido ou é útil por causa das outras peças ...»

Gregory Bateson67