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Sumário

1. Origens da Concentração Fundiária: uma interpretação teórica panorâmica sobre o Brasil na

1.2 Condição Colonial e Subalternidade

Ainda que a propriedade privada da terra não tenha sido inventada nas Américas, é impossível pensa-la, no contexto latino-americano, sem levar em consideração o que podemos chamar de fator colonial ou condição colonial. Florestan Fernandes, sociólogo brasileiro, irá definir conceito semelhante, o complexo colonial22. Ele se aproxima do conceito que aqui usamos – condição colonial – mas o termo de Fernandes se refere mais especificamente à “infraestrutura” colonial (onde certamente o monopólio da terra e a economia agrária se incluem), ao aparelhamento de dominação econômica montado pela Metrópole e posteriormente mantido pelas elites locais que resultam numa sociedade de classes dependente (FERNANDES, 2006). Já a condição colonial que aqui usamos – embora profundamente devedora do conceito formulado por Fernandes – se refere mais especificamente aos efeitos resultantes do complexo colonial, bem como a dominação ideológica através do pensamento eurocêntrico e a inserção no capitalismo dependente como vocação ou uma espécie de destino manifesto distorcido e invertido.

Esta condição traz questões e particularidades impossíveis de serem pensadas apenas através do pensamento hegemônico europeu, apenas através daqueles autores e autoras que, mesmo dentro do ambiente intrinsicamente crítico da academia, costumamos

22 Para mais informações sobre “complexo colonial”, conceito do qual nos aproximamos ao desenvolver

a “condição colonial”, ver Da Guerrilha ao Socialismo: a cuba (FERNANDES, 2007) e As particularidades

do Regime de Classes no Brasil Segundo Florestan Fernandes (MOTTA, 2013); sobre a questão de classes

e o capitalismo dependente que também embasam o conceito que aqui procuramos desenvolver ver

Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (FERNANDES, 2008), As Três Interpretações da Dependência

(PEREIRA, 2010) e Entre a Nação e a Barbárie: os dilemas do capitalismo dependente (SAMPAIO JR., 1999).

45 tomar como canônicos23. Pensadores de renome ao longo dos séculos, famosos por

desenvolverem teorias e obras concernentes à questão da propriedade privada (especialmente a da terra), como John Locke, John Stuart Mill, Henry Rousseau e até mesmo o Marx completado por Engels no terceiro volume de “O Capital”, são insuficientes para compreender de maneira apropriada a questão fundiária presente na América Latina, não por uma questão de competência técnica ou plausibilidade teórica, mas sim pela intrínseca apreensão europeia e eurocêntrica contidas nas obras desses autores – não obstante embebidas, em maior ou menor grau, nas luzes da Razão típicas da segunda fase da modernidade – incapazes assim de abarcar as especificidades que a colonização traz consigo24. Desta maneira, uma verdadeira descolonização do

pensamento é necessária.

23 Impossível, por exemplo, contornar um Marx, Engels, Harvey, entre outros, numa temática como a

que aqui abordamos, sem perder um considerável montante de conhecimento acumulado quanto às questões políticas, econômicas, sociais e urbanas tão caras à nós, mas se faz essencial – não apenas mero capricho pseudonacionalista – passarmos tais autores e suas ideias pelo crivo do contexto e das peculiaridades locais e nacionais. Um bom exemplo desta crítica executada concomitantemente a incorporação das ideias que nos servem é a obra Marx Selvagem, de 2013, do professor de ciência política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Jean Tible. Notável é também a abordagem que autores e autoras brasileiras fazem das questões nacionais usando, ao menos em parte, instrumental fornecido primeiramente por literaturas estrangeiras, porém

adaptando-as e, mais importante, incorporando-as a um vocabulário e a um contexto distinto de onde se originou, passando a servir apropriadamente a análise de um país com as especificidades do Brasil e de outros da América Latina. Ermínia Maricato, professora titular aposentada de Planejamento Urbano e Regional Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em sua obra Os

Impasses da Política Urbana no Brasil (Editora Vozes, 2011), traça uma pequena história de como alguns

pesquisadores e pesquisadoras, principalmente da FAUUSP, incorporaram parte da teoria da escola francesa de sociologia urbana dos anos 1970 (Jean Lojkine, Fernand Castells, Christian Topalov etc.) ao corpo teórico de autores que pensaram a sociedade brasileira (Caio Prado Jr. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Vitor Nunes Leal, Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Roberto Schwarz, Antônio Cândio etc.), passando a construir um olhar urbano embasado nessa amálgama teórica, que, ao fim e ao cabo, pensa a sociedade urbana brasileira de maneira original e eficiente. As ideias desenvolvidas nessa dissertação são grandemente devedoras dessa concepção apresentada por Maricato e do esmiuçamento do assunto durante as aulas do professor (e também orientador deste trabalho) João Sette Whitaker Ferreira (principalmente durante a disciplina Formação Urbana e Condicionantes da Produção do Espaço no

Brasil). No tangente à América Latina, as disciplinas ministradas pelas professoras Nilce Aravecchia e

Ana Castro, bem como pelo professor Fernando Lara, tiveram grande influência sobre a bibliografia específica aqui usada e parte das ideias apresentadas havia sido discutida em classe e em trabalhos específicos durante as aulas ministradas. Ainda que fora de lugar – pois numa nota de rodapé – ficam registrados os agradecimentos pela apresentação de tantas ideias e conceitos, que com certeza, mais do incorporados apenas nesta dissertação, estão incorporados no autor.

24 De modo a não generalizarmos o termo a ponto de dilui-lo e esfarela-lo teoricamente, a colonização

aqui se refere à empresa de conquista, tomada, estabelecimento e controle da América Latina. A colonização das nações e povos asiáticos, bem como o neocolonialismo empreendido na África,

possuem características próprias – mesmo que a lógica central permaneça – e merecem ser investigadas em seu devido lugar, dando ao processo de colonização destes povos sua devida importância e precisão

46 Até mesmo pensadores europeus a quem normalmente temos em alta conta, populares nos cursos universitários brasileiros e constantemente citados em artigos e trabalhos acadêmicos (incluindo, ironicamente, este), podem trazer consigo alguns vícios que acabamos por assimilar sem a devida crítica. A título de exemplo, o cientista social e geógrafo-economista uruguaio Eduardo Gudynas questiona a assimilação por vezes inconsequente, em terras Latino-americanas, de um dos mais populares pensadores e críticos da atualidade, o inglês radicado nos EUA David Harvey. Gudynas coloca dois principais questionamentos: a moda que o pensamento do geógrafo inglês se tornou entre nossos intelectuais e a insuficiência de seu pensamento para o trato das questões próprias de nosso continente. O uruguaio não descarta as ideias de Harvey como vazias ou desprovidas de interesse, mas as entende como parte de uma colonização simpática do pensamento latino-americano. Simpática pois aceitável quase sem restrições no continente, tendo até mesmo sido convidado formalmente para conversas e palestras por governos progressistas, como Equador e Bolívia (GUDYNAS, 2015). Gudynas chama a atenção para o fato de que Harvey não trata do elemento indígena em suas formulações teóricas, questão essencial na reflexão latino-americana ampla quando em vista de uma abordagem democrática e progressista – não exatamente por uma falha per se do autor, diga-se. A América Latina e os povos indígenas dificilmente são objetos de escrutínio profundo de seu trabalho, sobrando à ela a sobreposição de uma teoria concebida normalmente em planos mais gerais ou abstratos, ou mesmo construídos sobre estudos de caso presentes na realidade do autor, como cidades inglesas ou, frequentemente, Baltimore, nos EUA. Desta maneira, Harvey questionaria o sistema capitalista, mas de tal forma abstrata que não rompe com a Modernidade eurocêntrica – que incide violentamente sobre nós. Assim, segundo o sociólogo uruguaio, o autor inglês não pode ser encarado como oráculo de um continente impossível de ser completamente apreendido através de suas teses ou tê-las aplicadas genericamente nas análises sobre ele desenvolvidas.

Um interessante exemplo de intelectual com grande poder de influência ao redor do mundo (uma espécie de fenômeno pop), mas que escreve a partir de um lugar muito específico – notadamente no pensamento produzido no eixo EUA/Europa – é Slavoj Žižek. O filósofo esloveno alcançou fama mundial na última década, inclusive no Brasil,

de análise, a qual não poderia ser feita neste pequeno ensaio sem esvaziamento e simplificação desmesurada com a qual não nos alinhamos.

47 onde uma série de palestras suas aconteceram em 2012, causando grande furor, especialmente em um seminário totalmente dedicado a ele e ao seu pensamento no Sesc Pinheiros de São Paulo. A natureza eurocêntrica de seu pensamento e capacidade de avaliar criticamente as questões sociais Latino-americanas para além de um panorama marxista um tanto quanto limitado em sua ortodoxia ficou clara quando Žižek disse que, entre alguns de seus amigos, o Subcomandante Marcos – líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional em Chiapas, movimento sobre o qual falaremos rapidamente mais a frente – ele é pejorativamente apelidado de Subcomediante Marcos, uma clara tentativa de desmoralização de um movimento de importante caráter emancipatório que saiu daquilo que entendia como uma esfera marxista limitada de contestação quando percebeu sua insuficiência no trato de problemas além de seu poder de transformação – notadamente a questão indígena. Daí a conversão de Marcos, um antigo intelectual marxista, para o indigenista que hoje é ao lado da população indígena e camponesa de Chiapas, a qual se juntou em um levante – fundamentalmente ligado à posse da terra – deflagrado em janeiro de 1994 (MIGNOLO, 2015).

Trazemos aqui essa discussão sobre a emancipação colonial, a quebra das correntes da condição colonial com o objetivo de mostrar como a posse, propriedade e concentração da terra passa por um movimento também ideológico de amplo espectro. A impossibilidade de transcender a Modernidade sem a perspectiva da diferença colonial (ESCOBAR, 2007), ou a percepção daquilo que aqui estamos chamando de condição colonial, é latente nas políticas conservadoras – herdeiras das antigas políticas coloniais e imperiais, com cara nova, mas preservando a mesma essência de manutenção do poder na mão de algumas elites – que são aplicadas nas nações latino-americanas nas últimas décadas, não obstante os avanços alcançados em certas áreas – frutos de luta e pressão da sociedade civil organizada.

As revoltas e protestos de amplo espectro são exemplos de como a Modernidade incide sobre populações ao redor de todo o mundo, não necessariamente latino-americanas, mas subjugadas de alguma maneira, mesmo que nos países do capitalismo central. O antropólogo Viveiros de Castro aponta o ano de 1968, ano de agitação social em diversas nações ocidentais, como um acontecimento que se consumou sem se consumar, ou seja, nada de fato aconteceu em termos concretos (CASTRO, 2010), ao menos no que concerne à realização das aspirações revolucionárias de seus agentes em elementos palpáveis. Após

48 1968, Castro aponta, uma vez mais, o triunfo da Razão – ou Razão-força em seus termos – sobre as energias sociais que buscavam a transformação da sociedade ocidental. Razão esta a mesma herdeira da Modernidade europeia apontada por Dussel, a mesma que justifica a “guerra justa” e o “triunfo da civilização sobre a barbárie”, onde o eurocentrismo galopante e dominante – o Império nas palavras de Castro – tudo conquista, inclusive a terra, não mais propriedade meramente ligada aos valores da nobreza onde possuía status de distinção social, mas agora objeto do capital que sobrepuja até mesmo os valores aristocráticos ligados à propriedade.

[...] la Razón-fuerza que consolidó la máquina planetaria del Imperio em cuyas entrañas se realiza el acoplamiento místico del Capital com la Tierra - la “mundialización” [...]25

A propriedade da terra, é claro, não adquire os valores burgueses ligados ao capital somente no pós-1968 – Marx já o apontava no terceiro volume de sua obra O Capital – entretanto, após as convulsões ocidentais de 1968, do sonho pequeno burguês onde jovens franceses empunharam pedras e paus atrás de barricadas como na comuna de Paris em 1871 (HOBSBAWM, 1969), a razão moderna estabelece violentamente a impossibilidade desse tipo de atitude perante seu sistema, a necessária supressão das revoltas contra um inimigo que já não é uma pessoa ou uma categoria social, o monarca ou a burguesia. É a totalidade dos modos de ação do poder socioeconômico despersonalizado, ‘racionalizado’, burocratizado...26 É claro que os protestos, as revoltas contra o “sistema”, não deixaram de

acontecer em décadas posteriores, como provam as chamadas “Primaveras Árabes”27, os

protestos na Praça Tahrir na Turquia, o Inverno Ucraniano, Ocuppy Wall Street, as

25 CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafisicas Canibáles: líneas de antropologia postestructural. Buenos

Aires: Katz Editores, 2010 – pp. 85

26 TOURRAINE, Alain. Le mouvement de mai ou le communisme utopique apud HOBSBAWM, Eric J. Revolucionários: ensaios contemporâneos. São Paulo, Paz & Terra, 2015 – pp. 310.

27 Apesar de representarem levantes contra os “sistemas locais”, devem ser consideradas distintas das

demais revoltas apontadas neste parágrafo por conta do caráter ditatorial dos governos que diversas multidões enfrentaram em seus respectivos países, bem como o peso que a religião oficial de cada nação (muitas vezes mescladas ao próprio regime governamental) exercia. Compará-las pari pasu com, por exemplo, as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, seria um erro sem levar em conta os elementos diferenciais apontados, mesmo que ambas apresentem raízes (ainda que distantes) na problemática capitalista globalizante.

49 Jornadas de Junho no Brasil. Pode-se observar – como em 1968, guardadas suas devidas especificidades – o mesmo caráter de uma revolta/protesto contra um sistema sem rosto28,

sem o conteúdo de classes que instiga greves e outros levantes tipicamente classistas29. E,

também como em 1968, suprimidas de maneira violenta, seguidas de reorganização do sistema em torno dos agentes que deflagraram o processo de questionamento, terminando por exaurir os protestos até seu paulatino desaparecimento (ou sobrevivência modesta através da institucionalização na forma células ou movimentos sociais de menor expressão, como acontece frequentemente).

A citação dos dois autores europeus acima, do francês Alan Torraine e do inglês Eric J. Hobsbawm tem por intenção mostrar as conclusões que ambos os autores chegaram em período tão próximo ao Maio de 1968 na França: Tourraine publica o livro em questão ainda em 1968 e Hobsbawm, em ensaio crítico ao colega francês, publica seu artigo no ano de 1969. Seguindo modelo de ensaio crítico semelhante, o antropólogo e crítico literário Antônio Risério30, analisa duas publicações recentes que versam sobre as Jornadas de

Junho de 2013 no Brasil – “A forma bruta dos protestos”, de Eugenio Bucci, e “A democracia impedida: o Brasil no século 21”, de Wanderley Guilherme dos Santos. Risério chega a conclusões semelhantes quanto a ambas as obras31 (produzidas temporalmente

próximas aos acontecimentos que analisam – a exemplo das análises dos autores anteriormente citados sobre o Maio francês de 1968), porém analisa a abordagem das

28 Pode-se argumentar que o mote de Wall Street (“against the 1%”) pode conter conteúdo classista ou

mesmo as Jornadas de Junho de 2013, onde a periferia mal atendida por um transporte público que aumentava de preço sem seus parcos salários acompanharem o mesmo ritmo. Porém, estes protestos perderam seu conteúdo de crítica radical quando cooptados por forças conservadoras que viram neles a oportunidade de abafar suas reinvindicações ao mesmo tempo em que suas pautas, muitas vezes reacionárioa, eram colocadas em evidência. Se conteúdo classista existiu, ele foi suprimido ainda dentro das próprias manifestações.

29 Seriam necessárias outras elucubrações sobre a aplicabilidade do marxismo à essas revoltas para

obtermos um trabalho teórico de fato válido sobre a questão, mas já podemos inferir que ele é mais uma ferramenta – não obstante importante – na análise (a qual poderia se beneficiar das proposições de Dussel?).

30 RISÉRIO, Antônio. O Preço da Passagem in Revista Quatro Cinco Um. Vol. 2. p. 4 e 5. São Paulo, 2017. 31 Mesmo entendendo que as Jornadas ainda não foram completamente compreendidas ou exploradas

teoricamente, seja nas obras que ele analisa, seja no restante da bibliografia que versa sobre o tema, Risério procura extrair das duas primeiras aquilo que pode contribuir ao debate. Na obra de Bucci ele encontra um caráter demasiado pautado pela semântica, enquanto a gênese do protesto não é desvendada com propriedade. Já em Santos, o crítico literário e antropólogo vê uma espécie de tentativa de evitar o desgaste da imagem do Partido dos Trabalhadores (PT), donde, não obstante boa análise do cenário pré-Golpe Parlamentar, os protestos das Jornadas de Junho de 2013 não podem ser completamente compreendidos.

50 Jornadas de Junho em cada publicação com a perspectiva política ganha a partir do Golpe Parlamentar brasileiro consumado em de agosto de 2016, o qual, no desenrolar do governo interino, resultou na fragilização das instituições de proteção da terra – principalmente de grupos indígenas, quilombolas e pequenos agricultores.

Tais protestos em junho de 2013 no Brasil teriam aberto – ou mesmo renovado – o surgimento de “manifestações de corpo presente” (a manifestação política através da ocupação do espaço público) com forte presença de pessoas de perfil conservador32. As

pautas então se alteram e se diluem na cascata de reivindicações que nem sempre tem um objetivo concreto claro – a vagueza com que as reivindicações contra corrupção eram colocadas contrastavam rigorosamente com a objetividade dos motivos iniciais das manifestações, o impedimento do aumento da tarifa – abrindo espaço para a mudança de perfil das próprias manifestações. Com um patriotismo ululante e por vezes ufanista, os novos protestos ganharam bandeiras do Brasil, hino nacional, ojeriza a quaisquer tons de vermelho, coreografias “contra Dilma”, bonecos infláveis gigantes (os pixulécos) e fantasias que remetiam a políticos no poder. Uma espécie de espírito de micareta tomou conta das ruas, que não mais seriam as mesmas: os movimentos sociais organizados se retiravam das novas manifestações que eram marcadas – ou então faziam questão de deixar claros os espaços ocupados por eles e aqueles que “o outro perfil de manifestante” agora ocupava – e as marchas e concentrações de caráter conservador cresciam, pedindo a cabeça da então presidenta Dilma Rousseff e daqueles que entendiam ser culpados por uma alegada crise econômica. Se os protestos já não eram “apenas pelos RS 0,20” do aumento da tarifa do transporte coletivo, a luta contra tal aumento, e mesmo a luta pela gratuidade do transporte coletivo, foi deixada de lado como pauta das grandes concentrações e a pauta política em direção às eleições presidenciais e governamentais do ano de 2014 ganhou corpo em ambos os lados do espectro político.

Assim, Risério conclui em sua análise que a eleição presidencial ignorou por completo o estopim dos protestos, a força com que irrompeu a luta capitaneada inicialmente pelo Movimento Passe Livre (MPL). Nas palavras de Risério, o establishment político brasileiro reprimiu, não entendeu e ignorou 201333.Como resultado, mesmo após a vitória

32http://diplomatique.org.br/os-governos-e-as-ruas/ - último acesso em 13/07/2017

33 Acrescentariamos que as forças conservadoras brasileiras, principalmente aquelas de direita,

souberam compreender as manifestações no sentido de delas terem se aproveitado (ou daquilo que elas se tornaram ao seu final, uma grande massa verde-amarela com protestos majoritariamente vagos) para a composição do quadro que levaria ao impeachment de Dilma Roussef.

51 de Rousseff nas eleições presidenciais, uma série de movimentos e agrupamentos de caráter conservador se estruturaram em torno de franca e agressiva oposição ao governo reeleito, como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL) 34, uma corruptela paródica-irônica de

siglas em relação ao MPL, movimento responsável por deflagrar a luta contra a tarifa em 2013. Esse alinhamento de forças conservadoras que se estruturavam na sociedade civil deu respaldo às forças conservadoras políticas para darem início ao processo de Golpe Parlamentar que resultou no impeachment da presidenta então eleita. A mudança de governo, após consumado o impedimento presidencial, a instituição de um programa governamental não referendado pelo voto popular, procurou aprovar rapidamente transformações legislativas estruturais na sociedade brasileira. O tempo era então limitado pela iminência das eleições de 2018: existe pressa, tudo deveria ser feito rapidamente.

A rapidez com que o governo ilegítimo de Michel Temer propôs, requentou e colocou à apreciação da Câmara e do Senado antigas propostas engavetadas impressiona a qualquer um acostumado a morosidade normalmente ligada ao legislativo. Não obstante, uma análise rápida dessas proposições que passam ao largo da legitimação do voto popular releva que o objeto de nossa investigação nesta dissertação, a terra e sua função social enquanto propriedade, é ainda central.

Os donos do poder fazem então seu movimento no tabuleiro latifundiário brasileiro, mas agora reis e rainhas tem permissão total para movimentar livremente torres e cavalos, sem se prender às limitações em forma de L ou à ortogonalidade antes imposta.