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Condicionantes dos Caminhos da Representatividade Feminina

No documento Tese Erly Maria (páginas 46-51)

Capítulo 2 Estreia do Matriarcado em Terras de Oligarcas Patriarcais: a

2.3 Condicionantes dos Caminhos da Representatividade Feminina

A política como os demais campos sociais é um campo de forças e de lutas em que a atuação dos agentes é realizada com a utilização de meios diversos e em busca de objetivos diferenciados, levando-se em consideração o capital político de que se pode dispor. Não se pode dissociar a formação desse capital político com os demais capitais que o sujeito acumula ao longo de sua atuação social. No caso específico das mulheres, o «habitus» tomando-se de empréstimo o termo usado por Bourdieu, funciona como “matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações [...] impõe[m]-se a cada gente como transcendente[s].” (Bourdieu, 2010, p .45).

Desse modo, ao romper a barreira do espaço público e chegar à arena política, a mulher se apresenta com as marcas de gênero que permitem simultaneamente a inclusão e a exclusão, delimitando espaços de atuação. Assim, além de ser mais árdua a chegada das mulheres na política, elas ainda precisam enfrentar os estereótipos para vencê-los com o capital político de que dispõem ou conformar-se com um papel secundário no jogo da política.

Mesmo com maior nível de escolaridade que os homens, constituírem mais da metade do eleitorado e serem quase metade da população economicamente ativa do país, as mulheres brasileiras são subrepresentadas nas esferas do poder executivo, legislativo e judiciário. E em uma democracia representativa, é de se esperar que o corpo de eleitos represente aproximadamente o corpo de eleitores.

Deve-se reconhecer que desigualdades de raça, etnia, classe e gênero ainda estão fortemente presentes na sociedade brasileira. No que diz respeito ao gênero avanços podem ser contabilizados, especialmente no que se refere às políticas públicas que tomaram forma graças aos movimentos de mulheres que insistiram em colocar suas demandas nas agendas políticas. No entanto, os progressos nesse setor não foram homogêneos e nem tampouco fundamentalmente democráticos.

A Constituição Federal de 1988 assegurou as liberdades civis e políticas e fortaleceu o movimento das mulheres que, com a criação Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, garantiu um espaço institucional relevante para a causa feminista. Na década seguinte foi importante o papel das organizações não-governamentais no sentido de articular e mobilizar movimentos nacionais e internacionais em prol da criação de políticas públicas que enfrentassem as questões de desigualdades que afetam o exercício pleno da cidadania. Nas primeiras décadas do século XXI, a luta continuou e a partir da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, avanços foram obtidos com a inclusão de um conjunto de demandas em documentos e planos governamentais que se constituíram em orientações para políticas públicas com transversalidade de gênero, raça e etnia (Pitanguy & Barsted, 2011). No entanto, apesar de todas essas conquistas, as mulheres que optam pelo caminho da representatividade política ainda encontram entraves de natureza social, econômica e política.

A Lei 12.034 de setembro de 2009 determina que do número de vagas disponíveis para cada partido político ou coligação, o mínimo de 30% e o máximo de 70% deverão ser preenchidas por candidaturas de cada sexo26. Ao contrário da situação anterior quando a participação feminina era vedada pelos partidos, esses, agora, a fim de cumprir a determinação legal, procuram mulheres para comporem suas listas partidárias como candidatas. O que a primeira vista parece ser um avanço, na prática assim não se mostra. A obediência à Lei não apresentou alterações substanciais na participação feminina na política, mas funcionou como incentivo para que as mulheres encontrassem uma maneira de ingressar nas instâncias partidárias, embora nos partidos não recebam tratamento igualitário ao dispensado às candidaturas masculinas.

Nas últimas eleições municipais, em 2012, considerando as candidaturas de todo o país, a presença feminina atingiu o percentual de 31,6% (TSE, 2012), cumprindo, assim, o determinado na Lei de Cotas (30%) para a formação das listas proporcionais.

Para a população brasileira é preciso mais do que mero atendimento às cotas. Pesquisa desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e pelo Instituto Patrícia Galvão, em abril de 2013, revelou que oito entre dez brasileiros são favoráveis à participação paritária de mulheres e homens nas instâncias legislativas municipais, estaduais e federais. Dos

26 O parágrafo terceiro do artigo 10 da Lei 12.034 passou a vigorar com a seguinte redação: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”.

pesquisados, 74% afirmam acreditar que só há democracia de fato com a presença de mais mulheres nos espaços de poder e de tomada de decisão (Ibope/ Instituto Patrícia Galvão, 2013)27

A desejada paridade, no entanto, não será tão prontamente alcançada, pois como alerta o demógrafo do Instituto Brasileiro de Estatística, José Eustáquio Diniz28, se o avanço da

participação feminina continuar no ritmo atual, serão necessários 150 anos para que se consiga obter, pelo menos nos espaços municipais, a igualdade entre os sexos.

A lentidão da participação feminina na disputa eleitoral se justifica, no entender da senadora Lúcia Vânia (Castro & Viseu, 2007), pelas dificuldades que as mulheres encontram na obtenção de financiamentos privados porque ainda não estão inseridas nos grupos econômicos. Ela observa também que as campanhas são dispendiosas e que as mulheres também não encontram espaço para disputar verbas com os homens dentro dos partidos. Para a referida senadora, a mulher que atua em sindicatos tem mais facilidade de conseguir financiamento porque esses ambientes são mais democráticos do que os partidos políticos.

Por sua vez, para a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal pelo Partido Social Brasileiro, Luiza Erundina, “os partidos políticos são mais resistentes à emancipação política das mulheres do que quaisquer outras instituições e, dentro dos partidos, não houve nenhum avanço”. Segundo a visão da deputada “a limitação de representantes mulheres no Congresso é fruto das direções autoritárias, totalizadoras e machistas dos partidos políticos. Mesmo os partidos mais progressistas, mais populares e de esquerda não têm uma política de incorporação de mulheres”. E acrescenta: “durante os processos eleitorais [os partidos] não apoiam e estimulam as candidaturas das mulheres, não ajudam a resolver os impasses, as dificuldades de toda ordem que a mulher enfrenta ao disputar o poder nas eleições em geral.”29

Como explica a senadora Ana Rita Esgário,30 a sub-representação da mulher na política se deve a diversos motivos, dentre os quais:

27Ibope/ Instituto Patrícia Galvão (2013). Mais mulheres na política. Acedido a 16 de Fevereiro de 2014 em http://www12.senado.gov.br/senado/procuradoria/arquivos/pesquisa-mais-mulher-na-politica-do-instituto-ibope- e-patricia-galvao.

28 Campanha estimula filiação de mulheres a partidos políticos (2013). Câmara dos Deputados. Brasília. Acedido a 17 de Fevereiro de 2014 em: http://www2.camara.leg.br/comunicacao/institucional/noticias- institucionais/campanha-estimula-filiacao-de-mulheres-a-partidos-politicos.

29 Agência Patrícia Galvão (2011). Os partidos políticos são mais resistentes à emancipação política das mulheres do que quaisquer outras instituições. Entrevista com Luiza Erundina. Acedido a 20 de Maio de 2013 em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1422:luiza-

erundina&catid=100.

30 Esgário, Ana Rita (2010) .Página Pessoal Por uma democracia representativa e participativa. 27/12/2010. Acedido a 30 de Junho de 2011 em <http://www.anarita.com.br/

“a ideia ainda reproduzida de que à mulher cabe o espaço doméstico ou privado, e não o público, o da política, culturalmente reservado aos homens”. Corrobora para a manutenção desta desigualdade no Parlamento, o não cumprimento por parte dos partidos políticos brasileiros da legislação eleitoral que assegura cota por sexo. Tais distorções fazem com que a democracia brasileira não seja representativa e participativa em relação a todos os segmentos da sociedade.”(s.p)

Miguel e Biroli (2010, p. 653) observam que a sub-representação das mulheres nas esferas do poder político baseia-se em três vertentes:

“(1) uma que enfatiza o caráter patriarcal subjacente às instituições políticas liberais [...]; (2) outra que foca os padrões culturais e de socialização que constroem o político como espaço masculino e inibem o surgimento da "ambição política" entre as mulheres [...]; e (3) aquela que destaca os constrangimentos estruturais à participação política das mulheres, que possuem, via de regra, menos acesso aos recursos econômicos e muito menos tempo livre que os homens”.

A primeira vertente é explicada pelos referidos autores por meio da oposição público/privado e da contínua reprodução da prática de subordinação feminina, com a divisão sexual do trabalho, com resultado e desdobramento de valores e instituições. A dualidade existente entre o público e o doméstico suporta os direitos individuais no espaço público e justifica a desigualdade no âmbito privado. Isto também acontece com a divisão sexual do trabalho ao «legitimar» posições desiguais para homens e mulheres, estabelecendo conexões e rupturas entre essas esferas. Mesmo se se partir do pressuposto que na sociedade brasileira já não existe o patriarcado em sua forma tradicional, ainda não se pode afirmar que se está livre da dominação masculina em suas novas formas.

Citando argumento de Carole Pateman31, Miguel e Biroli (2010, p. 659), apontam que

“o sexo é definidor de pelo menos duas categorias de indivíduos no patriarcalismo moderno: homens livres, que são os cidadãos atuantes da sociedade civil e mulheres naturalmente subordinadas, que são definidas em sua posição relacional no âmbito familiar”.

A segunda abordagem a respeito da sub-representação feminina nas instâncias de Poder justifica-se na limitação imposta por fatores materiais e simbólicos que inibem o pleito à candidatura de mulheres, reduzem a capacidade de disputa eleitoral, consolidam estereótipos a

respeito da trajetória da mulher no espaço público, naturalizando formas de comportamento que refletem uma visão de mundo construída socialmente.

O território dos partidos políticos é normalmente masculino, com uma visão padronizada do comportamento a ser adotado por um candidato o que gera vieses em relação às mulheres e suas especificidades de gerenciamento das campanhas políticas, uma vez que elas possuem mais dificuldades de dedicação integral à política, atreladas que estão, regra geral, ao espaço doméstico que lhes impõe determinados ônus, consequentemente, deixando-as com menos tempo livre. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) indicam que a média de horas gastas pelas mulheres participantes do mercado de trabalho em dedicação aos afazeres domésticos é mais que o dobro das dispendidas pelos homens. Enquanto elas dedicam, em média 22 horas semanais a essas atividades, os homens destinam apenas 9,5 horas de seu tempo às tarefas do lar32.

Esses empecilhos concorrem para a baixa representatividade feminina nas diferentes esferas políticas, e como ressalta Pinheiro (2007, p. 33) “a pouquíssima presença feminina nesse espaço viola o princípio da democracia representativa”, uma vez que as decisões políticas como um todo as afetam igualmente, daí a necessidade de participação e intervenção nos processos que lhe dizem respeito como mulheres e cidadãs.

Por outro lado, deve-se registrar que no âmbito doméstico tem crescido a presença de mulheres como «pessoas de referência»33: no ano de 1996, esse percentual era de 20,81%, em 2000 subiu para 26,55% e em 2010 passou para 38%, indicando que elas passaram a influenciar nas decisões domésticas e familiares (IBGE, 2010)34. Pelos dados apresentados parece que o velho estereótipo da «rainha do lar» continua ainda valendo, mas agora em outro contexto, acrescido do aumento de responsabilidades e encargos econômicos.

No espaço da competição política os estereótipos de gênero podem ser reforçados pelos meios de comunicação e até mesmo pelo comportamento que as candidatas exibem, influenciando a visão dos eleitores. Há uma expectativa socialmente disseminada que as mulheres eleitas irão se engajar na denominada «Soft Politics», tratando mais de assuntos voltados para o social como direitos da criança e do adolescente, da mulher, do idoso, deixando

32 IBGE (2010). Síntese de Indicadores Sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira. Acedido a 20 de Maio de 2013 em

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2010 /SIS_2010.pdf.

33 A denominação «chefe de família» foi abandonada pelo IBGE em atendimento às questões de gênero, uma vez que «chefe» remete à autoridade.

para os homens a «Hard Politics», núcleo do processo político, compreendendo, por exemplo, exercício do poder e regulação do Estado e questões relacionadas à economia. Uma análise das proposições apresentadas35 pelas senadoras, atuantes na presente legislatura, revela que o maior

percentual de temas abordados nas proposições recai na categoria denominada «Soft Politics». Esse achado condiz com as formulações teóricas a respeito do desenvolvimento do senso moral diferenciado entre os gêneros, levantadas por Gilligan (1982), ao destacar que a menina desenvolve sua concepção de identidade em um contexto relacional, em que espera que seus atos sejam avaliados por padrões de responsabilidade e de cuidado. É nesse sentido que se menciona o chamado «campo político» de Bourdieu, neste caso não se referindo apenas ao capital político que trazem consigo, mas também ao alargamento das posições ocupadas que se hierarquizam e solidificam estereótipos.

No documento Tese Erly Maria (páginas 46-51)