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No Brasil, “ser Uber” pode ser descrito através de vários sentimentos: frustação, desesperança, desilusão etc. Tal frase parecer egoísta e insensível, visto que, principalmente com a pandemia do covid-19, o desemprego, a fome e a miséria atingiram níveis alarmantes no país. Todavia, tal sentimento de desgosto é o que circunda uma grande parte dos motoristas -- seja de veículos, moto ou até mesmo bicicleta. O sentimento de trabalhar 10-11-12 horas por dia para, no fim do mês, receber um salário menor que o mínimo (a não ser que o motorista arrisque sua própria vida trabalhando absolutamente todas as madrugadas), sem benefícios de qualquer espécie, é assustador – além de, claro, ver um patrimônio automobilístico ser desgastado pouco a pouco, perdendo seu valor real a cada dia, sem a garantia de que ele irá para sempre cumprir os requisitos mínimos para trabalhar com apps. E assustador porque, teoricamente, essa é a última das opções. E sendo a última das opções, o que espera do trabalho? Qual seria o próximo degrau? Em um contexto de crise vertiginosa e ascendente no país?

A impressão e o sentimento que tais aplicativos buscam passar para o público em geral, tendo como “aplicativo-mãe” a Uber, é que chegaram no país com o objetivo de explorar um mercado produtivo para expandir os objetivos da empresa, mas que, no fim das contas, com o passar do tempo, simplesmente passou a notar que o sofrimento e a necessidade do povo brasileiro era um campo fértil econômico e mercadológico para prosperar.

Qualquer ser humano desesperado, em busca de comida para sua família, entre outras adversidades, não iria titubear em aceitar um trabalho insalubre com péssimas condições e perspectivas.

Este cenário não é otimista. Não há sinais de que o panorama melhore. Pelo contrário:

aumento desenfreado do dólar, aumento da miséria e do desemprego, instabilidade entre os Poderes constituídos no país (afastando assim mais ainda investidores, empregadores e quaisquer meios de investimento público). Em um contexto mais amplo, a Uber é a parte maior de uma engrenagem da implosão do capitalismo, no sentido de que sua existência é uma consequência das mutações do nosso sistema econômico e possível implosão em algum momento da história.

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Outro fator que gera grande incomodo como motorista é ter que lidar com a glamourização do sofrimento. Não é frequente ter que se confrontar com indivíduos mais abastados, que pouco tiveram que trabalhar na vida, que acham que trabalhar sob sol, chuva ou frio durante 10, 11 ou 12 horas, sendo pago de maneira miserável, algum tipo de exemplo de superação, quando na verdade o trabalhador só quer sobreviver. Não é coincidência que, em todos os momentos em que tivemos confrontos argumentativos com tais indivíduos, em nenhum desses foi com uma pessoa abaixo da classe média, ou que trabalha, ou já trabalhou com aplicativos eletrônicos. A realidade brutal dificilmente já bateu na porta dessas pessoas, e espalhar o falso pressuposto de que tais pessoas são vencedoras e admiráveis – por trabalhar excessivamente sem justo retorno – é apenas (mais) um obstáculo no que concerne a conscientizar a população de como funciona a dinâmica não só do trabalho em si, mas também da intenção do sistema trabalhista por trás de toda essa desgastante estrutura. Se boa parte da população dá aval a tal sistema, com que moralidade os trabalhadores que confrontam para, de início, pensar que podem e merecem mais, e em seguida lutar para isso? Essa alienação do trabalho gerada neste processo com muita frequência cria uma cortina de fumaça no próprio trabalhador, que acaba por não entender plenamente a situação em que está inserido socialmente.

Evidentemente, a dinâmica de compra, venda e mercadológica de um modo geral mudou muito com o sistema de aplicativos. Hoje, é praticamente impossível sobreviver sem seu uso, dado que já é parte intrínseca do sistema. O que deve ser feito é valorizar o trabalho destas pessoas. E quando dizemos valorização, não falamos apenas em criar textos gigantes em redes sociais, que, no fim das contas, pouco tem de efeito prático. Mas também denunciar as condições de trabalho, lutar estruturalmente por melhorias neste ambiente de trabalho de forma institucional.

Em suma: “ser Uber” no Brasil é lidar com as adversidades sociais e econômicas em seu aspecto mais sublime e mais selvagem.

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BIBLIOGRAFIA

Livros e artigos

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https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/history/

https://www.youtube.com/watch?v=G_axxGLCbGY

https://www1.folha.uol.com.br/o-melhor-de-sao-paulo/servicos/2018/04/1966515-sp-e-a-cidade-que-mais-usa-uber-no-mundo-aplicativo-e-citado-por-52-dos

entrevistados.shtml

Revista Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/a-uberizacao-das-relacoes-de-trabalho/>. Acesso em: 09 ago. 2021

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