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A sociedade contemporânea vivencia atualmente um de seus momentos mais delicados, considerando o crescente aumento do número de mortes no Brasil e em outros países do mundo provocadas pelo vírus SARS-CoV-2 (Covid-19), uma peste tão impiedosa quanto a que assolou a capital da Grécia entre os anos 430 a.C. a 427 a.C., dizimando parte significativa da população ateniense. Em momentos assim, observamos com grande pavor, além da perda de vidas humanas, uma significativa perda da noção de humanidade, fazendo com que a expressão de sentimentos tais como empatia, esperança e compaixão se tornem cada vez menos existentes ou perceptíveis em meio às relações cotidianas. Diante desse cenário, que deveria ser de distanciamento social para contenção do vírus, mas que vem se transformando em um distanciamento do indivíduo em relação a sua própria humanidade, a arte, sobretudo a poesia trágica, surge como uma possibilidade, uma válvula de escape, um bote salva-vidas, enfim um antídoto, se não para o corpo, pelo menos para a alma, que perece em meio ao terrível caos que presenciamos. Através deste artigo, aplicamo-nos em defender que o contato com a tragédia grega e com o sentimento trágico que ela produz são relevantes e especialmente necessários em nossos dias, sobretudo em virtude do seu caráter pedagógico e humanizador.

Através de nossa exposição da peça Édipo Rei, de Sófocles, e com base nas principais ideias vindas do pensamento de renomados estudiosos da tragédia grega, buscamos investigar a natureza do trágico, que opera dentro das obras dramáticas produzidas na Grécia por volta do

século V para o século IV. Conforme ressaltamos introdutoriamente, quando nos propomos a compreender mais sobre as tragédias e suas relações com o trágico, uma questão em específico chama à atenção: “qual é a natureza do trágico?”. Movidos primordialmente por essa demanda, é que demos início a nossa investigação, em que buscamos, através de uma revisão bibliográfica específica, refletir com maior profundidade sobre essa problemática.

O primeiro teórico revisitado em nossa pesquisa foi o renomado filósofo ateniense Aristóteles, que em sua obra Poética, faz referência à peça teatral Édipo Rei, de Sófocles, apresentando-nos, em linguagem pedagógica, um detalhamento dos aspectos teóricos concernentes à elaboração da “verdadeira” tragédia grega. Desta forma, o Estagirita não nos oferece propriamente uma crítica literária sobre o problema do trágico.

Enquanto Aristóteles desenvolve o drama grego no plano estético, enfatizando os erros e acertos que perpassam seu processo de criação, o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe, através de suas opiniões e obras, reflete de modo mais aprofundado sobre à natureza do trágico, posicionando-se, em sua concepção, dentro de uma ótica mais fatalista, a qual conhecemos por Contradição Irreconciliável. Partindo das ideias de Goethe, Albin Lesky defenderá que a natureza do trágico presente nas tragédias áticas decorre da chamada Dupla causalidade, uma tensão entre dois pólos distintos: divino e humano, contingência e finitude.

Esse conflito que se origina e segue afetando tanto o mundo dos homens quanto o dos deuses, encaminha-se na tragédia até o seu desfecho final, que pode se dar tanto pelo apaziguamento da situação, produzindo assim um final feliz, quanto por sua via mais trágica, ou seja, através de um despedaçar-se do herói trágico por meio da morte.

Após nossa análise das definições trazidas por Goethe e Lesky, fomos em direção as ideias de outro importante pensador do século XVIII, Johann Christoph Friedrich von Schiller, que em seu O Teatro Considerado como Instituição Moral, nos fala sobre o teatro trágico e sua aplicação moral na sociedade. Schiller encontra na filosofia kantiana as bases para o desenvolvimento de seu pensamento filosófico, no qual propõe uma junção entre os conceitos de belo, sublime e trágico para demonstrar como os indivíduos são afetados em sua moral por meio da fruição que ocorre no teatro trágico.

Já no século XX, destacamos as ideias do psicanalista austríaco Sigmund Freud, que em seus estudos, que trazem consigo um profundo exame das tragédias gregas, desenvolve toda uma ciência a respeito do pensamento humano. Ressaltamos em especial suas obras Escritores

criativos e devaneio (1908) e A interpretação dos sonhos (1900), textos em que o conhecido pai da psicanálise reflete sobre o processo de desenvolvimento mental dos indivíduos, desde a sua infância, e como esse processo está diretamente vinculado as artes, especialmente a tragédia.

Por fim, podemos dizer que, diante dos materiais teóricos examinados, desejando conhecer mais sobre a natureza do trágico, com base na peça Édipo Rei, de Sófocles, concluímos que as discussões em torno dessa temática jamais estarão concluídas no campo da crítica literária, tendo em vista os infindáveis caminhos que a busca pelo seu esclarecimento nos conduz. Não obstante essa impossibilidade, reafirmamos nosso encantamento pelas tragédias gregas e por esse misterioso sentimento que delas magnificamente emana.

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Anderson Alves Pereira

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