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PARTE II — ACESSO À INFORMAÇÃO DE GOVERNO NO BRASIL 1 A informação no Estado Brasileiro

Nível 9 — permite consultar todos os documentos e informações de qualquer UG ou órgão do sistema.

1. Considerações finais

De início, reforça-se a premissa segundo a qual o orçamento público é uma atividade de interesse público por excelência. Ainda que durante as entrevistas tenha sido apontada a tentativa de esvaziamento dessa peça da administração pública, as leis que compõem o ciclo orçamentário na esfera do governo federal — Plano Plurianual de Ação Governamental (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) — ainda são as fontes que reúnem o maior número de informações sobre ações de governo. Concentram-se nessas peças as diretrizes para elaboração de políticas públicas, concentrando o Orçamento Geral da União 80% das verbas públicas, incluindo gastos de manutenção de serviços, investimentos e encargos financeiros para pagamentos de dívidas (SUCUPIRA, 1997). Daí se apresenta a importância de acompanhamento da execução da proposta orçamentária como um dos itens necessários para fiscalização da coisa pública. Isso pode ser considerado o ponto de partida para analisar a relação entre o nível de acesso das informações governamentais e o amadurecimento do processo democrático numa instituição porque implica em prestar contas sobre o gasto do dinheiro público. Há que se observar que a análise da execução orçamentária não oferece a visão global sobre as possibilidades de transparência e de fiscalização e controle de todo o processo orçamentário, pois ainda seria necessário estudar o nível de acesso à informação de governo durante a elaboração dos projetos de planejamento das políticas públicas — durante a elaboração da LOA, da LDO e do PPA. Mas o momento da execução já permite identificar alguns preceitos básicos que envolvem o processo orçamentário.

a. Quanto ao surgimento da preocupação com a transparência

A história de implantação do Siafi e da ampliação de seu uso mostrou que a preocupação com a transparência administrativa, especificamente nas questões relativas ao orçamento, é recente. O Siafi foi desenvolvido em 1986 e implantado em 1987 para controle interno das contas do Executivo, mas só a partir de 1990, ou seja, três anos depois, é que ele começou a

ser utilizado como fonte de informações para fiscalização da execução orçamentária, devido à reivindicação da oposição123. Ainda assim, a importância de democratização desse sistema tomou mais força a partir de 1993, quando uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito investigou denúncias de corrupção na elaboração e execução do Orçamento Geral da União e fez perceber quanto a concentração de informação em grupos restritos favorecia a formação de redes de corrupção. Neste ano, o Senado havia firmado o contrato com a Secretaria de Tesouro Nacional (STN), segundo o qual o Senado passou a executar seu orçamento via Siafi e recebeu autorização para que parlamentares e assessores tivessem nível máximo de acesso à sua base de dados. As informações colhidas pelo Siafi ajudaram a agilizar o trabalho de investigação das denúncias de corrupção pela CPMI. A transparência, a partir de então, ganhou lugar nos discursos políticos das autoridades competentes. Na prática, a realização desse ideal é um tanto mais árdua, como podem mostrar aqueles que precisam recorrer às informações de governo referentes ao orçamento.

b. Potencial de transparência x aplicação

Ao tratar o Siafi como instrumento auxiliar do trabalho de acompanhamento e fiscalização da execução orçamentária, é necessário antes observar que essa relação não pode ser feita de maneira direta. Não há como negar que o Siafi é hoje a principal fonte de informação sobre a execução orçamentária. Mas, originalmente, ele não foi criado com a finalidade de ser um sistema de fiscalização externa; sua função era de centralizar, organizar, padronizar e sistematizar as informações referentes às contas do governo federal para tornar mais fácil o acesso às informações pelos profissionais responsáveis pela gestão do orçamento. Ou seja, o Siafi é um sistema de controle interno que permitiu agilidade de aceso a informações sobre o orçamento público. Mas se esse acesso permanecesse restrito aos órgãos do Executivo, o nível de transparência continuaria limitado a essa esfera de governo. O acesso do parlamento, por exemplo, às informações do Siafi continuaria dependendo de solicitações formais e da disposição dos administradores públicos para atender aos requerimentos.

123 O senador Eduardo Matarazzo Suplicy (PT-SP) foi o primeiro parlamentar a requerer acesso ao Siafi e é

Portanto, o Siafi, na sua concepção, trouxe o potencial da transparência, o que pode ser identificado principalmente na sua capacidade de disponibilização sistemática de informações, em linguagem padronizada, e praticamente em tempo real, de modo a permitir o controle simultâneo ao fato. Mas foi a ampliação do acesso à sua base de dados que permitiu tratá-lo dentro da perspectiva de transparência das contas públicas.

Outra observação mostra como a transparência da execução orçamentária permitida pelo Siafi depende da orientação que é dada. Na ocasião da instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar denúncias de irregularidades na elaboração e execução do Orçamento, o Siafi foi utilizado como auxiliar nas investigações. A pista da existência de pelo menos dois esquemas de corrupção dentro do orçamento, o das empreiteiras e o das subvenções sociais, partiu de uma denúncia, não do acompanhamento sistemático da execução. Os esquemas funcionavam antes da promulgação da Constituição de 1988, que procurou descentralizar o processo de elaboração orçamentária. Ele existia antes da instalação do Siafi, mas não foi a instalação do sistema que permitiu identificar o esquema de corrupção. Foi necessário que houvesse uma denúncia de uma das pessoas envolvidas no esquema para que se tornasse público. Entretanto, o Siafi teve papel importante para colher as provas, principalmente no caso do esquema das subvenções sociais. Através dele foi possível identificar, com mais rapidez, a origem das verbas e identificar quais haviam sido desviadas. Esse exemplo evidencia um dos aspectos da aplicação da publicidade como princípio regulador do jogo democrático previsto em BOBBIO (1989). A instituição da democracia não eliminou completamente o risco de criação de uma esfera oculta de governo. Mas permitiu a criação de mecanismos de desocultamentos dos atos ilícitos. Nesse caso específico, o Siafi atuou como um dos apoios desses instrumentos de trazer a público um ato ilícito que se desenvolvia protegido pelo segredo.

c. As restrições pela linguagem

Entretanto, ainda os entrevistados tenham identificado e destacado seu potencial de transparência, principalmente no que diz respeito à possibilidade de oferecer informações detalhadas e à agilidade da disponibilidade, não pode ser ignorado o fato de o Siafi pertencer a uma estrutura administrativa que se orienta por uma lógica tecno-burocrática,

onde o conhecimento racional é a base de sua organização. Se, de um lado, essa base racional beneficia o princípio da impessoalidade, por outro, reforçado por uma estrutura fortemente hierarquizada e especializada, promove um ambiente onde o conhecimento assume um valor estratégico em estreita relação com o poder. Dentro dessa perspectiva, o Siafi beneficia, principalmente, as pessoas que detêm informação. A burocracia valoriza o conhecimento especializado e a experiência. Quanto mais informação e quanto mais conhecimento sobre o setor onde trabalha, mais importante e mais valorizado é o funcionário público. O Siafi reproduz esse ambiente. A interpretação da execução orçamentária, por si, já exige conhecimento especializado da contabilidade pública, de modo a ler e interpretar as informações referentes ao orçamento. Também é necessário conhecer a estrutura adminis trativa, compreender a organização dos órgãos e entidades da administração, função, programas, planos e ações de governo, dentre outros. O Siafi organiza tudo isso, mas é preciso reunir muitas informações para manusear o programa: além da especialização em contabilidade pública, são necessárias informações técnicas do programa, incluindo aí, conhecer todos os 195 tipos de consultas e seus respectivos comandos. O conhecimento especializado permite se orientar para fazer as perguntas. O conhecimento sobre o programa permite entender como buscar. Só assim é possível otimizar os recursos do Siafi e obter, efetivamente, as informações em tempo hábil.

Essa característica faz com que o uso do potencial de transparência do Siafi seja restrito a um seleto grupo de especialistas, o que acontece, principalmente, em função das dificuldades técnicas que o modo de organização do sistema impõe. “É difícil sobreviver ao Siafi.”. Essa foi uma definição sucinta de um entrevistado para definir o grau de dificuldades técnicas. As causas para essa dificuldade podem ser destacadas em duas declarações de técnicos da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados:

“A informática, no início, usava códigos para facilitar o armazenamento dos dados; com isso, para consultar o Siafi é necessário o conhecimento dos diversos códigos (as classificações de despesas e receitas utilizam códigos), o que torna o Siafi muito restrito. [...] A causa principal não foi atacada, que são os usos dos diversos códigos para consultar as informações.” (José Américo Carvalho)124.

“A senha cai com muita facilidade e as pesquisas são lentas e pontuais (agora, com o Siafi gerencial melhorou). Na época decidimos montar uma estrutura de consulta por meio de fita junto ao Serpro. Carregamos a execução orçamentária a cada semana, copiando dados em fita e carregando em sistemas que permitem uma consulta mais facilitada.” (Eugênio Greggianin)125.

De acordo com José Américo Carvalho, dos 35 consultores do orçamento no Congresso, contabilizam-se dois especialistas em consulta ao Siafi. Ou seja, 5,71% dos profissionais contratados para examinar o orçamento e auxiliar os parlamentares no processo de interpretação, acompanhamento e fiscalização do Orçamento Geral da União mantêm condições de consulta ao Siafi, considerado a principal fonte de informação sobre execução orçamentária. É um dado eloqüente, se um universo de pessoas que se dedicam profissionalmente ao assunto. Num campo mais amplo, o índice de acesso pode cair ainda mais.

Com essa dificuldade, a informação sobre Siafi e processo orçamentário torna -se uma forma de se destacar e ter mais poder, como foi apontado por Duncan Frank Semple126,

assessor parlamentar do deputado João Paulo (PT-SP):

“[...] Informação aqui em Brasília é um problema. As pessoas vendem informação. [...] O Siafi é uma forma de você se destacar. Ter conhecimento é uma forma de se destacar nesse assunto. Exatamente porque não tem essa transparência, porque as pessoas não são treinadas, não sabem fazer as perguntas.”

Essa situação reforça a noção segundo a qual dar transparência não se limita a disponibilizar informação. Para se ter transparência é fundamental que as informações estejam disponíveis, mas a iniciativa tem alcance reduzido se não vier acompanhada por uma política de informação que traduza essa disponibilidade em maior acesso a informação.

d. Reação do Executivo

A restrição do grau de transparência da execução orçamentária via consulta ao Siafi não se limita aos aspectos técnicos apresentados. Ela remete a implicações políticas que o tema envolve. Sem considerar esses fatores, os resultados ficam incompletos. É possível até

124 Entrevista citada.

125 Entrevista concedida por correio eletrônico, durante a segunda quinzena de outubro/2001. 126 Entrevista concedida em Brasília, em 13/09/2001.

mesmo encaminhar soluções equivocadas como a de que a solução de problemas de linguagem ampliaria a possibilidade de transparência. A remissão à literatura sobre transparência e direito à informação mostra o quanto o assunto depende de decisões políticas e administrativas. Isso implica em incluir o assunto como uma prioridade de governo. Mas também remete a toda sorte de obstáculos que envolvem essa decisão, uma vez que a opção pela transparência leva a expor contradições da política administrativa, o que não é bem visto pelas autoridades públicas. A restrição do campo da transparência administrativa é um tema que se beneficia dos estudos da Ciência Política, que, ao pesquisar as conseqüências das políticas para transparência, tem identificado os pontos que acabam provocando resistências à publicidade por parte de administradores públicos. Dentre as questões, está a tendência do poder em se esconder, tratada dentro da literatura sobre democracia. Essa tendência se apresenta de várias maneiras. Ou pela reação à redistribuição e conseqüente perda do poder ou mesmo como forma de se resguardar do aumento de demanda.

A história do Siafi, desde sua implantação, passando pela ampliação de acesso até mudanças feitas na organização e estruturação dos dados disponíveis, dá uma mostra sobre essas reações do poder aos mecanismos que permitem maior visibilidade de suas ações. Há episódios que ilustram bem, como relatados a seguir.

No primeiro momento de disponibilidade, poucos parlamentares tinham acesso, segundo informações colhidas nas entrevistas: os que se interessaram em conhecer o novo sistema de organização de informações contábeis do governo federal solicitaram senha de acesso e foram atendidos. Depois das primeiras denúncias de irregularidades, no início da década de 90, a primeira reação foi suspender o acesso dos parlamentares, restabelecido no final de 100 dias, depois de pressão parlamentar, encabeçada pelo senador Eduardo Suplicy, para o retorno do acesso.

Outro momento que retrata essa reação à visibilidade foi identificado por ocasião da denúncia de desvio de verbas do Fundo Social de Emergência (FSE), em 1994. Através de consulta ao Siafi, os parlamentares descobriram que o dinheiro que tinha destinação exclusiva a investimentos na área social foi utilizado para comprar alimentos para o Palácio do Planalto, dentre outros desvios de finalidade. Já não houve mais o corte do acesso. Mas

o Palácio do Planalto deixou de detalhar as compras no Siafi, o que reduz o nível de transparência de suas informações. Nesse caso, o Palácio optou não por eliminar a disponibilidade das informações, mas por reduzir o número de informações disponíveis. Não há nenhuma infração nessa atitude; o Siafi não é instrumento de prestação de contas. A prestação de contas é feita anualmente ao Tribunal de Contas da União. As unidades gestoras que não detalham os gastos não deixam, obrigatoriamente de prestar contas, o que é feito no tempo exigido por lei. O que eles fazem é tornar menos públicos seus atos. “Há órgãos que detalham absolutamente tudo e há órgãos que escondem absolutamente tudo” (Hipólito Menezes)127, o que leva a concluir que o nível de transparência é pontual e restrito a determinadas unidades.

e. Mínimo, mas necessário

Contudo, a despeito de todos os focos de opacidade para impedir que o Siafi ofereça um grau maior de transparência da execução orçamentária identificados pelos entrevistados, ele mantém o status de agregar à sua função de ordenador contábil do orçamento a de instrumento auxiliar da fiscalização e controle da execução orçamentária. “Sem o Siafi estaríamos na escuridão absoluta”, é uma das observações apresentadas por Eugênio Greggianin128 ocasião da coleta de dados. A reação de parlamentares na defesa do acesso às informações do Siafi é uma prova de que ele é um facilitador do trabalho de fiscalização do orçamento. Aos que se dispõem a acompanhar a execução orçamentária, as informações fornecidas pelo sistema oferecem um grau de transparência que não pode ser ignorado. As restrições técnicas e políticas apontadas por usuários são um complicador no sentido de impedir mais transparência no acompanhamento da aplicação das verbas do orçamento público. Entretanto, as possibilidades que se abrem através do uso do Siafi não permitem o total esvaziamento de sua função como instrumento que cria melhores condições de fiscalização. Um dos motivos dessa orientação para a transparência está na agilidade de disponibilização das informações. “A informatização da contabilidade pública da União trouxe inúmeras vantagens no que tange ao acompanhamento e à fiscalização, permitindo acesso mais amplo aos dados da receita e da despesa” (Eugênio Greggianin).

127 Entrevista concedida em Brasília, em 14/09/2001