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A Psicodinâmica do Trabalho teve início com a psicopatologia do trabalho: disciplina estudada nos anos 1950-60 por autores como Louis Le Guillant, Adolfo Fernandez-Zoila, C. Veil, Paul Sivadon, Jean Bégoin. Inicialmente, o termo psicopatologia deriva da teoria psicanalítica do funcionamento psíquico em referência explícita à obra de Sigmund Freud. Desenvolveu-se em diálogo com as ciências da saúde e as ciências do trabalho. A referência a Freud remonta ao tratamento que este deu ao tema em Mal-estar da civilização, o que parece dar consistência à proposta da disciplina. Foi sob inspiração desses estudos que Dejours publicou, em 1970, o livro traduzido no Brasil como A loucura do trabalho (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1990).

A psicopatologia do trabalho seria “[...] a análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos mobilizados por situações de trabalho” (DEJOURS, 2008, p. 50). No fim da década de 70, Dejours e Abdoucheli (1994) trataram do termo psicopatologia, que seria associado não só ao sentido restritivo e mórbido — como doença — , mas também a outras dimensões como a vida cotidiana e o trabalho. Nesse sentido, suas pesquisas agora seriam direcionadas ao sofrimento, à dimensão subjetiva e singular de pathos, resgatando sua concepção etimológica como paixão, excesso e passividade; ou seja, a subjetividade da experiência do sofrimento psíquico.

Esses autores problematizam a noção de psicopatologia rearticulando pathos como a disposição afetiva que move o sujeito, constituindo-o na sua humanidade. Por meio da expressão em palavras, o pathos manifesta uma subjetividade que é capaz de transformar a paixão em experiência, servindo para a existência do próprio sujeito. O humano nessa perspectiva é uma espécie pática, isto é, sofredora de um excesso, que pode ser caracterizado como dor, depressão, angústia, autismo e histeria, dentre outros nomes. O pático — aquilo que faz o humano sofrer ou que o submete ao sofrimento — é o fundamento mesmo do psíquico.

Nesse contexto, a teoria de Dejours (2011) busca entender os trabalhadores que conseguem manter a estabilidade psíquica em locais em que a organização de trabalho cria condições que podem desestabilizar psiquicamente o trabalhador; condições para o sofrimento como espaço clínico intermediário de luta entre funcionamento psíquico, mecanismos de defesa e pressões da organização trabalhista. Ele “Preferi[u] não mais focalizar as doenças mentais, voltando a atenção para o sofrimento e as defesas contra o sofrimento [...] Desviava assim, a minha atenção para as estratégias de defesa”; a normalidade surgiu como central em sua investigação, ou seja, a “[...] normalidade surgia [...] como enigma central da investigação e da análise” (p. 63).

Alguns aspectos são importantes na evolução da Psicodinâmica do Trabalho. Na década de 70, as pesquisas foram direcionadas ao sofrimento psíquico, sobretudo por causa de suas transformações no contexto de trabalho e à organização trabalhista. Após 1980, quando foi publicado o ensaio sobre “Psicopatologia do trabalho”, Dejours disse que

É necessário reconhecer — estimulado pelas críticas cada vez mais abundantes provocadas pela denominação “psicopatologia do trabalho” como disciplina — o deslocamento qualitativo que foi ganhando corpo após 1980, data da publicação do ensaio sobre Psicopatologia do trabalho. Ao operar esta passagem da psicopatologia à normalidade, sou levado a propor uma nova nomenclatura para designar essas pesquisas: Psicodinâmica do Trabalho (p. 63).

A mudança do termo psicopatologia do trabalho para Psicodinâmica do Trabalho foi sugerido para minimizar a importância dada a aspectos psicopatológicos, em especial distorções em relação à morbidade ou doença. Após esse período e com tal nomenclatura, o autor vai se dedicar “[...] à análise, à superação e, eventualmente ao tratamento das doenças mentais” (p. 64). Passa a cuidar da normalidade. Abre-se a outras dimensões, como o sofrimento no trabalho.

Nos anos 90, os estudos foram direcionados para a saúde, o prazer, a forma como os trabalhadores conseguiam tornar o trabalho saudável; também para variações pequenas entre o trabalho prescrito, o trabalho real e o modo como o trabalho determinava a construção da identidade pela dinâmica do reconhecimento. Após essa década, o interesse se concentra nas patologias sociopsíquicas, surgidas nas novas formas da organização do trabalho, nos processos de subjetivação na modernidade e em uma análise mais profunda dos processos relacionados com a saúde dos trabalhadores.4

Segundo Dejours (2008), desde as primeiras pesquisas, o conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico apareceu nas investigações empíricas, nas construções da teoria e nas interpretações. Das primeiras experiências metodológicas, foi evidenciado o que possivelmente desestabilizava a saúde mental dos trabalhadores: as pressões que apareceram como decorrentes da forma como se estrutura o trabalho. De início, era considerado que pela observação do processo técnico as pressões patogênicas seriam avaliáveis objetivamente. O resultado maior das observações foram as descobertas das consequências patológicas no psiquismo e efetivamente diferenciadas como resultado da divisão dos homens (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1994). Essa divisão é importante, sobretudo quando se refere à constituição do modo de operação no trabalho; porque esbarra na questão do poder, da dominação e submissão no trabalho e assim se observa primeiramente sua construção social, o que nos aproxima da sociologia do trabalho.

As condições de trabalho se referem às pressões físicas, mecânicas, químicas e biológicas do contexto de trabalho. O alvo principal é o corpo dos trabalhadores. É onde pode ocasionar desgaste, envelhecimento e doenças somáticas. A esse cenário se acresce a organização do trabalho, que Dejours e Abdouchely (1994, p. 125) definem assim: por um lado, como “divisão de tarefas” relativa a operação, repartição, cadência, ritmo e forma prescrita de atuar — atinge diretamente a motivação no trabalho; por outro lado, como “divisão de homens”, que se refere à hierarquia, à atribuição de responsabilidades, ao comando e ao controle — portanto, às questões do poder, domínio e submissão no trabalho. Dessa maneira, enquanto as condições de trabalho impactam no corpo, a organização do trabalho opera no nível do “funcionamento psíquico”. Como afirmam esses autores, a divisão

4 Quase ao mesmo tempo, publicações na França e no Brasil marcam essa etapa. Os títulos incluem A banalização da injustiça social, de 1999; A evolução do trabalho e a p ro v a real: crítica a fu n d a m en ta çã o do desenvolvim ento, de 2003; Trabalho vivo e sexualidade; e Trabalho e trabalho e em ancipação, em 2012

(BUENO; MACEDO, 2012). Há outras publicações importantes, dentre elas estão P sicodinâm ica do Trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrim ento e trabalho [1994] e D a psico p a to lo g ia a P sicodinâm ica do Trabalho (1994).

das tarefas e o modo operatório do trabalho “incitam o sentido e o interesse do trabalho para o sujeito”, a divisão de homens demanda, em especial, as “[...] relações entre pessoas e mobiliza os investimentos afetivos, o amor e o ódio, a amizade, a solidariedade, a confiança etc.” (DEJOURS; ABDOUCHELY, 1994, p. 126).

Na fundamentação da clínica do sofrimento, na relação psíquica com o trabalho, Dejours (1994) aprofunda-se em seus estudos, procurando discutir os laços entre sofrimento humano e trabalho real. Desse modo, as pressões do trabalho que põem em xeque o equilíbrio psíquico e a saúde mental do trabalhador derivam da organização do trabalho.

Compreender o conceito de funcionamento psíquico requer relacioná-lo teoricamente com um modelo de homem em que cada indivíduo é um sujeito único: tem desejos, projetos e uma história singulares; constitui a organização de sua personalidade; relaciona-se com a realidade e a ela responde a seu modo — particular. Nesse contexto, a teoria psicanalítica do funcionamento psíquico interessa duplamente. Em parte, porque permite investigar os processos psíquicos, o sofrimento como pathos que não é sinônimo de morbidade ou doença, mas diz respeito a dimensão humana. Em parte, porque “[...] respeita no sujeito a irredutibilidade de sua história singular e sua competência psicológica para reagir de modo original às pressões patogênicas das quais ele é alvo” (DEJOURS; ABDOUCHELY, 1985, p.

126).

A clínica da Psicodinâmica do Trabalho tem a preocupação com o real do trabalho como desafio psíquico crucial para o sujeito; visa à compreensão do mundo do trabalho, pois preconiza que só assim podem ocorrer transformações. Para esta teoria o trabalho pode proporcionar condições estabilizadoras que neutralizam o sofrimento, muitas vezes existencial, conduzindo para que, os desejos e pulsões, inconscientes do sujeito possam dar lugar à sublimação e ao processo de mobilização subjetiva, que permitem transformar o sofrer.