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1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO

1.1. A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO

Se, por um lado, a noção de patrimônio, tal como afirma Gonçalves (2005) não é uma invenção moderna, instituída a partir da formação dos Estados Nacionais - e essa é uma idéia particularmente importante para o desenvolvimento desta dissertação -, a constituição da moderna noção de patrimônio, intimamente ligada à noção de perda, é crucial também para a análise aqui empreendida, uma vez que esta noção de perda é o motor dos processos de preservação do patrimônio levados a cabo pelas agências de Estado.

Assim, a própria noção de patrimônio, elemento chave de políticas de Estado voltadas para a preservação, é produção humana e tem seus conteúdos e práticas atrelados a determinados contextos. Assim, é necessário

questionar o processo de produção desse universo que constitui um patrimônio, os critérios que regem a seleção de bens e justificam sua proteção; identificar os atores envolvidos nesse processo e os objetivos que alegam para legitimar seu trabalho; definir a posição do Estado relativamente a essa prática social e investigar o grau de envolvimento da sociedade. (FONSECA, 2005, p.36).

Estas proposições permitem identificar algumas questões colocadas no tocante à discussão teórica sobre o estabelecimento do conceito de patrimônio, tal como proposta pelas agências de Estado, e a necessidade da preservação daqueles bens assim denominados.

A primeira questão que pode ser levantada, e que a literatura apresenta, é que o processo de patrimonialização consiste numa cristalização de elementos da cultura, eliminando desses elementos seu caráter dinâmico. Essa discussão é feita a partir da associação das narrativas constitutivas da noção de patrimônio com os discursos de construção de identidades, de maneira particular de identidades nacionais.

Os elementos de construção de narrativas nacionais foram abordados por vários autores (CHOAY, 2001; GONÇALVES, 1996; HOBSBAWN, 1997; ORTIZ, 2003), os quais chamam a atenção para o fato de que o processo de patrimonialização esteve ligado à construção de uma identidade nacional. Dessa forma, os bens patrimonializados apresentam um poder simbólico de invocar um passado comum que é capaz de contribuir para a manutenção e preservação da “identidade de uma comunidade étnica, ou religiosa, nacional, tribal ou familiar” (CHOAY, 2001, p. 18).

Nessa medida, o processo de patrimonialização tem como função congregar indivíduos num mesmo grupo, de conferir a esses indivíduos a marca distintiva que os aproxima e lhes dá identidade, porque os separa de outros. Esta marca distintiva se dá em função da moradia em determinado território, de compartilhar um idioma e de possuir um passado, uma história comum, o qual é objetivado e celebrado em seus bens e práticas patrimonializados.

As práticas culturais de determinado grupo são apropriadas e sintetizadas a partir de determinados elementos, os quais assumem o papel de representar e dar sentido ao todo daquela cultura. Este caráter totalizante dado aos bens patrimonializados confere às práticas de preservação a função de manter vivos aspectos da cultura e da identidade dos grupos que, sem esta prática, supostamente, estariam fadados ao desaparecimento.

Este é o processo que Handler (2003) nomeou de objetificação cultural, entendido aqui como ‘”uma tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não-materiais (como o tempo) como se fossem corporalizados, objetos físicos existentes”. Ele tem como característica principal o fato de conferir a determinados elementos da cultura novos atributos, os quais devem ser mantidos numa estrutura invariável, preservados. Esta dicotomia entre os bens patrimoniais e as práticas culturais foi expressa em termos de tradição x costume (HOBSBAWN, 1997), memória nacional x memória coletiva (ORTIZ, 2003), transmissão patrimonial tradicional x transmissão em ato (JEUDY, 2005) e implicam que as primeiras

sejam práticas reguladas, e que devem se manter invariáveis com vistas a garantir sua permanência. As segundas carregam as marcas da adaptação a novos contornos das sociedades.

Hobsbawm (1997) ressalta a diferença entre tradição e costume e deixa clara a distinção estabelecida por esses autores no que diz respeito ao processo de cristalização resultante da patrimonialização dos bens culturais. Sob essa ótica, a maior característica das tradições é a invariabilidade, por meio de práticas fixas e formalizadas, enquanto o costume não impede que a mudança ocorra, dando a esta mudança o caráter de continuidade histórica.

A ação do tempo torna-se, então, a chave para a compreensão dos processos de manutenção das tradições e costumes, enfim, da constituição dos patrimônios dos grupos sociais. O tempo é o elemento-chave porque ele é 1) motor, na medida em que é o saber acumulado ao longo do tempo que se torna o patrimônio desses grupos; e, 2) direcionador, na medida em que promove alterações nos conteúdos e práticas desses grupos.

Nessa medida, conforme afirma Giddens (1997b), o que garante a “integridade” da tradição não é o fato desta persistir ao longo do tempo, mas o “trabalho” de interpretação que é realizado continuadamente no sentido de manter a ligação entre passado e presente. Na realidade, as tradições só conseguem se manter ao longo do tempo justamente por estarem “vivas”, ou seja, por serem constantemente significadas e re-significadas pelo grupo, que confere a elas elementos e sentidos do presente (de cada novo presente) para a compreensão do passado.

A questão que se coloca em relação aos bens patrimonializados da cultura é que estes buscam, por meio de sua cristalização, resgatar um passado tido como referência identitária para o grupo. Entretanto, não se considera que o olhar sobre este bem está sempre situado no presente e é sempre uma interpretação daquele passado que se pretende preservar. Ou seja, retirando dele este caráter dinâmico e colocando-o estático no tempo e no espaço.

Tem-se aqui um tema central que é a transmissão, enquanto ferramenta de preservação da própria cultura. Se a idéia de transmissão é tão importante no âmbito dos processos de patrimonialização, ela torna-se mais uma questão a ser levantada neste trabalho na medida em que, após uma experiência de remanejamento compulsório, coloca-se de modo mais imperioso a questão do que deve ser transmitido para as gerações futuras, posto que as bases materiais foram profundamente alteradas. A pergunta: “o que há para ser transmitido?” e outras, serão tratadas no terceiro capítulo desta dissertação, quando serão relatados os resultados do trabalho de campo junto à comunidade de Peixe Cru, no município de Turmalina.

Outra indagação a ser feita refere-se às alterações na concepção de patrimônio cultural, enquanto mola propulsora dos processos de construção de identidades coletivas. Tomando-se o fato de que os bens tidos como patrimônios culturais são construtos humanos tanto quanto seu processo de identificação e valorização, é de se esperar que estes sejam tão dinâmicos quanto os movimentos sociais que os dão origem. É tanto assim, que toda a reflexão realizada sobre o processo de patrimonialização como construtor de identidades nacionais, referia-se aos bens edificados e monumentos. Os alvos de preservação sempre foram, até recentemente, os bens materiais, edificados. De maneira geral, aqueles bens ligados às instituições representantes do poder formal como o Estado e a Igreja. (RUBINO, 1996).

Após a consideração de outros bens como passíveis de preservação - os imateriais - estabeleceu-se um impasse entre as duas concepções sobre como encarar, definir competências e graus de importância diferenciados. Essa valorização dos bens de natureza imaterial está ligada a um processo de crise dos estados-nação (identidades nacionais) e de valorização do individualismo e das identidades de grupos cada vez mais particularizados. Esse movimento tem resultado na inserção da diversidade cultural como valor a ser ressaltado. Ainda mais recente tem sido a consideração de bens materiais e imateriais como dimensões complementares de uma mesma manifestação cultural.

Por um lado, as alterações na noção de patrimônio são resultantes das próprias modificações nas condições culturais e sociais e, por outro, de olhares diferenciados sobre a dinâmica social. Estas transformações resultaram em alterações metodológicas no tocante às políticas preservacionistas do Estado, de maneira particular, aquelas associadas ao patrimônio imaterial ou intangível. O texto de Fonseca (2005) é um exemplo da natureza das questões que, atualmente, se apresentam:

Como desafios, [o decreto-lei nº 3551, de 04 de agosto de 2000, que instituiu o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial] encontra a dificuldade de se aproximar e definir seu objeto – amplo e fluido por natureza –, de incluir na sua aplicação os sujeitos sem cuja participação esse objeto não poderá ser preservado – criadores, produtores, usuários e parceiros –, de definir critérios para outorga do registro, de elaborar formas diversificadas e adequadas de salvaguarda. (FONSECA, 2005, p. 19).

A consideração de elementos imateriais da cultura trouxe à tona para as discussões sobre a preservação do patrimônio cultural, aspectos que os elementos materiais, embora carregassem as mesmas ambigüidades, permitiam que de alguma forma ficassem velados.

Destaco os problemas da cristalização, do envolvimento dos sujeitos no processo de definição da salvaguarda e do próprio sentido de sua preservação.

Para fins desse trabalho, concentro-me na análise da constituição do patrimônio imaterial, por meio dos documentos oficiais internacionais, os quais assumem característica de cartas de intenções. Associado à constituição da noção de patrimônio cultural, analiso a inclusão da variável ambiental nos discursos de preservação do patrimônio cultural, tomando o processo de valorização dessas duas categorias, aspectos imateriais da cultura e aspectos ambientais, como parte de um mesmo processo de mudanças sociais e, ainda como ponte para a compreensão da utilização da metodologia de Inventário Nacional de Referências Culturais quando da construção da UHE Irapé.

1.2. A construção da noção de Patrimônio Imaterial, a partir dos organismos