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A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL, A PARTIR DOS

1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO

1.2. A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL, A PARTIR DOS

A análise dos documentos oficiais, firmados internacionalmente entre organismos de preservação do patrimônio cultural, permite verificar que a Política de Salvaguarda dos Bens de Natureza Imaterial vem, no bojo das políticas de preservação, agregar novos aspectos que as sociedades contemporâneas têm buscado discutir, tais como a questão da diversidade cultural e a vocalização dos diversos grupos sociais – a partir do fortalecimento dos novos movimentos sociais. Este enfoque em aspectos intangíveis da cultura e nas questões ambientais vem se consolidando ao longo dos últimos vinte anos no âmbito das políticas preservacionistas.

Em 1985, a Declaração do México, resultado da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, tratou dos princípios que deveriam reger as políticas culturais, com vistas a contribuir “para a aproximação e a melhor compreensão entre os homens” (CURY, 2004, p. 272). Destaco deste documento o trecho em que conceitua patrimônio cultural:

O patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas. (CURY, 2004, p. 275).

Em 1972, durante a 17ª sessão da Conferência Geral da Unesco, ocasião em que assinada a Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, estabeleceu-se como patrimônio cultural: “os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência” (CURY, 2004, p. 178/179).

Isso demonstra uma clara mudança na noção de patrimônio cultural neste período de tempo, passando de uma noção restrita aos monumentos e edificações, sobretudo aqueles de valor excepcional sob o ponto de vista artístico, até considerar as obras “anônimas surgidas da alma popular”, aquelas que representam os valores de determinado grupo ainda que não representativos de valor artístico ou histórico em si.

A Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989, firmada por ocasião da 25ª Conferência Geral da Unesco, apresenta alguns aspectos interessantes para reflexão. Em seu texto introdutório, a recomendação ressalta “a extrema fragilidade de certas formas de cultura tradicional e popular e, particularmente, a de seus aspectos correspondentes à tradição oral, bem como o perigo de que estes aspectos se percam”, “a necessidade de reconhecer a função da cultura tradicional e popular em todos os países, e o perigo que corre em face de outros múltiplos fatores” e, ainda, “que os governos deveriam desempenhar papel decisivo na salvaguardada da cultura tradicional e popular e atuar o quanto antes”. Fica nítido o fato de que a linha norteadora das práticas preservacionistas é evitar a perda da cultura e da importância do papel do Estado na preservação desta cultura.

Nesta recomendação, a definição de cultura tradicional e popular é apresentada como “conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes” (CURY, 2004, p. 294 -295). Cabe discutir aqui a amplitude da definição apresentada, a qual abrange os vários aspectos da atividade

humana. Para além disso, a recomendação propõe que para promover a salvaguarda da cultura tradicional e popular sejam realizadas pesquisas com a finalidade de:

1) elaborar um inventário nacional de instituições interessadas na cultura tradicional e popular; 2) criar sistemas de identificação e registro (cópia, indexação, transcrição) ou melhorar os já existentes por meio de manuais, guias para recompilação, catálogos-modelo etc; 3) estimular a criação de uma tipologia normatizada da cultura tradicional e popular mediante a elaboração de: i) um esquema geral de classificação da cultura tradicional e popular, para orientação em âmbito mundial; ii) um registro geral da cultura tradicional e popular; iii) classificações regionais da cultura tradicional e popular, especialmente mediante projetos piloto de caráter regional (CURY, 2004, p. 295).

Ou seja, são apresentados procedimentos rígidos e totalizantes para lidar com aspectos da cultura extremamente fluidos e dinâmicos da vida social. Assim, a mesma estrutura procedimental de preservação de bens edificados e monumentos foi transferida para a salvaguarda dos “bens culturais” de caráter mais dinâmico, como a língua, a música, a dança, os jogos, os costumes. A proposição de elaboração de tipologias normatizadas e classificações regionais deixa clara essa ambigüidade de que estabelecer uma política de salvaguarda, nesses moldes, implica necessariamente no engessamento e na alegorização desses mesmos bens.

A Carta do Rio, resultado da Reunião da Conferência Geral das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, acontecida no Rio de Janeiro, em 1992, apresenta em seu princípio 22 um trecho sobre o conhecimento e práticas tradicionais e sua relação com o meio ambiente: “As populações indígenas e suas comunidades, assim como outras comunidades locais desempenham um papel fundamental no planejamento do meio ambiente e no desenvolvimento, devido aos seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados deveriam reconhecer e aprovar devidamente sua identidade, cultura e interesses e tornar possível sua participação efetiva na obtenção do desenvolvimento sustentável” (CURY, 2004, p. 316).

A Recomendação nº R (95) 9, sobre a conservação integrada das áreas de paisagens culturais como integrantes das políticas paisagísticas, a qual foi adotada pelo Comitê de Ministros em 11 de setembro de 1995, por ocasião do 543º Encontro de Vice-ministros, estabelece como Áreas de Paisagem Cultural: “partes específicas, topograficamente delimitadas da paisagem, formadas por várias combinações de agenciamentos naturais e humanos, que ilustram a evolução da sociedade humana, seu estabelecimento e seu caráter através do tempo e do espaço e quanto de valores reconhecidos têm adquirido social e culturalmente em diferentes níveis territoriais, graças à presença de remanescentes físicos que

refletem o uso e as atividades desenvolvidas na terra no passado, experiências ou tradições particulares, ou representação em obras literárias ou artísticas, ou pelo fato de ali haverem ocorrido fatos históricos” (CURY, 2004, p.332).

A Carta de Mar del Plata, resultado das primeiras jornadas do Mercosul sobre Patrimônio Intangível, de junho de 1997, que trata do patrimônio intangível, apresenta algumas recomendações que merecem destaque neste contexto, a saber: “promover, em caráter urgente, o registro documental e a catalogação das expressões do patrimônio cultural intangível; criar um banco de dados com todas as publicações da região que se refiram ao patrimônio intangível e com informações sobre as manifestações culturais próprias de nossos respectivos países, com a conseqüente publicação de Cadernos sobre as distintas expressões culturais; solicitar aos governos e aos organismos financeiros internacionais que, aos estudos de impacto ambiental, acrescentem outros que ajudem a identificar o impacto cultural, para o qual devem ser convocados profissionais de reconhecida experiência na matéria” (CURY, 2004, p.361).

Os três documentos citados acima associam a temática ambiental e do desenvolvimento à patrimonial. Patrimônio, meio ambiente e desenvolvimento passam a ser consideradas partes integrantes de uma mesma realidade e que devem ser tratadas conjuntamente. De maneira particular, a Carta de Mar del Plata tem importância no contexto analisado ao falar dos aspectos patrimoniais, no âmbito dos impactos ambientais e da necessidade de sua análise por profissionais especialistas. Cabe ressaltar que a Carta de Mar del Plata foi assinada no mesmo ano em que se realizou o Encontro de Fortaleza, em comemoração aos 60 anos do IPHAN, ocasião em que foram traçadas as estratégias de preservação do patrimônio imaterial, tal como será tratado adiante.

A “Convención para la Salvaguarda del Patrimonio Cultural Inmaterial”, de 17 de outubro de 2003, da UNESCO, define como “patrimônio cultural imaterial”: “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhe são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (CURY, 2004, p. 373).

Conforme esta convenção, a Salvaguarda consiste em “medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – a revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos” (CURY, 2004, p. 374).

Nesse sentido, retomo o paralelo feito por Giddens (1997a, p. 97) da “tradição como natureza e da natureza como tradição”. Segundo ele, nas sociedades pré-modernas a tradição, assim como a natureza, eram responsáveis pela construção de um horizonte de ação relativamente fixo. Nas sociedades pós-tradicionais, os avanços tecnológicos proporcionaram, em certa medida, uma “domesticação” tanto da natureza quanto das tradições na medida em que constituiu formas de organização social independentes delas.

Dessa forma, ambas, tradição e natureza, passam a sofrer um profundo impacto das ações humanas e, por isso, a ser objetos de atenção, na medida em que são alvos dos processos destrutivos da ação humana. Segundo Giddens (1997a), nas sociedades pós-tradicionais o conceito de meio ambiente aparece como oposto do conceito de natureza – que significa aquilo que é criado independentemente da atividade humana –, sendo considerado como aquilo que foi transfigurado pela ação humana. Este risco comum da perda da tradição e da natureza, bem como a interdependência direta entre elas, constitui-se como a base para a articulação do discurso presente nesses documentos.