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Construir uma identidade profissional

3. O Professor e a sua Profissão

3.1 Construir uma identidade profissional

A constituição de uma nova identidade profissional de professores, leva a uma reflexão sobre questões de identidade e profissionalização docente, analisando a identidade profissional do indivíduo não unicamente do ponto de vista de sua subjectividade, mas compreendendo a constituição da identidade como interacção entre os parceiros e a sua trajetória pessoal e social.

A abordagem de Dubar (2000) tem-se debruçado sobre o estudo de configurações identitárias para compreender como estas se constituem, se reproduzem e se transformam. O

autor trabalha com a ideia de identidade como “forma identitária” e sustenta que as formas identitárias profissionais se configuram nas relações sociais e de trabalho.

Nóvoa tem contribuído para este debate ao escrever sobre as dimensões pessoais e profissionais dos professores. Afirma que os estudos sobre a profissão docente têm separado e

eu pessoal do eu profissional (1992a:115).

Também, para Formosinho, o actual uso dos termos “classe docente” e “corpo docente”, como se designa actualmente a classe dos professores, “pode dar a entender que estamos perante um grupo ocupacional homogéneo. Na realidade, porém, este grupo é bastante heterogéneo” (2009:19). Na tentativa de definição da profissão-professor, é inegável que o professor faz parte de uma classe profissional, com direitos adquiridos ao longo dos tempos e com especificidade no desempenho do seu trabalho. Essa especificidade é adquirida com a frequência de um determinado modelo de formação de professores que, no entanto, não é decisiva para a construção pessoal de uma definição do que é ser professor. Factores como personalidade, valores, socialização, experiência de vida influenciam essa construção pessoal.

De facto, a identidade profissional do professor nunca é completamente determinada pelo grupo, pela instituição e/ou pela sociedade a que pertence, pois o indivíduo é um intérprete activo e criador da sua realidade e não um simples mediador entre decisões superiores e as práticas das instituições. Todo o professor faz parte do seu grupo, não apenas como elemento estruturante, mas também, enquanto elemento estruturador tendo sempre um espaço de liberdade que, por mais pequeno que seja, pode ser utilizado para dar sentido à sua própria acção, quer como pessoa, quer como profissional, em função das normas, dos valores e dos códigos de comportamento que estão subjacentes ao grupo profissional a que pertence.

Formosinho identifica, entre nós, dois tipos de concepção do professor, a concepção

laboral e a concepção profissional, que influenciam a formação de professores segundo dois

modelos, o modelo laboral (maioritário) e o modelo profissional. Segundo este autor, as diferenças situam-se nas definições formais do que é ser professor. No “modelo laboral, maioritário, o professor é o licenciado, com ou sem habilitação profissional completa, que dá

aulas de modo permanente. Isto é, a aquisição da categoria de professor dá-se pelo vínculo de trabalho” (2009:31). A condição de professor adquire-se estritamente pelo exercício da actividade docente. Nesta concepção laboral, a formação inicial específica do professor é desvalorizada (ou reduzida à componente didáctica). Ainda segundo o mesmo autor “no modelo profissional, a categorização de professor dá-se pela obtenção académica e profissional inicial e não está dependente do vínculo contratual.”

No modelo laboral o professor é visto como “aquele que dá aulas” (Formosinho, 2009:32). Ainda, segundo este autor, a representação do professor como o que dá aulas tem subjacente uma representação do ensino como uma actividade que não requer preparação profissional específica, ou seja, a representação de que, para ensinar, qualquer um serve, bastando para isso expor a matéria do programa nas aulas. Veicula-se a ideia de que a docência é uma profissão posterior, uma ocupação de recurso face à ausência de outra alternativa. A formação de professores tem algumas especificidades em relação à formação de outros profissionais. Segundo Formosinho (2009:94), uma especificidade é o facto de “existir uma política específica e detalhada para a educação escolar”. Outra especificidade é o facto de a maioria dos professores serem recrutados pelo Estado, o que os torna funcionários públicos.

Formosinho considera também “que a docência é uma profissão que se aprende desde que se entra na escola”, pela observação do comportamento dos respectivos professores. Isto é, um profissional de ensino, ao ensinar, transmite conhecimentos e atitudes sobre a profissão pelo modo como desenvolve o seu papel. É deste modo um ofício que se vai aprendendo ao longo da vida, desde o jardim-de-infância até ao ensino superior.

O processo de construção da identidade do professor é um processo que se desenvolve ao longo da sua vida, em espaços diversificados onde estão presentes conflitos mais ou menos intensos que têm, subjacentes, normas, valores e códigos de comportamento associados ao grupo profissional dos professores.

Ninguém se forma no vazio. A formação pressupõe experiências, trocas, interacções sociais, aprendizagens, etc.. O processo de formação é dinâmico e vai-se construindo através

de uma apreensão objectiva do que é exterior ao indivíduo. Segundo Moita, “a identidade pessoal constitui a apropriação subjectiva da identidade social, ou seja, a consciência que um indivíduo tem de si mesmo é marcada pelas suas categorias de pertença e pela sua situação em relação aos outros” (1992: 115). Também o processo de construção de uma identidade profissional implica a apropriação subjectiva da função social da profissão, do estatuto da profissão, da cultura do grupo profissional de pertença inserido num determinado contexto sociopolítico, ou seja, no caso dos professores, a relação que estes estabelecem com a sua profissão e os seus pares.

Para Perrenoud, a “profissionalização define-se em parte por características objectivas. Mas é também uma identidade, uma forma de representar a profissão, as suas responsabilidades, a sua formação contínua, a sua relação com outros profissionais, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino, a divisão do trabalho no seio do sistema educativo e entre pais e professores” (1993:152).

Segundo Moita (1992:116), “o processo de construção de uma identidade profissional própria não é estranho à função social da profissão, ao estatuto da profissão e do profissional, à cultura do grupo de pertença profissional e ao contexto sociopolítico em que se desenrola”. Para a autora (ibid.:116), a identidade, para além de se construir a partir do enquadramento intraprofissional, constrói-se também com o contributo das interacções que se vão estabelecendo com os diferentes universos, profissionais e socioculturais.

O papel dos outros universos, familiar e social, em relação à profissão pode ser muito diversificado. Para uns, a profissão pode constituir o motor da sua vida, para outros, é apenas uma forma de obter rendimentos para a família. Com perspectivas da profissão, por vezes, tão divergentes, “a identidade é parte fundamental do movimento pelo qual os indivíduos e os grupos compreendem os elos, mesmo imaginários, que os mantêm unidos. Compartilhar uma identidade é participar, com outros, de determinadas dinâmicas da vida social” (Moreira e Macedo, 2002:13).

No entanto, a adesão de um indivíduo a um grupo não significa que esta não possa ser caracterizada por diferentes sentimentos, nomeadamente, de participação, de apoio contra pressões externas, de obrigação, de participação em actividades dirigidas por um objectivo comum. Estes sentimentos podem-se alterar em função de variações ao nível do indivíduo, ao nível do grupo, ao nível do contexto onde indivíduo e grupo estão inseridos.

Deste modo, as atitudes dos elementos de um grupo recebem sempre, em maior ou menor grau, a influência deste, podendo o papel de um indivíduo variar, consideravelmente, de grupo para grupo, e ir desde uma participação bastante activa até uma participação passiva. Por outro lado, os grupos e os contextos em que o indivíduo está inserido são também influenciados por este. Assim, a identidade de um grupo, neste caso um grupo profissional resulta, por um lado, da confrontação entre os próprios elementos do grupo e, por outro, da confrontação destes com o exterior, nomeadamente com outras pessoas e outros grupos.

A identidade de um grupo, consequentemente, não resulta da homogeneidade interna e da anulação das diferenças, já que os próprios elementos de um grupo são também diferentes. É apenas por meio da relação com o outro que a nossa identidade se produz (Moreira e Macedo, 2002:19). Porém, a identidade de um grupo não existe se não houver um conjunto de normas, valores e códigos de comportamento a unir os seus elementos em função de um fim a atingir, já que, sem esse conjunto de normas, valores e códigos de comportamento, era impossível os elementos de um grupo distinguirem-se e confrontarem-se com os elementos de outros grupos.

Assim, a identidade de um grupo é plural e ancorada num sistema simbólico de diferenças múltiplas e baseia-se na ideia fundamental de que um grupo de indivíduos é um conjunto de elementos em interacção e organizado em função de um mesmo objectivo.

Estas interacções não são lineares, uma vez que resultam de jogos de atracção e de afinidade e de jogos de antagonismo entre os elementos que formam o grupo e são estes movimentos de ordem e de desordem que permitem a evolução de um determinado grupo.

Segundo Perrenoud (2001:21), uma parte considerável do exercício das funções profissionais dos professores fundamenta-se no habitus, isto é, num conjunto estruturado de esquemas de percepção, avaliação, decisão e acção. O habitus de cada professor estrutura-se desde a mais tenra idade através do conjunto de experiências de socialização, quer enquanto aluno, quer enquanto professor. Dubar (2003:45) afirma que a racionalização do trabalho, nos anos 60-70, provoca a decomposição dos ofícios tradicionais e surge a crise de identidades

colectivas com a entrada em massa, no mundo do trabalho, de empregados “não qualificados”.

Deste modo a unidade da classe operária explode e a flexibilidade torna-se norma e deixa-se de pensar nos empregados como um todo.

Nos finais dos anos 80 inova-se no que diz respeito à formação, associada, não só à organização do trabalho e à produtividade, mas também à gestão das carreiras e das competências profissionais. Surge então “um novo modelo de formas identitárias que cruza o espaço prioritário de investimento e reconhecimento (a empresa ou a rede familiar) com a temporalidade típica, legível na relação com o futuro e na reconstrução biográfica (progressão ou bloqueamento)” (Dubar 2003:46). Segundo o mesmo autor, a noção de identidade profissional está directamente ligada às relações entre trabalho e formação (2003:51).

A abordagem compreensiva desta relação coloca em evidência as formas identitárias que, simultaneamente, constituem uma forma de viver o trabalho e de conceber a vida

profissional no tempo biográfico. Estas formas identitárias dependem do contexto histórico,

variando ao longo dos tempos. E tem sido ao longo dos tempos que o discurso pedagógico e social tem vindo a acentuar cada vez mais o papel dos professores, responsabilizando-os pela qualidade do ensino. De facto, relacionado com o momento histórico e a realidade social, o conceito de profissionalidade docente está em permanente elaboração.