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Como último tópico do capítulo, apresentamos especificamente os desafios impostos às feministas por setores sociais que se condenam o aborto realizado em qualquer circunstância. Já foi discutido anteriormente como várias feministas, na década de 70, optaram por não levantar a questão do aborto devido às alianças com a Igreja Católica e a esquerda na oposição contra a ditadura. Contudo, este cenário muda e a década de 80 abre com intensa campanha do feminismo a favor da descriminalização do aborto.

Neste momento, ocorreu então uma ruptura da aliança entre feminismo e Igreja Católica. Do mesmo modo que o feminismo, a Igreja também mantinha conexões com grupos de pensamento alinhado, estabelecendo o que Aldana (2005) chamou de articulação internacional conservadora. Em perspectiva ecumênica, a Igreja se aliava a movimentos pró- vida - de maioria religiosa, mas não exatamente católica - além de usar argumentos da alta

hierarquia católica, tais como a menção ao aborto como genocídio presente nos textos das encíclicas papais (ALDANA, 2005).

Nesta campanha anti-aborto da Igreja, percebemos ações de acolhimento às mulheres que querem abortar, como oferecer abrigo à mulher durante a gestação e o encaminhamento do bebê para adoção logo após o nascimento, assim como distribuição de cartilhas anti-aborto e exibição de filmes, como ―O Grito Silencioso‖ (1984) exibido durante o período da construção da Constituinte. De forma intimidatória, a Igreja agia expondo nomes em missas, com ameaças de excomunhão e acusação de crime contra inocentes, considerando os ―direitos dos fetos‖. Além disso, divulgava opiniões de profissionais da saúde famosos ou de prestígio contrários ao aborto, orientava profissionais a negarem a realização do procedimento sob o argumento de objeção de consciência e a tratar de modo grosseiro as mulheres que procuram o aborto, até mesmo a negar a anestesia (ALDANA, 2005).

Na política, antes mesmo da Constituinte, este embate pode ser visto no caso que se segue. Uma das ações feministas em relação ao aborto nos anos 80 foi fazer valer na prática os casos previstos em lei que não eram atendidos, como no caso de Jucilene. Não havia hospitais reconhecidos que atendessem mulheres nestas situações19. Em 1985, a deputada Lúcia Arruda (PT) conseguiu aprovar na assembleia estadual do Rio de Janeiro a lei 832/85 que obrigava a rede de saúde atender aos casos de aborto previstos no Código Penal. Devido à interferência do Cardeal D. Eugênio Sales, o governador do Estado (na época Leonel Brizola) entrou com pedido de revogação da lei. Leila Barsted conta que:

A cúpula da Igreja Católica, no Rio de Janeiro, deflagrou intensa campanha contra tal lei. Distribuiu nas paróquias, para ser lida em todas as missas de domingo que antecederam à votação do pedido de revogação da lei, uma carta onde repudia a norma legal afirmando que obrigava os serviços médicos a praticarem o crime de aborto. A mesma campanha foi levada a efeito nas estações de rádio (BARSTED, 1992).

O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro também apoiou a revogação da lei, corroborando a posição da Igreja. A oposição foi tão forte que mesmo a presença de um governador de esquerda, concordando com a lei da deputada Lúcia Arruda, não conseguiu fazer valer o direito das mulheres que já estava previsto no Código Penal.

Em relação ao processo da Constituinte, a Igreja Católica, por sua vez, trabalhou para constituir uma nova ordem social. Em relação ao aborto, institui-se um verdadeiro cabo de

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Na verdade, este cenário permanece até hoje. São poucos os hospitais que realizam os casos de aborto previstos por lei no Brasil, pesquisas mostram que há 37 locais com serviços de aborto legal no país, a maioria situados nas capitais. Além de poucos, não há uma campanha de conscientização pública ou que forneça informações às mulheres sobre seus direitos. O cenário mudou muito pouco nos últimos 30 anos.

guerra entre feministas e Igreja no advocacy20 parlamentar. A Igreja agiu principalmente através dos seus assessores políticos no Congresso Nacional, além de manter contato íntimo com parlamentares, comumente conservadores e de direita, enviando bispos e presidentes de setores da Igreja diretamente ao congresso.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apresentou o documento intitulado ―Por uma Nova Ordem Constitucional‖ na qual elencava os aspectos a serem incluídos na constituição. Dentre estes, contra o aborto provocado, constava no item referente à promoção e defesa da vida que esta deve ser preservada desde o primeiro instante da concepção, sendo o aborto completamente inaceitável (ALDANA, 2005, p. 86). Os desdobramentos destas disputas em torno do aborto serão detalhados no próximo capítulo.

Estes episódios demonstram a atuação do poder de influência da Igreja Católica na cultura e política do país e como a laicidade do Estado é frágil. As razões desta fragilidade e o conservadorismo da opinião pública brasileira em questões tabu como aborto estão ligadas ao processo de colonização português empreendido no Brasil que manteve por séculos a religião Católica como oficial. Como aponta Aldana, a alta hierarquia católica tradicionalmente compactuou com as classes dominantes no Brasil, processo que de certa forma continua até hoje. Além disso, lembra a autora, a Igreja Católica estabeleceu ao longo da história brasileira uma organização poderosa e capilar de modo a atingir todo o território nacional. Nas cidades pequenas do interior brasileiro, onde muitas vezes o Estado não chegava, era certa a presença de ao menos uma capela da Igreja Católica.

Assim, apesar do Estado ser declarado laico desde o advento da Proclamação da República, portanto há mais de um século, é profunda a presença do catolicismo na cultura brasileira e sua interferência na legislação. No contexto da redemocratização e noutros momentos importantes para o movimento feminista fazer incluir os direitos das mulheres em lei, essa cultura católica constitui um dos maiores desafios para as feministas que precisam lidar com a oposição da opinião pública brasileira em questões como a do aborto.

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O termo advocacy ainda não possui uma tradução adequada ao seu sentido na língua portuguesa. Advocacy quer dizer a ação em conjunto de pessoas, grupos, organizações sociais, instituições, empresas, entre outros, para articular a comunicação com setores de poder, como o governo, na luta por direitos específicos. Cf. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em:

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