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A

NTES.

Em outro lugar, havia um casal de velhos. Possuíam uma fazenda. Estavam sentados à mesa longa de madeira, que um dia estivera repleta de fi lhos se acotovelando. Os lampiões estavam acesos, porque era noite. Os dois velhos estavam imóveis em suas cadeiras. E havia uma terceira pessoa.

Depois de muito tempo de silêncio intacto, o fazendeiro se levantou.

— Sente-se! — latiu a terceira pessoa da mesa. Não era um fi lho ou um amigo, nem mesmo um conhecido ou um viajante. Era um intruso.

Um intruso albino que, há pouco, havia matado os dois cachorros de guarda.

— O que você quer? — gemeu a velha. Não era a primeira vez que fazia esta pergunta; o albino chegara estraçalhando os animais e batendo no seu marido, e não dissera palavra. Apenas ordenara que se sentassem à mesa e fi cassem quietos.

O albino, vestido em uns farrapos curtos que deixavam longas partes de seus braços e pernas de fora, segurava a cabeça com força, com ambas as mãos. Os cotovelos se apoiavam sobre a mesa de madeira velha e enrijecida pela fumaça, e o corpanzil se arqueava. As têmporas latejavam. Era tanto barulho! O albino sentia o corpo frágil doer (e a cabeça ainda mais) com toda a algaravia que faziam os habitantes daquela terra. Agora queria um pouco de calma. Calma e respostas, e forçaria aqueles dois espécimes a providenciarem ambos.

Prestou atenção de novo à sensação de vazio dolorido no estômago. Lembrou-se: era fome. Mais uma fraqueza a que se acostumava lentamente. Ordenou que trouxessem comida.

— O que quer comer? — choramingou a mulher de novo.

— Comida! — vociferou o albino. Gente estúpida, tinham uma palavra para cada tipo de substância que usavam para satisfazer aquela necessidade. O albino odiava palavras, porque era difícil lembrar de todas. Além do mais, a mente que estava encerrada naquele corpo patético era elementar e pobre, capaz de voos de consciência muito menores do que aqueles

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aos quais ele estava acostumado. Tentava entender como aqueles seres medíocres podiam memorizar todos os seus códigos.

A velha hesitou, fazendo uma careta como se, a cada instante, esperasse ter o mesmo destino de seus cães, e se levantou para ir pegar a comida.

— Se tentar... — o albino sacudiu a cabeça, procurando a palavra. — Se tentar fugir — lembrara-se — devoro ele — apontando para o senhor ao seu lado.

O corpo da velha começou a corcovear, com ruídos surdos e compassados, e a água salgada que era característica da fraqueza verteu de seus olhos. Outro hábito daqueles seres.

O albino também se ergueu, agarrou a velha nos braços e lambeu-lhe o rosto. Deteve- se em sentir o gosto das lágrimas e comprovou que, de fato, era salgado. Era importante confi rmar seus achados.

Ela sumiu em outro cômodo simples. A casa era sólida e modesta, com a franqueza confi ável dos pobres honestos. O albino vasculhara todas as peças, procurando mais algum habitante (arrastara as carcaças dos cachorros por alguma razão, e agora um rastro de sangue fétido se espalhava por tudo), mas não havia mais ninguém. O que era bom, porque, em grandes quantidades, os habitantes daquele mundo tinham o hábito de fazer barulho e criar desordem, e aí ele tinha de matá-los.

— Por que não tem fi lhotes? — dirigiu-se, de repente, para o velho. Falou escolhendo as palavras, satisfeito em verifi car que elas vinham cada vez mais naturalmente.

O homem de barba cinzenta estremeceu com a pergunta. Por um momento, apenas piscou os olhos desiguais (um azul e o outro cinza chumbo, combinando com o cabelo ainda farto e com a barba que lhe cobria o rosto). Depois balbuciou algo, e por fi m respondeu:

— Já cresceram. Foram embora.

O albino assentiu. Isso ele entendia: mesmo em sua terra eram criados substitutos, que nasciam muito mais fracos do que seus genitores. Mas aqui as proles nasciam inúteis, e eram protegidas para que não morressem. De onde ele vinha, alguém incapaz de sobreviver por si mesmo — e evoluir por si mesmo — era descartado. Por que alguém zelaria por um rival, um ser que vinha para tomar seu lugar? Afi nal, o novo sempre tende a matar o velho.

— O que são seus fi lhotes? — disse o albino. Sua voz, embora gutural e carregada com o peso de uma língua sem hábito, era muito menos hostil do que já fora a outros seres menos cooperativos.

— Um é soldado — respondeu o velho, após ter certeza de ter entendido a pergunta. — O outro é escriba — havia mais, mas o velho sentia como se estivesse traindo os garotos ao falar deles para aquele homem. Sua trupe barulhenta de rapazes saudáveis, era como se blasfemasse ao mencioná-los ali.

A senhora voltou com a comida. O albino devorou pão, linguiça, mel, carne seca, leite e batatas cruas. Demorou a perceber quando já estava satisfeito e, assim que parou de comer, sentiu-se um pouco nauseado. Grunhiu para que a velha se sentasse.

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Conversa à Mesa

— O que é escriba?

O casal se entreolhou. O homem tentou um olhar de segurança para sua esposa, mas estava tão apavorado quanto ela.

— Alguém que escreve — disse o velho, enfi m. — O trabalho de meu fi lho é escrever. O albino aproximou sua cara suja de comida do rosto forte e enrugado do outro e, por um instante de delírio e coração disparado, o velho pensou que iria morrer ali mesmo. Mas o albino apenas olhou em seus olhos díspares, com seus próprios olhos vermelhos e perturbadores e, quando abriu a boca de novo, inundou o nariz do outro com mau hálito e perdigotos.

— O que é escrever?

Alguém que tem poder sobre outra pessoa é muito perigoso se estiver disposto a usar tal poder. Mais perigoso ainda se for desconhecido, impenetrável. E ainda mais perigoso se for ignorante. O velho fazendeiro percebia que seu interlocutor era do tipo mais perigoso de pessoa, e pensou em uma forma de explicar algo tão óbvio sem provocar ira ou confusão.

— Escrever... Desenhar sons no papel. Desenhar o que falamos.

O albino esboçou um sorriso quase tolo, que poderia chegar a ser cômico se não viesse de um assassino. Agora entendia como eles podiam se lembrar das palavras — tinham um meio de registrá-las. Mas, depois de um instante de raciocínio, deu-se conta do poder disto.

— Você tem esta ciência? — berrou, batendo na mesa e jogando o jarro de leite ao chão. — Por que não me disse? Quer me enganar? — deu um tabefe no ouvido do fazendeiro, fazendo o sangue brotar, escorrendo pelo lóbulo e pela mandíbula.

— Senhor — ganiu o velho. — Mas se todos sabem...

Não estava longe da verdade. Embora vivessem em um reino pacato e bem-estruturado (e Collen não podia se queixar de falta de calma ou prosperidade), aqueles dois camponeses não eram exceção em Arton. Pelos esforços da igreja de Tanna-Toh, a Deusa do Conhecimento, a palavra escrita fora difundida em cada canto do Reinado. Não era raro ser alfabetizado, mesmo sendo pobre.

O albino mirou aqueles dois seres patéticos inúteis (por que nunca tinham evoluído?), e ponderou sobre o poder incrível que conheciam. Suas unhas compridas e duras arranharam a mesa de madeira, tirando lascas e farpas que vinham se acomodar na carne macia dos dedos. Aquela era uma disciplina impressionante — a capacidade de capturar conceitos, ideias, coisas ainda imateriais de pleno ar, e fazê-las visíveis com movimentos codifi cados. Era tão enorme que ele tinha difi culdade para manter a ideia em mente.

— Me ensine a usar essa arma — rosnou.

— Não é arma — tentou o fazendeiro. Um segundo safanão derrubou-o da cadeira e arrancou três dentes.

— Uma coisa poderosa como essa não é arma? — o albino teria rido, se soubesse como. — Não tente me enganar.

— Se podem transformar ideias em objetos — era uma frase difícil, e ele demorou a conseguir pronunciá-la. — Por que não usam como arma? Em que usam? Religião?

— Sim — interrompeu a mulher. Ela achava que entendera algo do pragmatismo do visitante intruso. — Usamos para religião.

O albino fez que entendia. Embora a relação daquele povo com seus deuses fosse estranha (devoção e respeito), a prática religiosa era algo que ele podia compreender.

— É um ritual então? — agora falava com a velha. — Sim. Um ritual.

— Mostre.

Pedindo licença e anunciando cada movimento, a senhora desencavou um pedaço de pergaminho há muito inútil, uma pena, e um frasco de tinta que quase já secava. Deliberadamente lenta, desenhou algumas letras trêmulas. O que ela escreveu era:

“Fuja. Eu distraio ele.”

O homem leu aquilo e mordeu o lábio, trancando uma respiração no peito. — O que você capturou aí? — latiu o albino. A velha não soube o que responder. — Um deus — decidiu-se, hesitante.

— Há um deus aí? — o albino gritou enquanto se erguia, derrubando a cadeira. Era um poder impressionante.

— Ele não pode sair — tentou a velha.

— Mas pode ser levado... — murmurou o albino para si mesmo. — Está preso... Fossem devotos de Tanna-Toh, o casal poderia estar fascinado com a descoberta da mente alienígena de seu algoz. Poderiam estar fascinados também pelo processo de aprendizado que se dava ali, em frente aos seus olhos. Mas eram só fazendeiros, e estavam mais interessados em viver. O homem tomou o pergaminho e a pena.

“Não. Eu distraio ele, você foge. Pegue um cavalo e tente chegar à cidade.”

O albino observava o vai e vem do pergaminho que se enchia de símbolos. Perguntava a cada golpe de pena o que estava sendo capturado, e parecia satisfeito com as respostas.

“Se eu fi zer isso você vai morrer.” A velha segurando lágrimas. “Se não fi zer, morremos os dois.”

O albino, poder de vida e morte, olhava boquiaberto.

“Prefi ro morrer com você.”

“Quero que você cuide dos meninos.” O velho mal conseguia escrever, tanto que lhe tremia

a mão.

“Você sabe que eu te amo.”

O albino pensava em como aquela ciência prodigiosa iria benefi ciar os seus mestres.

“Eu também te amo.”

E enquanto, no pergaminho, o casal capturava todas as suas vidas em poucas frases de adeus, o albino olhava. A pena caiu à mesa num momento infi nito, e pareceu fazer um estrondo

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Conversa à Mesa

enorme, quando o velho saltou como uma fera jovem sobre o estranho invasor. E, por um minuto, seus braços foram fortes de novo, pois ele conseguiu lutar por tempo sufi ciente para que sua velha esposa corresse e chegasse a um dos cavalos. Eles nunca haviam lutado, em todas as suas vidas grisalhas, mas agora tinham a rapidez e a força de dois animais em desespero. A velha imaginou se o belo cavalo pardo seria capaz de correr mais que o albino.

O

NOME MAIS APROPRIADO PARA SER EVOCADO ALI, PENSOU Vallen Allond, era mesmo o de Sszzaas, o Deus da Traição. Ou, se houvesse, o de algum Deus dos Idiotas.

Ele não podia acreditar em como fora tolo. O capitão Sig Olho Negro, jovem comandante da nau “Cação Cego IV”, os havia pego na mais simples das traições. Enquanto dormiam, em seus respectivos aposentos improvisados no barco, haviam sido rendidos e subjugados. Houvera sentinelas, é claro, e turnos de guarda, mas isso não adiantara de nada. Artorius, o gigantesco minotauro, fi zera questão de fi car acordado até que outro tomasse seu posto, e rondara em vai e vem as portas fechadas dos colegas que ressonavam. O próprio Vallen, junto com Ellisa, dormira de armadura, com as espadas ao pé da cama e uma faca sob o travesseiro. Contudo, eles não contavam em como fosse difícil lutar no navio oscilante.

Vallen, embora tivesse pouco estudo (suas letras eram fracas, e tinha treinado com aplicação apenas algumas frases como “rendam-se” ou “estamos em maior número”) era um homem inteligente. Não demorou a raciocinar que o ataque havia sido desferido, de propósito, quando o navio balançava mais selvagemente, e as ondas eram mais bravias. Todos os tripulantes do “Cação Cego” eram experientes em lutar no oceano. Na verdade, pensou Vallen, como piratas, aquilo era sua vida. Entre os marujos, havia a expressão “pernas do mar”, que designava os movimentos daqueles acostumados a compensar o chacoalhar do oceano. Aquilo fi zera falta no combate curto que se sucedera.

Artorius fora emboscado por cinco homens, e ainda conseguira derrubar dois antes de ser posto ao chão. Um dos marujos estava morto, mas o outro sobreviveria. Kodai enfrentou com ferocidade outros cinco, e foi quem mais teve sucesso: cortou as mãos de um e matou outros dois antes de ser rendido. Vallen e Ellisa tiveram a duvidosa honra de lutar contra