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Esta parte dedica-se à experiência e ao corpo que vive a maternidade e a dança no tempo presente. Aqui, abordamos a questão central da tese, buscando verificar se a maternidade muda necessariamente o rumo das carreiras das mulheres-artistas na dança, a partir de uma metodologia experimental. Aqui, a pesquisadora oscila entre sujeito e objeto de pesquisa. Trata-se de um experimento individual, em que o conceito de experiência é o centro articulador, propondo pontes com outros materiais utilizados, como entrevistas quanti-qualitativas, relativizando, assim, a micro-história particular. O entendimento do conceito de experiência será explicitado mais à frente.

Talvez esta seja a parte mais desafiadora deste trabalho. Desafiadora não só no nível prático, em virtude dos obstáculos inerentes às vivências imersivas, mas desafiadora, principalmente, no âmbito acadêmico. Enquanto pesquisadora-pesquisada, a tarefa assumida é o olhar-se de um ponto de vista externo, observando os fatos de forma mais neutra e objetiva possível, sabendo de antemão que imparcialidade não existe. Além disso, olhar-se de um ponto de vista interno, ampliando aspectos subjetivos e relacionando-os com um universo macro. Que aspectos da vida pessoal relacionados à maternidade e à dança da pesquisadora-pesquisada são relevantes para uma comunidade acadêmica? Que experiências vividas nesse corpo são interessantes para uma comunidade artística e acadêmica, a ponto de auxiliar na construção de conhecimento? Dúvidas que se mantiveram em toda a trajetória da pesquisa, mas que, por isso, apoiaram-se no esforço de tentar dar destaque apenas às experiências que interfiram ou digam respeito à atividade enquanto artista e que digam respeito à questão central da pesquisa.

Outro desafio colocado: o tempo. Como a matéria primária deste experimento baseia-se na experiência e seu registro e, portanto, nas memórias e percepções da pesquisadora-pesquisada, o tempo torna-se um elemento chave de construção e parcialidade. Afinal, as percepções modificam-se ao longo do tempo, transformando ou sedimentando as

memórias. Assim, o recorte temporal utilizado estendeu-se do primeiro mês de vida do filho da pesquisadora até seu aniversário de quatro anos. A maioria dos registros foi feito a partir de uma percepção imediata das experiências - para manter o frescor das vivências - mas, em tempos diferentes de contato com esse bebê/criança, ao longo dos quatro anos.

A pesquisa foi-se moldando durante o percurso. Com foco na vivência e no registro, viver o presente tornou-se mais urgente do que o alcance de resultados em objetivos pré-definidos. Logo, a escrita desta parte é processual e as relações foram-se descobrindo ao longo da jornada. Nesse caminho, algo inesperado surgiu: para além das observações pertinentes à carreira profissional no puerpério, emergiram outras relações entre maternidade e dança em campos que se afetam mutuamente e transformam o corpo mãe-artista da dança. Assim, esta Parte II organiza-se em dois eixos de subcapítulos: primeiramente o que detalha procedimentos metodológicos, preocupações acadêmicas e referências bibliográficas sobre os temas abordados: Material, Olhar e Ser Olhado, Experiência e Puerpério; e, depois, o que apresenta os tópicos relacionais entre maternidade e dança elencados a partir da vivência imersiva com o bebê: Corpo Animal, Corpo Transformação, Corpo Pele, Corpo Interrompido e Corpo Produtivo.

Justifica-se, então, o atravessamento de vozes, que viajam do singular para o plural, da primeira para a terceira pessoa, em devaneios poéticos e duras realidades. Não há, necessariamente, aviso sobre essas mudanças. São distorções que fizeram parte do processo e que dizem respeito aos desafios inerentes ao amálgama entre sujeito e objeto, entre agir e testemunhar.

[PARTE II] 1. Material

O material utilizado nesta Parte II é misto: teórico e prático. É composto por vivências imersivas entre mãe-artista (pesquisadora) e bebê/criança (seu filho), que geraram diários de campo realizados em quatro etapas distintas da maternidade: durantes os primeiros seis meses de vida do

bebê, no cumprimento de seu primeiro ano, no marco de um ano e seis meses e aos dois anos de vida; autoentrevistas com a mãe-artista (pesquisadora), realizadas nesses mesmos períodos; entrevistas qualitativas, com estrutura semiaberta, realizadas com mães de diferentes idades e ocupações relacionadas à dança contemporânea na cidade de São Paulo; e questionários realizados com mulheres artistas da dança, divulgados por meio digital.

Foram realizadas quatro entrevistas, no início de 2017, com diferentes artistas da dança contemporânea de São Paulo: Nirvana Marinho, pesquisadora e curadora de dança, quarenta anos, mãe de dois filhos - oito e seis anos; Uxa Xavier, coreógrafa e professora de Dança para Crianças, cinquenta e seis anos, mãe de duas filhas - vinte e vinte e sete anos; Clarice Lima, coreógrafa e intérprete-criadora, trinta e três anos, mãe de um filho de cinco anos e gestante de quatro meses; Letícia Sekito, coreógrafa e bailarina, quarenta anos, mãe de um filho de três anos. As idades correspondem à época das entrevistas, em fevereiro de 2017. Ainda que de gerações e atividades diferentes na dança, esclareço que as entrevistadas se assemelham por fazerem parte de um círculo próximo de atuação de artistas da dança contemporânea da cidade de São Paulo. Assim, a posteriori, analiso de forma crítica que não obtive um espectro amplo de resultado por não ter entrevistado, por exemplo, mães negras, da periferia, ou que tivessem outra relação trabalhista com a dança, como as bailarinas clássicas ou integrantes de elencos de grandes companhias estáveis, com registro profissional formalizado pela CLT .

Os encontros duraram, cada um, aproximadamente uma hora e quarenta minutos. As perguntas estavam relacionadas à realidade da maternidade, o retorno ao mercado de trabalho e seu retorno financeiro, e comportamento de gênero na profissão da dança. Para manter uma conduta ética, visto que as falas tocam em lugares muito íntimos e pessoais, preferi manter o anonimato quanto aos fatos. Contarei aqui alguns dos fatos que me foram relatados, mas sem relacioná-los a seus sujeitos. O material resultante dessas entrevistas será relacionado com os diários de campo e abordado nos subcapítulos Corpo Transformação e Corpo Produtivo.

Além disso, foi elaborado um questionário de perguntas objetivas, difundido por meio digital, respondido integralmente por mulheres artistas da dança, majoritariamente da dança contemporânea, de São Paulo, não necessariamente mães. As perguntas relacionam-se ao mercado de trabalho, à profissionalização em dança, ao comportamento do mercado de trabalho para com as mulheres e à expectativa da maternidade. Em janeiro de 2019, havia trinta e seis respostas ao questionário. Dentre as perguntas estão: sua renda principal provém das atividades com dança?; tem carteira assinada (CLT)?; já sofreu preconceito de gênero na profissão?; acha que existe diferença no mercado de trabalho para homens e para mulheres, na dança, em São Paulo?; você tem filhos?; se não tem filhos, deseja ter?; se não deseja ter filho, é devido à sua atividade profissional?; a dança influenciou em algum aspecto essa decisão?; sofreu algum tipo de preconceito ligado à maternidade na profissão? Esse material será de auxílio na composição de uma análise mais detalhada sobre mercado de trabalho e maternidade na dança, apresentada no subcapítulo Corpo Produtivo.

[PARTE II] 2. Olhar e ser olhado

Relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença (ROCHA, 1988, P.98).

Como provocação inicial, propomos uma aproximação da metodologia desta parte da pesquisa com a da Antropologia, para refletir sobre o fazer pesquisa em artes na academia. Dispor-se como pesquisadora e pesquisada mostrou muita afinidade com o ofício do etnógrafo. O etnógrafo - pesquisador da Antropologia que vai a campo colher dados - dispõe-se a entrar em uma comunidade no intuito de observar as pessoas e analisar qualitativamente suas relações, ações e rituais. Assim foi com esta pesquisa: a pesquisadora

colocou-se em campo para viver as experiências da maternidade, observando sua relação com seu corpo e seu trabalho ao longo do puerpério.

A antropologia, embora sem exclusividade, tradicionalmente identificou-se com os métodos de pesquisa ditos qualitativos. A observação participante, a entrevista aberta, o contato direto, pessoal, com o universo investigado constituem sua marca registrada. Insiste-se na ideia de que, para conhecer certas áreas ou dimensões de uma sociedade, é necessário um contato, uma vivência, durante um período de tempo razoavelmente longo, pois existem aspectos de uma cultura e de uma sociedade que não são explicitados, que não aparecem à superfície e que exigem um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia (VELHO, Gilberto, 2008, p. 123-124).

A diferença é que o corpo do etnógrafo é sempre um corpo alheio ao corpo pesquisado, é o outro. Em alguns casos, o estrangeiro é realmente um corpo estranho, de uma comunidade desconhecida, agindo de forma completamente distinta ao conhecido pelo etnógrafo. Em outros casos, nem tão estrangeiro assim - pode ser que o etnógrafo esteja pesquisando comunidades próximas de sua cultura, de comportamento e rituais semelhantes aos seus próprios. Uma das estratégias para manter a imparcialidade do olhar na observação e análise, seja o pesquisado próximo ou distante de seu convívio, é relativizar. Da Matta (1978), ressalta dois movimentos para esse ofício: "transformar o exótico em familiar e/ou transformar o familiar em exótico" (DA MATTA,1978, p.4). Dessa maneira, o etnógrafo consegue distanciar-se ou aproximar-se, a depender da situação dada, buscando sair da zona de conforto e dos possíveis preconceitos e vícios de relação. No entanto, no caso desta pesquisa, etnógrafo e etnografado são mais do que familiares, são um só corpo: mãe-artista- bailarina-pesquisadora.

Quando o etnógrafo vai a campo pesquisar, sua entrada na comunidade já é, em si, uma etapa da pesquisa. Ele é convidado? Ele pede para entrar? Ele se esconde? Como ele adquire confiança para desenvolver sua pesquisa de forma imparcial? No caso desta pesquisa, não há pedido de permissão. Há o agora, o acontecimento e a ação. O terceiro sinal do teatro toca sem demora. A pesquisadora, a bailarina, a artista, o objeto de pesquisa,

a etnografada entram em cena em um corpo unificado. Quem é o quê? Quem faz o quê? Quem observa o quê? Quantas urgências e objetivos cabem nesse corpo?

O etnógrafo em ação dispõe de duas alternativas: ou coloca-se alheio e observa a comunidade ao longe, ou propõe-se a participar de seus rituais, como parte integrante deles, ao que chamamos de Antropologia Compartilhada. De todo modo, o etnógrafo tem como objetivos finais a observação e escrita. Como mãe-artista-etnografada-etnógrafa, deparei-me com um sem número de objetivos - igualmente urgentes -, o que, com certeza, deturparam minha observação e a elaboração da etnografia.

Entretanto, destaca-se uma semelhança entre as duas práticas: não importa o grau de proximidade entre etnógrafo e objeto - seja ele familiar, exótico ou o mesmo corpo -, o etnografado sempre será modificado por estar sendo observado. O mesmo vale para o etnógrafo. Enquanto pratica um rito do cotidiano, ao notar que está sendo observado, o sujeito dará maior ou menor atenção a uma prática anteriormente executada de forma automática. Enquanto observa o sujeito em seu rito do cotidiano, o observador questiona a si mesmo, aproximando a experiência do outro à sua própria. O ato de observar modifica a todos. A transformação é inevitável.

Tudo o que posso dizer hoje é que, no campo, o simples observador se modifica a si mesmo. Quando ele está trabalhando, ele não é mais aquele que cumprimentou o velho homem ao entrar na aldeia. (...) Aqueles que com ele interagem igualmente se modificam a si mesmos, a partir do momento em que confiam neste estranho habitual visitante. (ROUCH, 2003, p. 185, apud GONÇALVES, 2008, p.7).

Ora, aqui, encontramos mais uma semelhança entre a Antropologia e as artes. Nesse aspecto de olhar e ser olhado, etnógrafo e performer (aquele que age nas artes cênicas, como, por exemplo, a bailarina, a atriz, a circense etc.) também se assemelham. Na busca pelo estado de presença cênica, o

performer é agente e testemunha de suas ações. Enquanto realiza o gesto

(dançado, acrobático, teatral), percebe ele mesmo, os outros que o observam, o espaço, a ação. A diferença entre o etnógrafo, o performer e a

pesquisadora-pesquisada, que, aqui, se torna mãe-artista-etnógrafa- etnografada, desta pesquisa está na intenção da ação e no objetivo do gesto. O performer realiza o gesto para ser visto e conta com esse fator como elemento de sua poética, em busca de uma experiência estética. O etnógrafo considera a transformação da observação como um dos dados de sua coleta de materiais. Já a mãe-artista-etnógrafa-etnografada encontra em si mesma múltiplos objetivos, os quais são elencados a partir de prioridades e urgências, e, por sua vez, revelam dados sobre a experiência.

Exponho essa questão porque a maternidade também modifica-se, ao ser olhada, Se já considerávamos a parcialidade da pesquisa ao agrupar mãe, pesquisadora, artista, etnógrafa e etnografada em um só sujeito, há de se somar a parcialidade de uma pesquisa interferida pelo ato da observação. Mas, também por esse fato, aproxima-se do fazer em arte, dança. Trata-se de uma experiência subjetiva, de um olhar. Olhar e ser olhado como material para a presença - seja ela social, acadêmica ou artística.

[PARTE II] 3. Experiência

Até aqui, viemos falando livremente do termo experiência e em como ele centraliza o pensamento das vivências. Mas, como ela é entendida nesta pesquisa? Consideramos experiência como a ação vivida e apreendida pelo sujeito que a vive. Assim, como propõe Bondía (2002), a experiência ocupa um tempo diferente da informação. Enquanto a informação acelera, multiplica-se e oferece dados, a experiência suspende, demora-se e pede tempo. A experiência é aquilo que nos atravessa e, por isso, transforma-nos. É aquilo "que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se

passa, não o que acontece, ou o que toca” (BONDÍA, 2002, p. 21). Para isso,

é preciso.

parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do

encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÍA, 2002, p. 19).

Em dança, também se utiliza o conceito de experiência como contraponto à superficialidade do gesto. Quando propomos ao bailarino ou pesquisador em dança que experiencie determinado movimento, esperamos que se aproprie da duração daquele movimento. Para que sinta suas camadas mais profundas e sutis, para que traga à superfície outras materialidades que não só as da ação. A experiência em dança relaciona-se com a presença e aproxima-se de um saborear o movimento. Não se trata de um tempo cronológico, mas de um tempo relativo - o tempo da sensação, da percepção, da apreciação. A experiência do movimento abre diferentes leituras possíveis de um mesmo gesto.

Ao falarmos de maternidade, estamos inevitavelmente falando sobre essas ações do corpo e do cotidiano que transformam a mulher. Desde a gestação, passando pelo parto e puerpério, a mulher depara-se com circunstâncias, situações, ações que a fazem parar, refletir ou reagir. Muitos desses encontros serão transformadores, não só no nível físico, como também no psíquico e no social. Muitos desses resultados são de transformação não só como mulher, mas como artista e sujeito.

Desse modo, experiência é entendida, aqui, como uma camada da transformação, como um aspecto da presença, em relação direta com a sensação espaço-temporal. Experiência é entendida aqui como vida e conhecimento, como ação e apropriação e, nesse sentido, como uma possível ponte direta entre maternidade e o fazer artístico em dança. "O

saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos."

(BONDÍA, 2002, p.26-7).

[PARTE II] 4. Puerpério

Além de explicitar o entendimento do que é experiência nesta tese, é preciso falar sobre as fases da maternidade, em especial, o puerpério,

período central de transformação da mulher em mãe, e quando se deram as vivências desta Parte II. Trata-se de um período chave de adaptação, escolhas e reestruturação da mulher, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, tornando-se um período chave para adentrar a questão central desta pesquisa.

O puerpério é o intervalo de tempo entre o parto, a recuperação do corpo e a formação da nova identidade psicossocial da mulher, então mãe. É um período com muitas transformações físicas, alimentada pelos hormônios, agora responsáveis também pela lactação. Nesse período transitório, é comum a instabilidade e mudanças de humor, principalmente nas primíparas, "uma vez que a inexperiência é associada a sentimentos de medo, ansiedade e esperança, que somatizam-se e podem produzir um quadro de instabilidade ainda maior que o natural" (Bordignon, Lasta, Ferreira, Weiller, 2011, p. 877). Devido a esses fatores, é muito comum a melancolia e alterações psicológicas, como, por exemplo, a depressão pós-parto.

O parto é um dos maiores momentos desencadeadores de uma série de mudanças intra e interpessoais. Após o nascimento do bebê, as alterações de rotina se processam num ritmo acelerado e em todos os âmbitos, na família e principalmente para a mulher. Os primeiros dias após o parto são representados por diversas emoções e expectativas diferenciadas vividas pela mulher. Essa turbulência de sentimentos promove uma instabilidade no quadro emocional, alternando-se entre a depressão e a euforia (BORDIGNON, LASTA, FERREIRA, WEILLER, 2011, p.877).

Há uma complexidade na definição em dias, semanas ou meses, o tempo de duração do puerpério, já que interfere em todos os aspectos da vida da mulher: seu contexto social, ambiente familiar, redes de apoio e históricos físico e psicológico. Há

três fases evidentes neste período, a fase dependente, a fase dependente-independente e a fase interdependente. As características da fase dependente estão relacionadas à habilidade de adaptar- se, o que leva em média vinte e quatro horas ou até dois dias, cujo enfoque é em si mesma e no preenchimento das necessidades básicas de conforto, repouso, proximidade e nutrição do filho; constitui um período de grande excitação em que necessita explicitar a experiência da gestação e parto. A segunda

fase dependente-independente inicia no segundo ou terceiro dia e dura de dez dias a várias semanas. O enfoque está no cuidado do bebê e competência em desempenhar ou direcionar este cuidado. (...) A fase interdependente concretiza-se quando a mãe e sua família movimentam-se sob a forma de uma unidade, como membros em interação, ocorre a reafirmação do relacionamento com o companheiro, retomada da atividade sexual e resolução dos papéis individuais (ZAGONELI, MARTINS, PEREIRA, ATHAYDE, 2003, p.24-5).

Segundo a psicóloga e escritora Laura Gutman (2019), o puerpério vai muito além dos quarenta dias previstos para a cicatrização do parto, pois envolve um período de perda de identificação pessoal, em que mãe e bebê precisam relacionar-se com uma nova realidade social.

Não se trata da recuperação definitiva do corpo físico depois da gravidez e do parto, mas tem a ver, sim, com a emoção compartilhada e a percepção do mundo com olhos de bebê. Doloridas, cortadas, humilhadas em muitíssimos casos pelos maus- tratos durante o parto, expelindo líquidos por cima e por baixo e com um bebê que chora sem que possamos acalmá-lo, deparamos com uma angústia terrível (...) Algumas mulheres também sofrem com a solidão, a falta de parentes ou amigos que as compreendam e abracem, um marido que trabalha o dia inteiro e o vazio produzido pelo fato de não reconhecerem a si mesmas (GUTMAN, 2019, p.36).

De qualquer forma, para aquelas que têm trabalho formal, registradas pelo regime da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o retorno ao ofício deve ser feito ao final da licença maternidade, que, até 2017, tinha duração de cento e vinte dias para as mães e de cinco dias para os pais, com direito a remuneração. Com isso, espera-se que, nesse período de tempo, a mulher já esteja recuperada fisicamente, segura de sua maternidade e organizada em sua rotina, hábil para o retorno às atividades profissionais. Para uma artista da dança, espera-se, além disso, que seu corpo esteja em forma, flexível e disponível para lidar com materiais coreográficos e exercícios práticos.

Se, por um lado, a mulher registrada pelo regime da CLT, conta com uma urgência no retorno ao trabalho, independentemente de já encontrar-se pronta, por outro, a mulher não registrada conta com a instabilidade financeira por não haver remuneração legal durante o período de

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