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O corpo como objeto de consumo

I - Olhares sobre a obesidade ao longo da história

IV. O corpo como objeto de consumo

Zygmunt Bauman (2008), em seu livro “Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria”, traz a discussão sobre o lugar fundamental da cultura de consumo na forma como as sociedades, em especial ocidentais, se organizam. Segundo este autor, aspectos da cultura transformam indivíduos e seus corpos em mercadoria, como objetos de comercialização para consumo.

Nesse sentido, o poder de consumo confere ao sujeito um lugar de pertencimento e cria a ideia da liberdade de escolha ao alinhar valor pessoal com expectativas sociais projetadas, e tende a responsabilizar a pessoa pelo seu sucesso ou fracasso no imaginário social.

Há uma estrutura cotidiana que revela corpos transitando sob olhares que condenam, como os corpos de Maria e Ester, que se constrangem por não atenderem a expectativa do outro (GOFFMAN, 1988). O padrão de beleza definido socialmente para as mulheres (corpos longilíneos e leves ou corpos com músculos modelados) faz elas se sentirem em débito com a imagem que representa afirmação da beleza feminina, e, portanto, notam-se indignas de admiração (MORENO PESTAÑA, 2010).

A solução muitas vezes encontrada, como se observa nas narrativas oriundas da tese de doutoramento intitulada “Fiz para me sentir mulher outra vez: corpo, construção de gênero e cirurgia plástica estética entre mulheres de Salvador- Bahia” (MARINHO, 2017), é o consumo de produtos e serviços para mudança da estética corporal com a finalidade de adequar corpos ao padrão socialmente aceito na contemporaneidade. É o que podemos constatar nos trechos abaixo:

“Quando passei do manequim 38 para o 42 fiquei mais larga. Queria voltar ao manequim 38, fiz academia, pilates, dieta. Estava com uma bolinha na barriga. Eu tinha vontade de fazer a cirurgia plástica, lia muito, entrava na internet” (NIX, 60 anos)

“Meu marido gosta de mulher magra, outros homens pensam de outro modo, esses conceitos mudam, não existe de todos pensarem do mesmo modo, lógico que não daquele corpo enorme-mente gordo que não tem condições de ninguém achar legal” (DEMÉTER, 47 anos).

“Quando estava bem gordinha não tive nada com ninguém. Agora (depois das cirurgias plásti-cas) eu estou com um paquera mais de 10 anos mais jovem. Antes era aquele culote, apertado, aquilo me matava, me entristecia, me deprimia” (TÁLASSA, 36 anos).

Fonte: Essas narrativas constam em Marinho (2017), como parte da pesquisa do Doutorado.

As narrativas acima nos fazem refletir sobre as exigências do “corpo perfeito” que imperam na sociedade atual e atingem as pessoas em várias esferas de suas vidas. Para alcançá-lo, buscam-se, cada vez mais, intervenções invasivas, como cirurgias bariátricas e cirurgias estéticas, de certa forma, naturalizando-as.

Segundo Goldemberg e Ramos (2002), as mudanças sociais e culturais nas sociedades contemporâneas que enfatizam a aparência e a boa forma dos corpos retratam um novo tipo de moralidade, no qual o valor pessoal encontra-se diretamente associado à apresentação de um corpo magro, entendido como bem cuidado, e é este tipo de corpo que pode gerar satisfação de si e valorização perante o olhar de outros.

Esse processo ocorre a partir de um investimento em práticas múltiplas de cuidados corporais e muitas vezes simultâneas, que reafirmam os princípios da atual modernidade:

corpo como objeto de consumo, que continuamente se modifica, possível a partir de práticas de autogestão. Esse processo tem por finalidade a transformação de si e de sua aparência como um recurso distintivo, tanto no âmbito do status e da atratividade, quanto na indicação de um tipo de virtude da pessoa (GOLDENBERG; RAMOS, 2002;

LE BRETON, 2003; HOLLIDAY; TAYLOR, 2006; FEATHERSTONE, 2010).

Santos (2008) sinaliza que a centralidade ocupada pelo corpo hoje na vida das pessoas coloca o emagrecimento como um imperativo existencial e ponto de convergência entre o campo da saúde e o campo da estética. Nesse sentido, a aparência é tomada como valor, recurso de distinção e um modo de adesão aos modelos culturais esperados do projeto reflexivo de corpo na contemporaneidade, onde a mais temida é a aparência associada à gordura. Estar gorda é estar sem salvação? Um estado de ausência de felicidade e bem-estar? Uma condenação à solidão?

Contrapondo essa visão, as experiências de Mara (38 anos) e Ângela (52 anos), entrevistadas na pesquisa de doutoramento sobre obesidade de profissionais de saúde (ARAÚJO, 2019), revelam que se sentem livres das imposições atuais de magreza.

Mara sabe que sua imagem é submetida ao olhar e aprovação alheia, mas não parece preocupada com isso:

“O mundo tem um padrão corporal e você pode escolher se vai se submeter a ele ou não. [...] E se quiserem me excluir, faz parte”.

Também, Ângela, como se vê abaixo, despreza esse olhar comum, depreciativo, sobre o corpo gordo:

Eu não me acho desarmoniosa com meu corpo. Não me sinto feia. Eu tenho uma ideia de beleza que não está limitada a questão do corpo. Não acho que obesidade seja igual a perda da beleza.

Meu parceiro se sente atraído por mim, nós temos um relacionamento pessoal e ideológico bom, um relacionamento sexual muito bom, ele me faz sentir uma pessoa desejada e não é só pelo meu corpo. O que atrai o outro é um conjunto de coisas. Eu sou interessante, me acho interessante.

Ao lembrar a narrativa de Ester, já citada anteriormente, na qual é feita alusão à obesidade como causa da sua solidão afetiva, pode-se perceber que nessa dimensão afetivo-sexual, as experiências de obesidade dela e de Ângela se distanciam e se contrapõem. Enquanto a primeira sofre rejeição, a outra aceita sua obesidade como valor sexual para si e para seu marido. Aqui, se vê que obesidade pode significar sofrimento e opressão, mas também liberdade e aceitação.

Nesse entendimento, Novaes (2013) fala sobre a associação entre gordura corporal e dessexualização, fruto de um olhar social aversivo a corpos gordos, que são excluídos do direito ao exercício da vida afetiva e sexual, como representado na narrativa de Ester e enfatizado pela experiência de Perséfone (28 anos):

Minha irmã diz: “quando você gostar de você as pessoas vão reparar em você”. Eu digo: “estou obesa e ninguém vai olhar para mim”. Digo pelas minhas amigas, todas estão namorando e ninguém é obesa como eu.

Por outro lado, o discurso de Ângela mostra que seu corpo gordo é atraente e desejado, lembrando Crespo (1990) ao falar sobre o processo de libertação do corpo como dinâmica multifacetada que interage com a imensa teia de relações sociais.

Atualmente, tem-se observado o surgimento de movimentos de valorização de corpos gordos na perspectiva de discussão sobre “gordofobia” enquanto violência, propondo um debate aberto sobre políticas públicas para contribuir com a inclusão de pessoas gordas na sociedade, problematizando seu cotidiano e suas relações com as cidades. É sobre isso que se vê a seguir na discussão sobre o ativismo gordo.

Modificações corporais: os números da cirurgia plástica no Brasil e no mundo.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) define cirurgia plástica estética como um tipo de cirurgia utilizada para remodelar as estruturas normais do corpo, principalmente para melhorar a aparência e autoestima do paciente.

No mais recente Relatório da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), acerca da Pesquisa Internacional sobre Procedimentos Cosméticos e Estéticos, com dados mundiais sobre procedimentos estéticos realizados no ano de 2018, o Brasil ocupa o primeiro lugar no mundo em número de procedimentos estéticos cirúrgicos realizados, totalizando 1.498.327 cirurgias estéticas. As três cirurgias plásticas estéticas mais realizadas no país em 2018 foram o aumento dos seios com implante de silicone (275.283), lipoaspiração (248.112) e abdominoplastia (140.774).

Em relação a procedimentos estéticos não cirúrgicos, o Brasil está em 2º lugar, atrás apenas dos Estados Unidos, tendo realizado, em 2018, 769.078 destes tipos de procedimentos, dos quais se destacam a aplicação de toxina botulínica (392.530) e aplicação de ácido hialurônico (252.971).

Procedimentos estéticos (invasivos e não invasivos) totalizaram no mundo um montante de 23.266.374 procedimentos. As mulheres permanecem fazendo mais procedimentos estéticos que os homens, num montante de 20.330.465 procedimentos que representaram 87,4% do total realizado.

FONTE: ISAPS International Survey on Aesthetic/Cosmetic Procedures – performed in 2018.

Cirurgia bariátrica: números no Brasil

A cirurgia bariátrica tem sido um recurso cada vez mais utilizado para enfrentar a obesidade, com a redução do estômago ou a redução da capacidade do intestino em absorver nutrientes. Esta cirurgia é indicada para pacientes com falha no tratamento clínico realizado por, pelo menos, 2 anos e obesidade mórbida instalada há mais de cinco anos, considerando o IMC entre 35 kg/m² e 39,9 kg/m², com comorbidades, ou pacientes com IMC igual ou maior do que 40 kg/m², com ou sem comorbidades.

De acordo com dados divulgados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), no ano de 2018 foram realizadas 63.969 cirurgias bariátricas no Brasil, num aumento de 4,38% em relação ao ano de 2017. Considerando o período de 2011 a 2018 o aumento deste tipo de cirurgias foi de 84,73%.

A maior parte das cirurgias foi realizada através dos planos de saúde (49.521), seguida das cirurgias feitas pelo SUS (11.402) e as particulares que totalizaram 3.046. As cirurgias bariátricas realizadas no SUS tiveram um crescimento de 112,33% no período de 2011-2018, embora ela ainda represente 1,16% dos que dela necessitam. Segundo a SBCBM, a população elegível para cirurgia bariátrica pelo SUS é 708 mil pessoas.

Fonte: Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), 2019.

Imagem: Pixabay

Algumas leituras complementares

Conheça alguns estudos que tentam contextualizar obesidade e seus significados:

Trabalho sobre estigma dos profissionais de saúde com pacientes com obesidade, marcando a necessidade de problematizar a formação em saúde com vistas a uma compreensão mais profunda sobre este fenômeno. Referência a ser consultada: FONTES, G. A. V. O “ser” obeso:

processo, experiência e estigma. In: FREITAS, M. C. S. de; FONTES, G. A. V.; OLIVEIRA, N. de. (Org.).

Escritas e narrativas sobre alimentação e cultura. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 191 – 205.

Artigo “Sofrimento e preconceito: trajetórias percorridas por nutricionistas obesas em busca do emagrecimento” que apresenta a obesidade como problema de saúde pública, vista como

“pânico moral” que inabilita o sujeito com obesidade à aceitação social em função do estigma relacionado a incompetência no cuidado de si, o que gera sofrimento no cotidiano de trabalho.

Veja no link: https://doi.org/10.1590/1413-81232015209.07542014.

Trabalho intitulado “Percepção dos obesos sobre o discurso do nutricionista: estudo de caso”, que revelou resistência por parte do sujeito com obesidade em seguir a terapia nutricional proposta devido a condução da relação profissional-paciente que foi estabelecida na comunicação durante o processo terapêutico. Referência a ser consultada: OLIVEIRA, J. A. N. et al. Percepção dos obesos sobre o discurso do nutricionista: estudo de caso. In: FREITAS, M. C. S.

de; FONTES, G. A. V.; OLIVEIRA, N. de. (Org.). Escritas e narrativas sobre alimentação e cultura.

Salvador: EDUFBA, 2008. p. 175 – 189.

O estudo “Os riscos de estar além do peso: uma análise do discurso sobre a obesidade proferido nos meios de comunicação de massa” analisa um quadro de um programa de televisão nacional de acesso aberto, que se propõe a apresentar a busca dos participantes pelo emagrecimento.

https: // www.researchgate.net/deref/http:/dx.doi.org/10.7476/9788575114568.0011

Imagem: Pixabay