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Crítica à supremacia do interesse público sobre o privado

Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um instituto

2. Crise dos paradigmas: a teoria geral entre a desconstrução e a reconstrução

2.2 Crítica à supremacia do interesse público sobre o privado

De um modo geral, as críticas ao princípio contestam25: i)

a existência de uma supremacia do interesse público de forma desvinculada do caso concreto, que, inclusive, desconsidera po- sições individuais irredutíveis, e ii) a própria noção e a determina- bilidade do que seja interesse público, no contexto do constitu-

cionalismo democrático26,27. A seguir, cada um desses elementos

será analisado.

24 GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do direito administrativo: uma crítica da crítica. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Supremacia do interesse público e outros

temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 13-22; GABARDO, Emerson. O jardim e a praça para além do bem e do mal: uma antítese ao critério da subsidiariedade como

determinante dos fins do estado social. 396 fls. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, p. 239-268.

25 Daniel Wunder Hachem ainda acrescenta duas outras críticas, que, dada a dimensão deste trabalho, não é possível abordar: a impossibilidade do enquadramento da supremacia como princípio jurídico e a sua inutilidade prática. HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional

da supremacia do interesse público. 420 fls. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de

Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 204-304.

26 BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político- jurídicas, econômicas e institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 129.

27 A crítica ao princípio é tão prestigiada atualmente, a ponto de Odete Medauar elencá-lo entre os obsoletismos do direito administrativo. MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em

Nas palavras de Luís Roberto Barroso28, constitucionalismo

democrático é:

[...] a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. Também referido como Esta- do constitucional ou, na terminologia da Constitui- ção brasileira, como Estado democrático de direito, ele é o produto da fusão de duas ideias que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjuga- ram para produzir o modelo ideal contemporâneo. Constitucionalismo significa Estado de direito, po- der limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a ideia de sobera- nia popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, tam- bém, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais.

Para o primeiro grupo de críticas, em razão da centralidade dos direitos fundamentais na ordem constitucional vigente, inte- resses coletivos e privados devem estar em pé de igualdade, sen- do que eventual preponderância de um sobre o outro deve ser aferida à luz das circunstâncias do caso concreto, mediante o em- prego da técnica da ponderação, orientada pela proporcionalida- de. O raciocínio é basicamente o seguinte: se o centro da ordem jurídica são os direitos fundamentais, que, por sua vez, se estru- turam em função da dignidade humana, das duas, uma – ou não existe preferência entre interesses coletivos e individuais, ou, se existe, essa preferência é invertida, isto é, os interesses individuais

têm preferência sobre os coletivos29.

28 BARROSO, Luís Roberto. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/ uploads/2012/12/O-constitucionalismo-democratico-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2018.

29 Nesse sentido, Humberto Ávila chega a afirmar que, “se houvesse alguma regra abstrata de prevalência, essa seria em favor dos interesses privados”. ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In: SARMENTO, Daniel (Org.).

Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do

Além disso, existem posições individuais irredutíveis, que de- correm da proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais,

que, por possuírem status de regra30, sequer seriam ponderáveis31.

Um exemplo seria a vedação da tortura, prevista no art. 5º, III, da Constituição de 1988. Como esse direito está compreendido no nú- cleo essencial da dignidade humana, nenhum interesse coletivo que com ele conflitasse poderia prevalecer.

Para o segundo grupo de críticas, o problema está na indeter- minabilidade e na aparente exclusão dos interesses particulares da noção clássica de interesse público. Devido ao amplo leque de competências acometidas ao estado, tanto a coletividade quanto os indivíduos são destinatários das suas prestações. E em razão da diversidade desses mesmos interesses que cabe ao Estado tutelar, pode até ser que, no caso concreto, eles sejam igualmente legíti- mos, mas antagônicos entre si. Daí a necessidade de postergar a solução do conflito para o caso concreto.

Em resposta, autores como Carvalho Filho sustentam que, embora seja um conceito jurídico indeterminado, “é possível en- contrar as balizas do que seja interesse público dentro de suas

zonas de certeza negativa e de certeza positiva”32. Caso a inde-

terminação do conceito de interesse público fosse um empecilho absoluto à sua existência, ela também o seria para inúmeros ou- tros conceitos jurídicos indeterminados consagrados na ordem jurídica. Isso sem falar que essa indeterminação se manifesta em

diferentes gradações, de acordo com a matéria em questão33.

30 Segundo Ana Paula de Barcellos, “os princípios em questão operam na realidade de duas formas distintas: relativamente ao seu núcleo, funcionam como regras e, apenas em relação a sua área não nuclear, funcionam como princípios propriamente ditos”. Ana Paula de.

Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 180.

31 Esse é o entendimento da maior parte da doutrina, a exemplo de Virgílio Afonso da Silva. Ressalva-se a posição de Humberto Ávila, para quem as regras também teriam dimensão de peso, sendo, portanto, ponderáveis. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 47-64.

32 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2015. p. 34.

33 “Quando se considera o interesse público como sinônimo de bem comum, ou seja, como fim do Estado, a indeterminação atinge o seu grau mais elevado. Essa indeterminação diminui quando o princípio é considerado nos diferentes ramos do direito, porque cada qual tem em vista proteger valores específicos. Também diminui quando se consideram os diferentes setores de atuação do Estado, como saúde, educação, justiça, segurança, transportes, cada qual com um interesse público delimitado pela Constituição e pela legislação infraconstitucional. A indeterminação ainda se restringe de forma mais intensa em relação a determinados institutos, como, exemplificativamente, os contratos administrativos, as diferentes formas de intervenção

Por sua vez, Di Pietro34, Gabardo e Hachem35 afirmam que os

críticos partem de uma falácia do espantalho. Abstraindo-se alguns

argumentos ad hominem dirigidos aos críticos36, esses autores sus-

tentam que o princípio da supremacia não teria toda essa carga de autoritarismo, já que o interesse público não deve prevalecer em toda e qualquer situação; a proporcionalidade deve ser respeitada na sua aplicação; seu conteúdo é determinável e está ligado à noção atual de bem comum, essencialmente distinta do individualismo oitocen- tista; a supremacia é encampada pelo direito positivo, não podendo ser ignorada; e o Estado não deve promover interesses egoísticos.