• Nenhum resultado encontrado

Enquanto Portugal entra na Europa através do Mercado Comum, a Itália entra em Portugal através da sua literatura. Depois do sucesso de O Memorial do Convento, de José Saramago, outro romance português recente que a editora Feltrinelli publica com prontidão na óptima ver- são de Rita Desti (José Cardoso Pires, Ballata della spiaggia dei cani, 222 páginas, 18 500 liras) apresenta ao público italiano um escritor de primeiríssima qualidade, confirmando uma literatura surpreendente.

Sexagenário, Cardoso Pires tem um passado muito vivo enquanto escritor e intelectual: romancista de fama internacional (em Itália re- cordo L’ospite di Giobbe e Il Delfino, publicados em 1963 e 1979 pela Lerici e Editori Riuniti, respectivamente), director de importantes re- vistas e jornais democráticos, professor universitário no King’s Col- lege de Londres, director editorial de grande prestígio (foi ele quem nos anos cinquenta e sessenta traduziu ou fez publicar em Portugal os autores americanos e, juntamente com eles, Vittorini e Calvino). Diria mesmo que a narrativa de Cardoso Pires mostra uma aparente seme- lhança com o romance norte-americano, no sentido em que é projectada para o exterior mais do que para o interior, esquiva-se ao intimismo, ao lirismo e ao fantástico; é, utilizando uma palavra banal, uma narrativa “realista”. A diferença substancial é o facto de o olhar de Cardoso Pires não explorar o real como dado verificável e unívoco, mas antes a sua ambiguidade e a sua intrínseca equivocidade.

1Recensão crítica à edição italiana (Ballata della Spiaggia dei Cani, com tradução de Rita Desti), publicada no diário La Repubblica de 22 de Abril de 1985 [Nota dos organizadores].

42 As Vozes da Balada

A semelhança com a literatura norte-americana limita-se, portanto, apenas a certos estilemas narrativos e a certas técnicas resultantes do cinema e do romance documental. A substância da narrativa de Car- doso Pires é toda ela europeia, marcada por uma inquietação que oscila entre o desejo do conhecimento empírico do real e a interrogação sobre a essência desse próprio real (não é por acaso que no Delfim surgia fre- quentemente o nome de um suspeitoso argonauta do real visível como Fernando Pessoa).

Se para Cardoso Pires o real é ambíguo e enigmático na sua es- sência, é apenas lógico que ele deseje confrontar-se com o romance- -enigma por excelência: o policial. Assim, da mesma forma que O Del- fimera um exemplo de romance policial usado como metáfora da ambi- guidade de toda uma situação social, também esta Balada da Praia dos Cãesretoma, com o modelo do policial, o grande tema da ambiguidade do real. Deveria dizer a ambiguidade da narrativa porque, para um es- critor como Cardoso Pires, o real é articulável principalmente através do discurso narrativo: e a Narração torna-se, neste caso, um tipo de categoria filosófica. A concepção narrativa de Cardoso Pires (à qual, confesso, sou particularmente sensível) tem provavelmente pontos de contacto com o pensamento de um filósofo como Paul Ricoeur (Temps et Récit, Seuil, 1983), talvez não suficientemente divulgado em Itália, que da análise da “mentira da consciência” (Freud) chega ao problema da “consciência da mentira”, ou seja, ao problema da história, do tempo e do narrável.

Na literatura, dentro desta problemática, parece-me que podemos distinguir o nome de Pinget, de Sarraute, de Gombrowicz e até, pres- cindindo do expressionismo linguístico (Cardoso Pires prefere traba- lhar diversos níveis estilísticos, desde o monólogo interior ao registo do acto processual), o Gadda do Pasticciaccio. Até o “policial” desta Ba- ladaé de facto um imenso pasticciaccio, uma imensa babel, um leque de versões e de depoimentos, cada um dos quais com a sua justificação intrínseca e, portanto, a sua intrínseca verdade.

As Vozes da Balada 43

O fulcro do romance é um célebre e misterioso crime político que, no início dos anos sessenta, chocou a opinião pública portuguesa: o caso do major Dantas Castro, evadido da prisão onde estava detido por ter participado numa revolta militar falhada e cujo cadáver foi encon- trado por cães vadios numa praia dos arredores de Lisboa. Em torno do mistério do cadáver giram as histórias e as versões de uma multidão de personagens (algumas testemunhas, o arquitecto Fontenova Sarmento, a sensualíssima Filomena Joana, o cabo Barroca) sobre as quais se agi- ganta a inesquecível figura do comissário Elias Santana, apelidado de Covas, pois passou a vida a arrumar “assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as penitenciárias”. Santana não se limita a construir a sua versão dos factos mas reconstrói, através dos elementos que tem à sua disposição, as histórias singulares das personagens implicadas no caso, chegando pouco a pouco à “verdade”, mas também à confirmação daquela sentença dos antigos segundo a qual a verdade é redonda.

As elucubrações de Santana e os seus monólogos endereçados ao lagarto Lizardo (incomparável nome para um lagarto), que mantém em casa dentro de um aquário de vidro, os seus filosofemas, o seu rancor pelos homens, a sua profunda e resoluta solidão fazem dele uma per- sonagem deveras memorável, digna de entrar nas antologias das gran- des personagens romanescas (recomendo a atenção de Gesualdo Bufa- lino2). E será o imóvel e atemporal réptil que lhe serve de confidente

apenas um expediente narrativo ou qualquer coisa mais? Já no Del- fim, uma pequena lagartixa retratada sobre um muro numa aldeola do Alentejo apontava com a sua imobilidade a estagnação política e social em que se encontrava aprisionado o Portugal salazarista. Mas neste romance adensam-se sobre a primeira metáfora significados simbóli- cos mais complexos e inquietantes: um colóquio entre dois túmulos, a idêntica condição dos animais pré-históricos, a impotência das palavras contra a impenetrável couraça do real, o resvalar da razão contra a imo-

2Autor de um dicionário de personagens literárias (Dizionario dei Personaggi di Romanzo: Da Don Chisciotte all’Innominabile, Milão, Mondadori, 1989) [Nota dos organizadores].

44 As Vozes da Balada

bilidade de um tempo sem razão. Então o salazarismo como condição política e a solidão como condição humana interligam-se e confundem- -se: e a caravana de circo que Santana, no final do romance, vê desfi- lar ao longo de uma avenida de Lisboa constitui talvez a única solução possível para o babélico enigma.

É então que vê passar as três jaulas rolantes vindas não se sabe donde. De longe. . . São três transportes de circo, gradeados mas sem feras, que avançam de madrugada. Dentro deles viajam os tratadores com um ar estúpido, ensonado. Desfilam pelas ruas desertas, sentados no chão, pernas para fora, caras entre as gra- des.

Elias deixa de cantar. Durante o resto do caminho pensa nos tratadores enjaulados a atravessarem a noite sobre rodas: o que mais o impressiona é que pareciam vaguear sem destino.

Para além do final deste esplêndido romance, resta talvez a extrema verdade de Santana, que Cardoso Pires não chega a enunciar. Nós “sa- bemos” que o comissário Covas suspeita que até ele está atrás das gra- des e vagueia sem rumo. Mas trata-se apenas de uma ilícita suposição do leitor.

Cães que ladram e mordem